O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

Pese embora uma penúria e atraso generalizado, causou estupefação ao governador o contentamento com que os aljezurenses e alcoutenejos viviam

Fotografia de Aljezur  – Col. Família Cintra no livro «Aljezur 1869-1969, Memórias»

Aires Garrido, governador civil de Faro, iniciou, na sequência da publicação da Portaria de 1 de Agosto de 1866, um périplo pelo distrito, após o qual elaborou um relatório para apresentar ao governo.

Como já aqui lembrámos, o país encontrava-se em crise e, para equilibrar as contas públicas, elaboravam-se, por aqueles anos, várias reformas, de entre elas a administrativa, que previa a supressão de diversos concelhos.

Por outro lado, as leis de saúde pública, tão caras ao liberalismo, como a construção de cemitérios, a par da gestão da rés pública, constituíam elementos de atenção em cada concelho.

Ignoramos quando o governador iniciou ou terminou a viagem, bem como o meio de transporte utilizado, é provável que o barco tenha sido a opção. Ou quiçá através da Estrada Real n.º 78, a génese da atual EN 125, que em 1866/67 já estava em grande parte concebida.

O Relatório, concluído em abril de 1867, encontra-se organizado alfabeticamente, ressalvando que Albufeira foi o primeiro concelho visitado.

Antes de iniciarmos as descrições, advertimos o leitor que estas são tudo menos românticas ou bucólicas, já que espelham uma realidade dura e rude e podem até causar algum incómodo.

A História, todavia, não regista só factos prazenteiros, também os menos positivos acompanharam os nossos antepassados e servem para nos lembrar, mais não seja, o privilégio de vivermos no Algarve dos nossos dias. Apesar de todas as adversidades que atravessamos, nada se compara à miséria e ignorância de antanho.

Fotografia de Albufeira nos finais do século XIX

Regressemos então a 1867, mais concretamente à vila de Albufeira. De entre outros aspetos, referiu Aires Garrido que «tem a villa cabeça do concelho 361 fogos em logar de 137 que tinha em 1839; foi ella quasi inteiramente incendiada em 1833 pelos guerrilhas do Remechido, ficando os seus edificios reduzidos a pardieiros, tem porem renascido successiva, posto que lentamente, achando-se reedificadas quasi todas as antigas casas e construidas muitas novas; a par do que tem a câmara effectuado diversos melhoramentos, alinhando as casas, alargando e calçando as ruas, adoçando as subidas e reedificando os paços do concelho; são estes bastante acanhados ainda, não comportando além da casa das sessões e da secretaria municipal, mais que a administração do concelho, mas tudo regular e decente, estando as mais repartições públicas muito mal accommodadas em casas própria ou de aluguer; mas a câmara já comprou uma casa contigua aos paços do concelho e a instancias minhas vae effectuar a compra de outra que segue áquella, o que feito e mediante algumas obras indispensáveis, pode reunir no mesmo edifício o tribunal judicial, a repartição de fazenda e a estacão telegraphica».

Se é verdade que a vila, vítima da fúria da guerrilha de Remexido, recuperara 30 anos depois, com novas edificações e melhoramentos públicos, havia um enorme contratempo, comum à maioria dos concelhos algarvios: a «câmara se acha, como quasi todas as do districto, em apuros financeiros que demandam algum tempo para deixarem de actuar».

Com uma dívida passiva alta e grande parte dela incobrável, a autarquia não podia «prover as necessidades que o municipio reclama».

Nomeadamente, a construção de um novo cemitério por ser «o que ali ha, alem de deficiente, muito mal situado e indecente, e o encanamento d’um manancial de agua potável que brota a dois kilometros de distancia, para se construir um chafariz na villa, pois nenhum tem».

Igreja de Albufeira ao centro, num postal ilustrado

O abastecimento de água a Albufeira constituiu um problema secular, solucionado praticamente nos nossos dias. Ainda assim, Aires Garrido determinou a obra do cemitério como prioritária, de tal forma que, aquando redigia o Relatório, já este se encontrava em construção.

Quanto ao orçamento para a canalização da água e respetivo fontanário, informava que iria ser elaborado a breve trecho.

Em termos administrativos, o governador encontrou várias irregularidades na Câmara, enquanto na Junta de Paróquia da sede de concelho nada de notável assinalou. Esta ultimava a «reedificação da sua igreja, que fica mui decente e ate elegante». Obras provavelmente resultantes do sismo de 1856, que deixou uma parte do templo destruído, tal como a Sé de Silves.

Também nas Juntas de Paderne e Guia, aquele magistrado administrativo nada encontrou, a não ser o atraso na prestação de contas. Nestas freguesias, escreveu, «ha cemiterios menos mal situados, decentes e acabados».

A vila detinha um hospital, cujo edifício se encontrava em mau estado, com uma capacidade de três doentes, sendo gerido pela Misericórdia de Albufeira.

