O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Lagoa e Lagos

Lagoa e Lagos não podiam ser concelhos mais antagónicos

Aires Garrido, governador civil de Faro, promoveu, entre agosto de 1866 e abril do ano seguinte, uma visita a todo o distrito, elaborando um pormenorizado Relatório, que remeteu a instâncias superiores, conforme determinação governamental.

Volvidos mais de 150 anos, revisitar o Algarve de então é uma viagem ímpar e confrangedora, pela riqueza de detalhes de uma região já desaparecida e simultaneamente pelo retrato cáustico de uma mentalidade retrógrada. Assim e depois de vistoriados os concelhos de Albufeira, Alcoutim, Aljezur, Castro Marim e Faro, onde as críticas superaram sempre os elogios, acompanhamos agora o governador na visita a Lagoa e Lagos.

Sobre Lagoa escreveu: «o concelho de que é cabeça a villa d’este nome e que tem hoje 705 fogos, é dos mais ricos e industriosos d’este districto».

Constituirá Lagoa um dos municípios exemplares para Aires Garrido? Continuemos a seguir as suas palavras, já que dizia que tem «um bom edificio municipal de recente construcção, muito regular e decente, onde, alem da casa das sessões da camara e do tribunal de justiça, se acham collocadas a administração do concelho, a repartição de fazenda, a recebedoria, as prisões publicas, a casa da guarda, a residência do carcereiro e a roda dos expostos».

O hoje pequeno edifício dos antigos Paços do Concelho congregava, na época, todas as repartições públicas da vila, incluindo a roda dos expostos, que seria pouco depois extinta pelo mesmo governador.

O orçamento da Câmara encontrava-se equilibrado, e, não obstante algumas dívidas em atraso, a receita era maior que a despesa e «em tudo o mais se acha o municipio em mui regulares condições de administração».

É certo que os funcionários auferiam vencimentos módicos, «mas em harmonia com as forças do município», existia rubrica para a construção de estradas municipais, bem como para outras obras tidas por convenientes.

Na verdade, na década anterior, haviam sido realizados diversos investimentos, como o início do calcetamento das ruas, que se encontrava agora em conclusão, mas não só. «Fez-se igualmente um mercado para o peixe, em condições mui regulares», para logo reconhecer, «emfim é este um dos concelhos em que tem havido boa administração e progresso, e onde encontrei a todas as pessoas mais influentes nas melhores disposições de abraçarem todos os melhoramentos praticáveis, e de contribuírem efficazmente para a sua realisação».

A sociedade lagoense surpreendeu o governador civil pela positiva. Quanto a outras repartições públicas, «igualmente encontrei em regular arranjo o estado dos cartorios, aproveitada e encadernada a maior parte da legislação, e em dia a escripturação de contabilidade municipal, e isto apesar de ser o escrivão da administração quem ha muito faz o serviço do escrivão da camara que se acha impossibilitado por doença».

As dificuldades não eram ali problema, nem desculpa para o rigor e organização, tão apreciadas por aquele zeloso magistrado administrativo.

A nível das juntas de paróquia, as predecessoras das juntas de freguesia, «nada de notavel encontrei (…), a não ser o atrazo na apresentação das contas das juntas de parochia de Ferragudo e Porches, acerca do que dei as necessárias providencias».

 

Relativamente à saúde pública, um dos desideratos do Liberalismo, redigiu: «ha cemiterios em todas as parochias do concelho, bem situados e concluídos, menos o da villa, que se não acha ainda acabado, mas está vedado e decente, e a camara tem a peito o seu acabamento com a desejada brevidade».

 

Além da conclusão da necrópole de Lagoa, no concelho existiam outros problemas que careciam de resolução, como o edifício escolar. «A casa da aula é má», no entanto «a camara de melhor vontade se prestou a alugar uma em melhores condições», enquanto aguardava o resultado à candidatura que efetuara ao legado do conde Ferreira.

Contudo, essa não era a única diligência a favor do ensino, pois prestara-se também a autarquia a criar uma gratificação extraordinária para o professor, «proporcionada ao numero de alumnos que annualmente saírem da escola promptos a fazer exame de ensino primario em qualquer lyceu do reino». Um entendimento diferente no apoio à escolaridade da edilidade lagoense relativamente à maioria das suas congéneres algarvias, como temos vindo a analisar.

No concelho, com 10 094 habitantes (Censo de 1864), existiam 3 escolas públicas e uma particular para rapazes. Assim, de um total de 675 rapazes, 132 frequentavam o ensino público, enquanto 15 faziam-no particular.

Quanto às meninas, embora o governador não anotasse a presença de uma escola privada, mencionou que 7 a frequentavam, de um total de 698. Não havia escola pública feminina.

Duas freguesias não tinham estabelecimentos de ensino, mas tal não impedia que cerca de 22% dos meninos em idade escolar os frequentassem, a percentagem mais elevada até agora, enquanto as meninas somente 2,1% o fazia e em escola paga. O número de matriculados era praticamente igual aos assíduos, o que nos concelhos já analisados só aconteceu em Faro.

