O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Loulé, Monchique e Olhão

Loulé, Monchique e Olhão, três concelhos distintos, representativos do barrocal, da serra e do litoral, respetivamente, todavia afligidos pelos mesmos problemas

Entrada de Monchique

Nas últimas semanas temos vindo a percorrer um outro Algarve de há mais de 150 anos, onde a ignorância, o desconhecimento e a mendicidade eram a regra e não a exceção.

Recorde-se que o governador civil Aires Garrido percorreu, entre agosto de 1866 e abril do ano seguinte, todo o distrito de Faro, elaborando um detalhadíssimo Relatório que enviou ao governo, onde descreveu o que testemunhou, desde o estado da administração em instituições públicas e particulares, até aos investimentos efetuados, sem esquecer as prioridades para cada concelho e para a região.

Nesta sequência, visitamos agora Loulé, sobre a qual escreveu: «a vila de Loule, que tem hoje 750 fogos, ou mais 98 do que em 1839, é cabeça de um dos concelhos mais ricos e industriosos, e o mais populoso, depois do da capital d’este districto».

Na verdade, e de acordo com o Censo de 1864, Loulé, com 26 122 habitantes, já superava Faro, que tinha 22 747 moradores, mas estes dados estatísticos só foram divulgados em 1868, o governador ignorava-os quando, em abril de 1867, concluiu o Relatório.

 

Loulé

 

O concelho de Loulé era terra de abundância, mas fraco em dirigentes políticos e tal revelava-se na administração autárquica: «posto [que] tenha melhorado em relação ao que era ha poucos annos, ainda deixa muito a desejar».

A receita da Câmara era elevada, mas as dívidas que a edilidade não cobrava também, e, em resultado, o investimento parco, limitando-se à «dotação legal para as estradas de terceira ordem».

Muitos dos títulos dos emprazamentos haviam sido «queimados ou extraviados por occasião das guerras civis, que assolaram o districto, e muito especialmente este concelho, de 1832 a 1840» e por causa disso a Câmara não fazia valer os seus direitos, nem cobrava o que lhe competia. Sem receitas, não concretizava obras.

Os paços do concelho e o tribunal estavam instalados num «convento que para esse fim lhe foi concedido», carecendo a vila de casas para as outras repartições públicas, o que, sendo competência da autarquia, era sobre esta que pendiam as rendas da «administração do concelho, a repartição de fazenda, a estação telegraphica, as escolas publicas, a guarda á cadeia, o celleiro dos fóros do concelho».

Como se não bastasse, a edilidade financiava ainda «o quartel de um destacamento, com o qual tem sido obrigada a fazer outras muitas despezas, pela necessidade de haver ali ha muito estacionada uma força que reprime as desordens de que este concelho tem sido constante theatro».

 

 

O rigor também não era apanágio nos orçamentos: «são muitas as faltas e irregularidades que n’elles se encontram, pelo que alguns já examinados se acham dependentes do cumprimento de ordens expedidas para se satisfazer as justas exigencias dos tribunaes a que pertence o seu julgamento».

Por outro lado, observavam-se livros sem termos de abertura ou encerramento e sem rubricas.

O governador diligenciou para que a autarquia cobrasse as dívidas, ainda que com alguns abatimentos. Em termos de investimento, alvitrou a «conveniencia de adquirir ou construir um edificio para accommodação das repartições publicas, que se acham em casas arrendadas», tentando para o efeito que fosse contraído um empréstimo.

Abono que devia contemplar ainda a construção de um novo cemitério na vila, «que o existente se acha situado n’um valle, que em muitas occasiões durante o inverno é inundado de agua, não podendo servir para o fim a que é destinado, sendo alem d’isso inconveniente a sua situação pela vizinhança do povoado».

As freguesias Querença e Boliqueime não dispunham ainda de necrópole, enquanto nas outras muitas situavam-se no centro das povoações, impondo-se a sua transferência.