Em termos de ensino, existiam no concelho duas escolas masculinas, com uma frequência regular de 96 rapazes, de um total de 637. Por sua vez, as cerca de 600 meninas, com idade entre os 7 e os 14 anos, não frequentavam qualquer escola, por a mesma não existir.

Assim, do total de crianças menos de 8% tinham frequência escolar.

A população dos concelhos não é mencionada no Relatório, mas sabemo-la através dos Censos de 1864, no caso em apreço era de 7 453 indivíduos, dos quais 133 pediam esmolas nas ruas para sobreviver, enquanto 221 viviam da caridade pública, sem mendigar. Apesar desta realidade, não havia associações de socorros mútuos no concelho.

O governador civil não deixou Albufeira sem salientar o interesse, vontade e zelo que encontrou no presidente da autarquia, o que o deixou confiante nas alterações que se impunham praticar.

Atitude e realidade mais antagónicas foi o que encontrou em Alcoutim. Sobre as terras alcoutenejas, o segundo concelho que se debruçou, na altura com 8 063 habitantes, escreveu: «n’este concelho, cuja cabeça tem apenas 90 fogos, achando-se em grande decadencia, como o mostram as muitas casas deshabitadas e ate desmoronadas que n’ella se encontram, a administração municipal é tal qual pode esperar-se de uma câmara, cujos vereadores são quasi todos analphabetos, sendo quem ali dirige tudo o escrivão da camara, que o é também da administração do concelho e da fazenda, e dando-se a circumstancia de ser o presidente alem de sub-delegado do procurador regio, escripturario de fazenda, e n’esta qualidade subordinado ao escrivão da mesma camara».

A carência de pessoas habilitadas era dramática, um só indivíduo ocupava quase a totalidade dos cargos de escrivão, com o cúmulo de ser subordinado dele mesmo.

Para o estado de ruína da vila, contribuíam até os edifícios públicos: «a casa da camara acha-se em deplorável estado e especialmente os telhados, e assim as casas da administração, do tribunal, prisões públicas, as calçadas das ruas, o caes junto do Guadiana, emfim tudo o que se acha a cargo da camara d’este concelho».

Negligência que se estendia às receitas da autarquia, afinal havia dívidas por cobrar com mais de 20 anos.

Porém, as surpresas desagradáveis não haviam cessado: «não ha no concelho uma botica [farmácia], nem um unico facultativo [médico], e comquanto a camara creasse ultimamente um partido de 400$000 reis para medico e outro de 70$000 reis para um boticário, nem se acham providos, nem ainda abriram concurso, porque não teem no orçamento meios para fazer face a estas despezas».

Se tal já era questionável, o pior é que «nem se acham mui dispostos a vota-los, apesar das minhas ordens, e das recommendações que lhes fiz no acto da visita, porque não estão convencidos da necessidade de os haver no concelho», afinal todos viviam «mui satisfeitos com os curandeiros com que se tratam». Se havia endireitas e benzedeiras, para quê um médico ou farmacêutico?…

Em termos de necrópoles, «o cemiterio da villa é tolerável, assim como os das freguezias do Pereiro e Vaqueiros; o de Giões esta incompleto e o de Martim Longo mal situado, por estar dentro da povoação».

Por tudo isto, Aires Garrido advertia que o concelho apenas se poderia justificar «pelo isolamento em que se acha n’um angulo do districto a oito léguas de distancia das povoações mais proximas, que são Castro Marim e Villa Real de Santo Antonio».

O governador dava nota ao governo de que havia deixado instruções para serem promovidas «as obras, melhoramentos e adopção das providencias que este concelho reclama», todavia logo acrescentava «não confiando comtudo no feliz resultado de minhas diligencias, por isso que da parte dos habitantes e das respectivas corporações administrativas e auctoridades locaes se não encontra ali a menor cooperação ou auxilio».

Afinal, «convencidos de que pela situação do concelho não pode elle ser supprimido, entendem que a auctoridade superior se conforma por necessidade com deixa-los viver a seu modo, e contam ir assim disfructando as vantagens inherentes ao serviço dos cargos que occupam».

Perante esta realidade, não era de estranhar que a contabilidade municipal, apesar de regulada havia 17 anos, não estivesse ali organizada como tal, resumindo-se «somente o livro da receita e despeza diária», o qual achou regular.

Nas juntas de paróquia, a situação era distinta, com os orçamentos aprovados «umas até 1866 e outras até 1865», enquanto os da câmara se quedavam pelo ano económico de 1850-1851, e apesar de enviados alguns anos seguintes, faltava «ainda a maior parte, que sem cessar reclamo», sem sucesso, acrescentamos nós.

Não existiam associações de socorros mútuos e, em termos de mendicidade, 71 indivíduos pediam esmola para sobreviverem, enquanto 46 não o faziam, mas viviam exclusivamente de caridade.

Já no ensino, contavam-se 5 escolas públicas, frequentadas regularmente por 38 rapazes e uma rapariga, de um total de 1 363 crianças com idade escolar, ou seja menos de 3% frequentava a escola. Uma descrição dramática dos povos do Nordeste Algarvio.