 

No território, existiam duas Misericórdias, Lagoa e Estômbar. A primeira detinha um hospital, com capacidade para 8 doentes, que se encontrava em obras. Estas eram promovidas por António Joaquim Pinto, «um pobre alveitar, que não só dispõe de todas as sobras das suas despezas para actos de beneficência, mas anda continuamente solicitando esmolas dos mais favorecidos de fortuna para com ellas ir mitigar os sofrimentos da viúva desamparada, do orphão desvalido e do pobre enfermo».

Atitude sobremaneira valorizada por Aires Garrido, que embora reconhecesse a exiguidade do novo edifício, ficava «mui superior ao que antigamente era».

Existia similarmente uma associação de socorros mútuos com 50 sócios «artistas», bem como um compromisso marítimo em Ferragudo, com 83 associados.

Em termos de mendicidade, 202 pessoas sobreviviam de esmolar na rua, enquanto 163 não o faziam mas viviam da caridade pública, ou seja cerca de 4% da população do concelho era paupérrima.

Lagoa fizera investimentos e nem por isso desequilibrara o orçamento municipal. A vila não só deixara de ter os seus arruamentos em terra batida, com os inevitáveis lamaçais no inverno e pó no estio, como detinha um mercado do peixe, bem como uns paços do concelho modelares para a época.

Não que não existissem problemas, mas o concelho detinha uma população interessada e opiniosa, pelo menos a que ocupava os cargos públicos. De todos os concelhos até agora visitados, foi o único onde os elogios do governador pesaram mais que as críticas.

 

Já sobre Lagos, cidade portuária, a realidade não podia ser mais dissemelhante: «este é o concelho do districto em que se tornam mais sensiveis os resultados da falta da administração municipal».

Apesar de uma receita considerável, apenas uma ínfima parte era destinada a melhoramentos públicos, depois, a dívida a credores era enorme, tal como as dívidas por arrecadar.

Em resultado, «a cidade, que hoje contem 1:585 fogos, mais 127 do que em 1839, carece de uma infinidade de melhoramentos materiaes cada qual mais urgente».

O governador reconhecia «a boa casa da camara, recentemente construida á custa de uma contribuição especialmente destinada a este fim, bem acabada e a melhor do districto», que reunia todas as repartições (municipal, administrativa e fiscal), à exceção do tribunal.

Este último estava instalado em parte do convento das Carmelitas, «em ruinas, sem que a camara tenha tratado em effectuar n’elle os reparos e melhoramentos que urgentemente reclama».

Melhor sorte não tinha o cemitério. A edilidade havia obtido um outro edifício nacional para o instalar, mas nada havia concretizado, além de contribuir para a sua deterioração, não só lhe retirava materiais para as calçadas, como parece que permitia que os particulares o fizessem também, de tal forma que se encontrava «em ruinas e sem valor algum para qualquer aproveitamento».

Se é certo que Lagos tinha dois cemitérios, um para cada uma das paróquias, nenhum reunia condições: «não o de S. Sebastião, por sua insufficiencia, nem o de Santa Maria, que não é outra cousa mais do que o recinto de uma igreja que se começou em tempo a construir, mas não se continuando a obra, foi applicada para cemitério». Em resultado, este último encontrava-se «mal resguardado, contíguo ás habitações» e, como se não bastasse, apresentava «um aspecto repugnantissimo, e mais parecendo um sítio destinado a deposito de immundicies de que ao enterramento dos finados».

Contudo, havia mais: o «encanamento da unica fonte da cidade acha-se deteriorado, a ponto de não poder fazer-se uso da agua».

O calcetamento de algumas ruas que a autarquia vinha a executar foram consideradas como «uma despeza em grande parte perdida», por ser utilizado o entulho na sua construção, e não cascalho, que «as chuvas converterão em lamaçaes e arrastarão á bahia».

 

Contribuindo ainda mais para o seu já intolerável assoreamento, «a ponto de não poderem fundear n’ella embarcações, e nem os mesmos barcos de pesca das companhias do concelho, cujo porto de abrigo é o da proxima povoação de Alvor, pertencente ao concelho de Villa Nova de Portimão».

Lagos de todo caíra nas graças de Aires Garrido, que logo acrescentava: «as ruas da cidade são pela maior parte immundas, attestando completa ausencia de policia municipal», propondo mesmo a destruição de «algumas muralhas antigas que ainda existem e, quanto a mim, sem alguma vantagem com respeito à defeza da cidade, dão a esta um aspecto melancholico, embaraçam a construção de novos edificios particulares, impedindo a ventilação e contribuindo para tornar a cidade menos salubre e menos aceiada». Felizmente, as muralhas mantiveram-se, chegando aos nossos dias.

Em termos de diligências, aquele magistrado traçou como prioritária a reedificação da fonte, «uma das necessidades mais urgentes do concelho».

