O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Silves, Tavira e Vila do Bispo

Silves, Tavira e Vila do Bispo mereceram avaliações díspares do governador Aires Garrido

Igreja Matriz de Tavira

Temos vindo a percorrer, nas últimas semanas, o Algarve de 1867, com base num Relatório elaborado pelo então governador civil, Aires Garrido. Organizado por ordem alfabética, o Relatório visou apresentar ao governo a situação do distrito, a nível administrativo, mas também as aspirações e ambições dos algarvios. Trata-se de um documento basilar para conhecermos a região e a sociedade da época.

Sobre a primeira capital do Algarve, escreveu: «a cidade de Silves consta apenas de 613 fogos, e assim mesmo tem augmentado muito em população, porque em 1839 apenas continha 226».

O terramoto de 1755 deixara apenas 20 casas das cerca de 40 existentes, a vetusta Xelb muçulmana era, em meados do século XVIII, uma pequeníssima aldeia, para, em 1856, um novo sismo atingir duramente a primitiva Sé.

Contudo, o vasto concelho tornava fausta a receita da Câmara, ainda que houvesse muitas dívidas por cobrar. O investimento aqui, como por todo o país, fixava-se na construção de estradas municipais, ou não estivéssemos em plena Regeneração.

 

Silves

Mas a edilidade silvense almejava outros melhoramentos, como «a compra de tres casas para os açougues das freguezias de Pera, S. Bartholomeu de Messines e Algoz», e, na cidade, «a construcção de uma cadeia civil e tribunal judicial, em um terreno publico que obteve do poder legislativo para esse fim, por ser mui pequena e em más condições a casa que esta servindo de cadeia».

A inexistência de edifícios dignos para as repartições públicas, até mesmo para os talhos, era um problema transversal à região, salvo honrosas exceções.

A nível administrativo, além da dívida, para a qual o governador deixou determinantes diligências com vista à sua cobrança, condenou aquele magistrado administrativo «a irregularidade ha muito introduzida na administração d’este municipio, de se applicar sempre para as despezas de um anno a receita do anno anterior, o que causa embaraços na contabilidade e escripturação, e atraza um anno os melhoramentos de que ali tanto se carece». Digamos que faltava ousadia, ou melhor, estratégia aos políticos silvenses.

Os cartórios apresentavam-se em estado razoável, «notando apenas a falta de encadernação da maior parte dos livros da legislação», enquanto os orçamentos municipais se encontravam aprovados até 1851-52, aguardando os restantes o veredicto naquele governo civil.

Situação diferente era a das juntas de paróquia (antecessoras das juntas de freguesia), onde «as contas se acham por approvar ha muitos annos», estranhando Aires Garrido «o desleixo que tem havido n’este ramo de serviço publico, e que, segundo fui informado, tem sido causa de alguns abusos». O caso de Silves causou-lhe perplexidade, por a junta não exercer a administração paroquial, mantendo-se ainda ali a prática extinta em 1834.

A cidade deparava-se com um outro problema: «a igreja parochial de Silves, antiga sé do Algarve, acha-se muito arruinada». O governador reconhecia que «ha annos que se têem reunido os sobejos das confrarias e outros rendimentos, para por elles se occorrer aos indispensaveis concertos de que esta igreja esta carecendo», todavia nada se havia concretizado.

Assim, empenhou-se no sentido de se orçamentarem e iniciarem as obras, «á custa dos ditos sobejos e de uma derrama de sete contos e tantos mil réis, lançada pela junta parochial». Sem esquecer as convenientes «recommendações para que se conserve, quanto seja possivel, a primitiva architectura gothica, que já se acha em parte estragada por antigos reparos», comprometendo-se o próprio a vigiar os trabalhos. Decerto seriam as consequências do sismo de 1856.

 

Sé de Silves

Tanto a cidade como as demais freguesias tinham cemitérios públicos: «achando-se os de Algoz e S. Marcos da Serra ainda incompletos, mas em continuação as suas obras, fazendo-se já n’elles os enterramentos». Por sua vez, o de Silves e Alcantarilha, «alem de mal situados, são muito deficientes», ordenando o governador a construção de novas necrópoles, de acordo com os regulamentos existentes.