Nas juntas de paróquias, a administração vacilava entre três que apresentavam orçamento e as restantes, cuja contabilidade se encontrava em «grande desordem».

Havia mesmo casos que lançavam «derramas para obras nas igrejas, sem approvação superior e sem se cingirem às disposições da lei».

A de Boliqueime era um desses exemplos, aqui com vista à construção de um cemitério privativo. O governador admitia, no entanto, meia culpa, dando ordens para «fazer entrar as cousas em ordem», mas não procedendo contra aqueles que infringiam a lei, pelo «abandono em que da parte do governo civil se achavam há longos annos estes assumptos, o qual de alguma forma desculpa o desleixo, as irregularidades e abusos commettidos».

 

 

A Misericórdia local detinha o hospital, que comportava 20 doentes e que se encontrava em «reparos e augmentos».

Obras que eram promovidas pelo provedor Francisco de Freitas e Oliveira, que não só as dirigia como as financiava gratuitamente. Provedor que havia contribuído similarmente com um generoso auxílio para a fundação de um asilo de infância desvalida no distrito.

No concelho, não existiam associações de socorros mútuos, empenhando-se Aires Garrido na sua criação. Em Boliqueime, tinha lugar um dos três celeiros comuns do Algarve.

Quanto à mendicidade, 184 indivíduos pediam esmola nas ruas (0,7%), dos quais 120, a maioria, tinham uma idade não superior a 14 anos. Por sua vez, existiam ainda 50 pessoas que não mendigavam (0,2%), mas sobreviviam da caridade pública, ou seja, cerca de 1% da população do concelho era pobre, a maioria crianças.

No que concerne à escolaridade, quatro escolas públicas: 3 masculinas, frequentadas por 150 alunos (8,1%); e 1 feminina por 73 alunas (3,7%) de um total de 1 832 e 1 974, rapazes e raparigas, respetivamente. Quatro freguesias não dispunham de qualquer estabelecimento de ensino. Na vila, existia uma escola noturna, criada por diligências do administrador Henrique Xavier Correia de Sousa Leote, frequentada por 126 alunos.

Ao contrário dos outros concelhos, Aires Garrido foi parco em informações sobre Loulé, não descreveu a vila, nem elencou as obras efetuadas nos últimos anos, e, quanto às prioridades, não foi além dos cemitérios e de um novo edifício para albergar as repartições públicas. Já estariam as ruas calcetadas? A urbe era limpa? São questões que ficaram por responder.

 

 

Bem mais elucidativas são as informações que prestou sobre Monchique, o município sobre que se debruçou de imediato.

«Este concelho, que se compõe de tres freguezias, tendo a villa 349 fogos, é um d’aquelles em que a administração municipal se acha mais irregular e embaraçada em virtude da ignorancia e desleixo das vereações que por espaço de muitos annos ali têem servido, e em consequencia do fallecimento do escrivão, depois de uma enfermidade que durou annos, deixando o cartorio em um cahos, do qual muito ha de custar a traze-lo á ordem».

Não obstante, reconhecia que a vereação que agora presidia os destinos dos monchiquenses se encontrava empenhada «para emendar os males causados pelos erros ou descuidos de suas predecessoras, mas desanima a cada passo em face dos embaraços que a cercam».

A despesa obrigatória era insignificante, por os funcionários auferirem ordenados baixos, ou melhor «mesquinhamente retribuídos», contudo, a dívida, mesmo sem investimentos, era colossal.

Isto, apesar das muitas necessidades: «sem fallar nas dos caminhos publicos, que ou não ha, ou são pessimos; carece a casa da camara de algumas obras, o cemiterio da villa de ser acrescentado e concluido, o do Alferse de ser feito de novo por estar arruinado e muito mal situado, a casa da escola de ser feita de novo, e assim tambem outras casas commo a do tribunal e demais repartições publicas de varias obras e melhoramentos».