Também a instalação do tribunal, num edifício digno, foi tida como inadiável. Existindo duas correntes por entre os lacobrigenses, efetuar as obras no convento, ou antes dotar os paços do concelho de um segundo andar, Aires Garrido determinou a realização de orçamentos para estas hipóteses, bem como a análise por um perito sobre se o edifício municipal comportava a realização de um novo piso, «attendendo-se ao fim para que elle é destinado, e á circumstancia de costumar affluir ás audiencias geraes grande concurso de espectadores, quando se trata de causas que interessam a curiosidade do publico». Alternativa que veio a triunfar.

Diligenciou no sentido da construção de um novo cemitério, «em local e com a exposição e area convenientes», quando o «de S. Sebastiao não possa ou não deva ser acrescentado», bem como outros melhoramentos «materiaes, hygienicos e de aceio na cidade».

A Câmara mostrou-se empenhada em cumpri-las, dispondo-se mesmo a contrair um empréstimo para esse fim, bem como pedir o auxílio do governo para «diversas providencias que são de sua exclusiva competência», o que não agradou a Aires Garrido.

 

Na sua opinião, os edis não eram competentes, nem para dotar o concelho dos melhoramentos que se impunham, nem para continuar na sua gerência, «attentas as graves accusações que sobre ella pesam, e que já se acham presentos ao governo de Vossa Magestade com as informações e documentos que comprovam os abusos por ella commettidos», pelo que propunha, nada mais que «a dissolução da mesma câmara». Uma proposta radical e até agora inédita nos concelhos estudados.

Os orçamentos encontravam-se para análise desde 1843-44, uns no governo civil, outros no Tribunal de Contas e outros ainda para serem apresentados «com a comminação de procedimento legal».

Apesar de considerar a «escripturação» regular, o governador não deixou de lembrar que havia «fundados motivos para duvidar da sua exactidão», até porque «descobrindo que em poder do thesoureiro da camara se achava uma avultada quantia, procedente de descontos feitos a empregados administrativos e municipaes, para pagamentos de direitos de mercê, alguns tão antigos que já são fallecidos», intimidara o presidente e o tesoureiro que entregassem aquele dinheiro na recebedoria da comarca e participassem o sucedido às instancias competentes.

Enfim, uma administração incompetente e lesiva dos interesses públicos, ou como diríamos hoje, corrupta, foi o que encontrou Aires Garrido na Câmara de Lagos.

Já nas freguesias, das cinco existentes «apenas a de S. Sebastião tem lançadas suas contas até 1863, a de Santa Maria até 1860 e a de Odiaxere até 1838; não havendo das duas restantes uma só conta para ser examinada e julgada». Orçamentos que não eram aprovados na Câmara, como determinava a lei, mas sim no «ordinario do bispado». Nas três freguesias rurais, os cemitérios eram toleráveis.

Um retrato nada abonatório das autoridades lacobrigenses. Mas havia uma exceção, a comarca local era a única que cumpria no Algarve «a tomada de contas do cumprimento de legados pior perpétuos».

A Misericórdia geria o hospital, com uma capacidade de 14 doentes, encontrava-se em mau estado de conservação. Existiam também associações de socorros mútuos com 221 sócios «artistas» e um compromisso marítimo com 335 associados.

 

No concelho, 18 pessoas sobreviviam a mendigar nas ruas, enquanto 19 viviam da caridade pública, sem pedir esmola. Assim, e uma vez que residiam no concelho 10 953 habitantes (Censo de 1864), apenas 0,34% da população era pobríssima. A taxa mais baixa de entre todos os concelhos inspecionados até agora. Mas seriam aqueles dados reais? É uma dúvida pertinente a que não sabemos, por ora, responder.

Em termos de ensino, de um total de 1 162 miúdos e 1 216 miúdas, 60 rapazes e 46 raparigas frequentavam assiduamente duas escolas públicas, a que se adicionavam 115 rapazes, em 2 escolas particulares e 120 raparigas, em 6 de igual natureza.

As escolas privadas tinham mais alunos que as públicas e no cômputo geral, 15% dos rapazes e cerca de 14% das meninas frequentavam as primeiras letras. De entre as pagas, uma era nocturna e uma outra do regimento, que recebia paisanos (não militares).

Não obstante, quatro freguesias eram desprovidas de estabelecimentos de ensino.

Lagoa e Lagos não podiam ser mais antagónicos, ainda que exibissem os melhores Paços do Concelho da região. Em Lagoa, foram inúmeros os elogios do governador civil aos órgãos administrativos, enquanto, em Lagos, as críticas atingiram o auge, alvitrando o governador a exoneração dos edis, por incompetência e corrupção.

Por outro lado, Lagos constituía um dos concelhos com menos pobreza e com maior número de escolas privadas, destacando-se no contexto regional. Se os políticos eram inaptos, a sociedade local era mais afortunada e valorizava igualmente a instrução.

Todavia, outros concelhos e avaliações aguardavam Aires Garrido naquele Algarve de 1867, como veremos já na próxima semana.

 

(continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

Leia também as duas primeiras partes deste artigo:
O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Castro Marim e Faro

 

 



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