No concelho, com 18 996 habitantes (Censo de 1864), existiam duas Misericórdias, na cidade e em Alcantarilha. A primeira detinha um hospital, com capacidade para 6 doentes, encontrando-se em mau estado de conservação. Não existiam associações de socorros mútuos, tendo Garrido diligenciado com sucesso a sua criação, de tal forma que os estatutos estavam praticamente concluídos em Abril de 1867.

Existiam, porém, dois celeiros comuns, um em Algoz e outro em S. Bartolomeu de Messines, que auxiliavam os agricultores locais. O primeiro sob a jurisdição da Junta de Paróquia e o segundo com uma junta administrativa. Como em todo o Algarve, também aqui a mendicidade era uma realidade: 515 pessoas (2,7%) esmolavam nas ruas, das quais 110 eram crianças com menos de 14 anos. Sobreviviam ainda da caridade pública, não mendigando, 283 indivíduos (1,5%).

Quanto ao ensino, 5 escolas públicas masculinas ensinavam as primeiras letras a 106 rapazes e 4 particulares (3 femininas e 1 masculina) acolhiam 36 meninas e 16 rapazes, de um total de 1 738 miúdos e 1 661 raparigas. Em suma, só 7% dos meninos frequentavam a escola, enquanto as miúdas se quedavam pelos 2,2%.

Existia uma freguesia que não dispunha de qualquer escola, enquanto 4 almejavam um estabelecimento feminino. No entanto, as autoridades locais já demonstravam alguma preocupação com o ensino. Em S. B. de Messines, a Junta de Paróquia financiava uma casa para o professor e para a escola, além de gratificar o docente para uma aula noturna. Enquanto em Alcantarilha o vereador Sebastião José de Mendonça ofereceu «uma excellente casa», que, para Aires Garrido, após algumas obras, poderia albergar a escola masculina e a feminina que a junta local queria estabelecer.

A ação benemérita de Sebastião Mendonça para com Alcantarilha, sua terra natal, foi elogiada pelo governador: «este mesmo vereador tem alcançado para a dita povoação de Alcantarilha alguns subsidios, da camara, os quaes juntos a subscripções e donativos da localidade, têem sido empregados em varias obras e melhoramentos, como calçadas, um açougue e mercado de peixe e outros, sendo esta uma das terras que, apesar de pequena, encontrei mais adiantada e bem policiada». Afinal, a riqueza de cada terra são as suas gentes, e quando estas são empenhadas e interessadas, hoje como então, marcam a diferença.

Silves não se evidenciava no contexto regional. Com uma vereação pouco arrojada, podemos dizer que ocupava uma posição intermédia, entre os concelhos modelares ou inábeis.

Realidade distinta foi a que encontrou em Tavira: «a administração municipal d’este concelho é uma das poucas do districto que encontrei em melhores condições. A cidade tem augmentado em população, tendo actualmente 1:776 fogos, isto é mais 250 do que em 1839».

 

Tavira

Ao que o governador continuava: «é a unica povoação do Algarve onde ha illuminação e, postoque não tão bem organisada e distribuída como seria para desejar, é já um melhoramento apreciável que nem a cabeça do districto ainda disfructa».

Os tavirenses destacavam-se no contexto regional, superando mesmo os farenses. As repartições públicas estavam todas concentradas no edifício da Câmara, que alugava ainda algumas salas, como à sociedade recreativa da cidade. É certo que o edifício carecia de obras e mobília, mas estas já estavam previstas em orçamento, tal como as intervenções urgentes que se impunham «no cemiterio, nos açougues, matadouro e chafarizes, e os reparos das calçadas tanto da cidade como da Fuzeta, povoação importante do concelho».

Em termos de saúde pública, a necrópole de Tavira tinha o inconveniente de se localizar muito próximo da cidade. Nas restantes freguesias, os cemitérios eram aceitáveis, «à excepção dos da Conceição e Luz, onde estes estabelecimentos se acham no centro das povoações e em pessimas condições hygienicas».