O governador reconhecia que a Câmara em exercício se esforçava nas obras mais urgentes, como «concertar as fontes e de calçar algumas ruas da villa, que muito precisavam, não podendo demorar-se mais esta obra por estar a mesma villa assenle n’uma encosta; e no pouco que tem feito mostra zêlo e economia mui louvável».

Contudo, o passivo e a organização não permitiam muito mais, o estado caótico «em que encontrei o cartorio, principalmente quanto à contabilidade, era motivo para procedimento criminal».

Porém, o escrivão havia falecido e as vereações, constituídas «pela maior parte [por] lavradores ignorantes, que nada entendem do serviço, como acontece ordinariamente nos concelhos ruraes», levaram aquele magistrado a escusar avançar o processo, pois tal iria «envolver e encommodar um grande numero das pessoas mais consideradas do concelho», desculpando-se ainda com os seus antecessores.

Governadores que não examinaram os orçamentos logo que lhe foram presentes e não tomaram «as demais providencias necessarias para atalhar o mal no seu principio».

Na verdade, entre 1852 e 1865, os orçamentos foram organizados sem base, apresentando o livro de receita e despesas erros diversos e muitos papéis avulsos, tomando Garrido providências para obstar, a partir de agora, tais irregularidades. Reconhecendo mesmo que teria, por certo, de enviar para Monchique um delegado especial para o efeito. Mas a desordem estendia-se a outras temáticas, de entre elas, os recenseamentos militares e eleitorais.

A Misericórdia local geria o hospital, com uma capacidade de 14 doentes, e um estado de conservação «soffrivel». No concelho existia também o Hospital das Caldas de Monchique, com uma lotação para 80 doentes, que era tolerável.

Quanto à mendicidade, aparentemente e de acordo com os dados fornecidos no Relatório, ela não existia, o que dificilmente corresponderá à realidade. Por sua vez, em termos de escolaridade somente 2 escolas públicas para rapazes, frequentadas por 42 petizes (8,6%), de um total de 486 existentes, enquanto as meninas, 512, não fruíam de qualquer estabelecimento de ensino.

Uma administração confusa e irregular foi o que encontrou o governador em Monchique, valendo-lhe ainda assim, um executivo por ora empenhado.

 

 

A realidade que encontrou junto à Ria Formosa não foi dissemelhante. Sobre Olhão redigiu: «este concelho, que ainda no primeiro quartel do presente seculo pertencia ao de Faro, tem crescido muito em população e com especialidade a villa, que tendo em 1839 apenas 1:128 fogos, conta hoje 2:000, sendo uma das terras do districto mais povoadas e de maior actividade industrial, principalmente nos ramos do commercio e da pesca e navegação».

O antigo lugar de Olhão crescera e, afirmava-se, era aproximadamente três vezes maior que a vila de Loulé. A gestão municipal de que tinha sido alvo merecia também aqui críticas de Aires Garrido: «longo tempo descurada a sua administração municipal, foi a causa não só de se deixar crescer a villa muito irregularmente, fazendo-se construcções sem alinhamento e sem ordem, por forma que a maior parte das ruas são muito estreitas e tortuosas e muitos becos fechados».

Mas tal era passado, reconhecia que a vereação se mostrava empenhada em efetuar diversos investimentos, apesar de tolhidos pela dívida e pelas despesas municipais, tornando-se necessária a realização de um empréstimo, que estavam em vias de aceitar.

É certo que havia o passivo, mas também os melhoramentos eram uma realidade: «fez-se ali ha pouco um excellente mercado para o peixe, e se continua, posto que Ientamente, na construcção do caes ao longo da villa, pela beira da ria».

Esta construção do cais constituía uma obra de grande importância e similarmente de avultada despesa, a par de outras de que o concelho carecia: «a câmara não tem edificio municipal proprio, estando em casas de aluguer as secretarias municipal e da administração do concelho, o tribunal de Justiça, a repartição de fazenda, a estacão telegraphica, as escolas e a mesma cadeia publica».

Edifícios que, apesar de alugados, eram inadequados, porém não os havia em melhores condições, pelo que, para o governador, se tornava «indispensavel a construcção de um edificio em que todas sejam collocadas».

Precisava também de calcetar a maior parte das ruas da vila, bem como de efetuar outros melhoramentos considerados urgentes. Todavia, pelas receitas que a autarquia cobrava e a dívida, a realização da maioria destes investimentos, que «podiam estar já concluidos, se tivesse havido zêlo e economia na administração do municipio da parte das vereações transactas», só seria possível através de um crédito, era impossível aumentar mais os impostos.

Quer Olhão, quer as freguesias tinham cemitérios «regulares».

 

 

Em termos contabilísticos, os orçamentos estavam aprovados até 1852-1853, encontrando-se em análise ou aguardando o seu envio os anos seguintes.

A «escripturação dos livros de contabilidade municipal não está completa, devida esta falta ao impedimento do escrivão, que ultimamente foi exonerado e substituído», faltavam ainda alguns volumes de legislação, enquanto outros se encontravam desencadernados.

Aires Garrido deu ainda nota de outras irregularidades, mas que entretanto tinham sido remediadas, tendo o presidente demonstrado «a melhor vontade de bem cumprir».

A nível das juntas de paróquia, não foram detetadas desconformidades notáveis, «a não ser a falta de tomada de contas».

O concelho congregava em 1864, de acordo com o Censo, 14 054 habitantes. A vila não tinha Misericórdia, embora esta fosse uma realidade na freguesia de Moncarapacho. Não havia hospital mas associações de socorros mútuos, com um total de 65 sócios «artistas».

Por sua vez, o compromisso marítimo de Olhão era o segundo que tinha mais associados em todo o distrito, depois de Tavira. Note-se que a Fuzeta pertencia ainda a Tavira, só integrou o concelho a 22 de Março de 1876.

Na via pública, 462 indivíduos pediam esmola (3,2%), enquanto 42 (0,3%) sobreviviam da caridade, sem mendigar.

Existiam 4 escolas públicas, 3 para rapazes, frequentadas assiduamente por 64 alunos, e 1 feminina com 55 alunas, bem como 3 privadas masculinas, que ministravam as primeiras letras a 78 rapazes. Ainda assim, somente 8,9% do total de miúdos estudava, percentagem que reduzia para 3,2% para as meninas.

Loulé, Monchique e Olhão eram três concelhos distintos, representativos do barrocal, da serra e do litoral, respetivamente, mas afligidos pelos mesmos problemas: políticos medíocres, autarquias endividadas, carência de novos edifícios públicos ou de obras nos mesmos, falta de infraestruturas diversas, elevadíssimas taxas de analfabetismo e de mendicidade.

Na verdade, dificilmente um povo ignorante, rude e preconceituoso, juntamente com uma pequena elite mesquinha e atrasada, geravam «gente illustrada».

Contudo, face ao descalabro que vinha a traçar, Aires Garrido não imputou a responsabilidade somente aos louletanos, monchiquenses e olhanenses, mas também aos seus antecessores, magistrados que haviam primado pela ausência de apoio e fiscalização às diferentes instituições do distrito.

Mas será que só Lagoa se destacava pela positiva nesta perturbadora jornada? E Silves, Tavira ou Vila do Bispo? Constituíam estes concelhos exemplo no contexto regional?

É a questão que nos propomos responder já na próxima semana. Para depois ficará Portimão, afinal esta designação só surgiu em 1924, até então era Vila Nova de Portimão. Manuel Teixeira Gomes, que a haveria de elevar a cidade, tinha em 1867 somente 7 anos….

 

(continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

 

Leia também as quatro anteriores partes deste artigo:
O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Castro Marim e Faro

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Lagoa e Lagos

 

 



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