A receita da Câmara era elevada, com a vantagem de não ter dívidas, «alem d’aquellas que costumam passar sempre dos últimos mezes de um anno economico para serem recebidas ou pagas no seguinte».

Os vencimentos dos funcionários, comparativamente com outras autarquias com rendimentos semelhantes, eram mais elevados. Os orçamentos encontravam-se aprovados até 1853-54 e os restantes em análise pelo governo civil. Apesar desta salutar condição financeira, impunha-se a realização de «urgentes necessidades», que logo enumerou: «a construcção de um novo cemiterio em local mais conveniente, a construcção de um chafariz na parte oriental da cidade com o encanamento de agua que tem de vir de além do rio, a construcção de mercados públicos, especialmente para o peixe», entre outras. Tratando Aires Garrido de solicitar orçamento para as mesmas, de forma a se «necessario contrahir para algumas d’ellas um empréstimo», ao qual a Câmara anuíra.

Os cartórios estavam organizados e em dia, somente a carência de algumas rubricas e de um termo de abertura e encerramento num livro. Ao nível das juntas de paróquia, pouco assinalou. Também a administração dos expostos era, juntamente com Faro, exemplar.

Na cidade, evidenciavam-se a Misericórdia e o Hospital do Espírito Santo. Este último, com uma capacidade para 56 doentes, apresentava uma lotação superior face ao número de doentes que normalmente recebia, constituindo com Faro, as duas exceções no contexto regional.

 

Hospital do Espírito Santo

O seu estado de conservação era bom e a tal não era alheia a intervenção de José Quintino de Oliveira Travassos, oficial de 1ª classe do Ministério da Guerra adido ao Quartel general da 8ª Divisão Militar, que «com muita intelligencia, dedicação e actividade» havia dirigido as obras de ampliação, aumentara a cobrança de rendimentos e introduzira melhoramentos diversos ao nível da administração.

Existia uma associação de socorros mútuos com 181 sócios, dos quais 175 «artistas» e 6 «auxiliares», bem como 2 compromissos marítimos: Tavira, com 636 associados; e Fuzeta, com 351.

O compromisso de Tavira, além de socorrer os seus associados, auxiliava a confraria do Santíssimo da igreja de Santa Maria, com despesas do culto e de festas religiosas, «o que fazia com tanta largueza que pagava até ordenados annuaes e certos a uns tantos marítimos pelo trabalho de acompanharem o Sagrado Viatico aos enfermos». Abusos que o governador moderou.

O concelho albergava então 21 429 habitantes (Censo de 1864), dos quais 237 pediam na via pública (1,1%), a que se adicionavam 111 que sobreviviam da caridade sem esmolar (0,6%). Quanto ao ensino, 7 escolas públicas e 2 particulares masculinas ministravam as primeiras letras a 126 e a 58 rapazes, respetivamente, de um total de 1 137 miúdos (16%).

Estava criada uma escola feminina, mas não funcionava (a Câmara não disponibilizara casa nem mobília), em resultado 1 124 raparigas não tinham acesso à instrução. Existia uma freguesia no concelho sem escola.

Tavira destacava-se pela positiva no contexto regional, com uma autarquia com saúde financeira, sem dívidas. Ainda que o concelho carecesse de investimentos, era a única terra do Algarve que dispunha de iluminação pública.

Avaliação diametralmente oposta presenciou o governador em Vila do Bispo: «acha-se este concelho em condições em tudo similhantes ao de Aljezur, acrescendo ser ainda menos povoado, pois apenas tem 800 fogos pouco mais ou menos, e 181 a villa».

Com 3 781 habitantes (Censo de 1864), constituía o município menos povoado da região. Tudo ali eram adversidades: «deficiência de casas para accommodação das repartições publicas, falta de gente habilitada para servir os cargos administrativos e municipaes, escassez de recursos para elevação de ordenados, aqui menores ainda do que em Aljezur, a fim de por esse meio se poder propor para ahi um administrador estranho ao concelho».

 

Vila do Bispo

A tudo isto, adicionava-se a «completa indifferença para tudo o que é adiantamento, instrucção, progresso e melhoramentos, e absoluta carencia de meios para obter alguma d’estas vantagens, eis o que se encontra n’este concelho». Para logo acrescentar: «é tal a pobreza do concelho, onde não há um unico estabelecimento de beneficencia, que por mais diligencias que tenho empregado ainda me não foi possivel conseguir alguns subsidios para melhorar a casa da escola primaria e adquirir-lhe alguma mobilia, nem tão pouco para augmentar a sua frequencia, que é mui insignificante e quasi nullo o aproveitamento». Uma realidade penosa aquela que presenciou em terras vila-bispenses.

As receitas da edilidade eram reduzidas, mas o desmazelo dos edis elevado: «não tem a villa uma fonte, havendo-se tolerado que um particular desviasse em seu proveito a agua da unica que existia. Tem-se igualmente consentido que os mais poderosos comprem os baldios manicipaes, concedendo até a camara a alguns d’elles terrenos publicos sem forma de processo e sem retribuição legal».

Perante tantas contrariedades, o governador referia que empregaria todas as diligências para obstar abusos e melhorar o que lhe fosse possível, consciente que, quanto a melhoramentos materiais, pouco conseguiria sem a colaboração local, para logo, em desalento, assumir: «farei porem quanto em mim couber, e terei cumprido pela minha parte o dever do meu cargo».

Não obstante, foi deste concelho que obteve a única participação cívica, pois, tendo anunciado a sua visita em todos os municípios e convidado os seus habitantes a apresentarem reclamações sobre as autoridades, empregados administrativos, ou outras, apenas uma recebeu, relacionada com o irregular aforamento dos baldios pela Câmara.

Os orçamentos da edilidade encontravam-se todos aprovados, com raras exceções. A contabilidade surpreendeu aquele magistrado: «a escrituração não está irregular, e em attenção á capacidade dos funccionarios a cujo cargo se acha, encontrei-a melhor do que esperava».

Situação análoga ocorria nas juntas de paróquia: «estão regularmente approvadas as da Villa do Bispo e Budens, achando-se as de Raposeira em atrazo desde 1840». Já em Sagres, por falta de «escripturação regular», não foi possível apurar.

 

Sagres

No concelho, «exceptuando a freguezia de Budens, todas as outras teem cemiterios em condições toleraveis; o d’aquella é o adro da igreja, estando desguarnecido de muro, pelo que tenho dado as ordens necessarias para se construir ali um cemiterio em forma».

Aires Garrido, ao finalizar, fez ainda uma derradeira proposta: «este concelho deve fazer parte do de Lagos, apenas se consiga uma estrada que una esta cidade com as principaes povoações d’elle, sendo todavia de advertir que os actuaes caminhos não são tão maus, como os que dão communicação entre Aljezur e Lagos ou Monchique».

Em termos de mendicidade, 5 pessoas pediam esmola na rua e 1 sobrevivia da caridade pública. Duas escolas públicas ensinavam as primeiras letras a 40 rapazes (10%), de um total de 369. Já as 410 meninas não tinham qualquer frequência escolar.

O concelho de Vila do Bispo, na opinião de Aires Garrido, pela diminuta população, fracos recursos materiais e humanos, deveria ser extinto e anexado ao de Lagos.

Silves, Tavira e Vila do Bispo três concelhos que mereceram avaliações díspares do governador. Se Silves se situou a meio termo, Tavira constituiu um bom exemplo, enquanto Vila do Bispo ocupou a posição diametralmente oposta. E os derradeiros municípios que falta abordar? Que opinião mereceram de Aires Garrido as autoridades de Vila Nova de Portimão e Vila Real de Santo António? É o que vamos saber na próxima semana.

(continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

 

Leia também as cinco anteriores partes deste artigo:

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Castro Marim e Faro

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Lagoa e Lagos

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Loulé, Monchique e Olhão

 

 



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