Fotografia de Aljezur cerca de 1880 – Col. Família Mendonça e Costa no livro «Aljezur 1869-1969, Memórias»

Na outra extremidade da região, em Aljezur, o governador encontrou uma realidade muito próxima da alcouteneja. Sobre Aljezur, com uma população de 3 956 habitantes em 1864, escreveu: «este concelho, que nem chega a contar 1:000 fogos e que tendo sido supprimido pelo decreto de 24 de outobro de 1855, foi restaurado pela lei de 10 de setembro de 1861, tem apenas em favor de sua existencia a distancia de cinco leguas de caminhos quasi intransitaveis, entre a respectiva cabeça e a do concelho de Monchique, ao qual deve, no meu entender, ser annexado logo que uma boa estrada ligue entre si estas duas villas e as principaes povoações de ambos os concelhos actuaes; porquanto nem tem pessoal suficientemente habilitado para o serviço dos cargos publicos, nem pode sem grande vexame dos povos occorrer ás despezas indispensaveis para sustentação da sua autonomia».

Afinal, mesmo que a Câmara pretendesse a construção de um novo edifício, por o existente ser deficiente, para albergar nele todas as repartições públicas espalhadas pela vila, teria de lançar pesados impostos sobre os seus munícipes, o que considerava inexequível, pela pobreza dos habitantes e passivo da autarquia.

Até os vencimentos dos funcionários eram ali muito diminutos. Mas, tal não impedia que estes fossem zelosos, «não obstante, devo declarar que encontrei a escrituração clara e em dia; assim na administração de concelho como na secretaria da camara, não tive a notar faltas essenciaes, e achei approvadas as contas de receita e despeza municipal até 1864-1865 inclusive, e assim tambem as das juntas parochiaes de Aljezur e Odeceixe, e só em atrazo as de Bordeira».

À semelhança de Alcoutim, também aqui não havia médico ou farmacêutico, «não havendo no concelho mais do que sangradores, e nem uma botica, tendo por isso os habitantes ou de perecer a mingua de tratamento, ou de recorrer a algum dos concelhos mais proximos a custa de despezas, para que mui raros são os que estão habilitados».

Já o cemitério local, «alem de pequeno e arruinado, esta muito mal situado porque dista apenas 20 metros das habitações mais proximas; os de Bordeira e Odeceixe carecem, o primeiro de ser acrescentado e o segundo de consideráveis reparos».

No concelho, havia três escolas masculinas instaladas em casas sem condições, «nem ha outras melhores que a câmara ou as juntas parochiaes possam alugar, nem se prestam a qualquer sacrificio para as melhorar, nem será fácil obter que se construam edificios em condicoes de mediana sufficiencia para este fim». Com 631 crianças em idade escolar (326 rapazes e 305 raparigas), somente 49 miúdos a frequentavam, cerca de 8 %.

Mas os constrangimentos da pena do governador ainda não haviam cessado: «não ha no concelho um relogio publico», para logo acrescentar, «emfim carece-se ali de tudo».

Lembrava a utilidade de canalizar as águas das ribeiras de Aljezur e Odeceixe, com o objetivo de tornar mais produtivos os terrenos e mais salubres as povoações adjacentes.

Considerava mesmo aquelas localidades como as «mais pobres e miseraveis do Algarve». As condições de salubridade não ajudavam e encontravam-se até agravadas pela «cultura do arroz, sem respeito algum as prescripções dos regulamentos sanitarios que ali são letra morta».

Não obstante esta famigerada realidade, ficou admirado porque, «sem embargo, vivem satisfeitos no estado de atrazo em que se acham e no meio das privações que soffrem, desejando conservar a sua independencia municipal». Autonomia que voltou a frisar não fazer sentido quando houvesse estrada para Monchique.

Advertindo, ainda assim, que continuaria a dar apoio para melhorar «n’este concelho os ramos de administração que mais o carecem», embora, com expetativas muito baixas, «quanto mais insto, mais me convenço do pouco resultado que poderei obter, porque a todos os melhoramentos e reformas se me oppõem com tenaz resistência».

A Misericórdia detinha um hospital, cujo edifício podia albergar 12 doentes, embora se encontrasse também em mau estado. Em termos de mendicidade, 40 pobres viviam de caridade pública, sem esmolar, a que se adicionava mais 117 que pediam pelas ruas.

Aires Garrido foi particularmente duro para com os concelhos de Alcoutim e Aljezur. Se, no primeiro caso, não deixou de indiretamente sugerir a sua extinção, no segundo, apesar de ter encontrado uma administração zelosa, as carências em termos populacionais e económicas não lhe deixaram dúvidas, aquela impunha-se.

Refira-se que todas as municipalidades analisadas careciam de novos edifícios e em todas elas o déficit era crónico. Mas se, em Alcoutim ou Aljezur, reinava a indiferença das autoridades locais, em Albufeira, o presidente da Câmara demonstrou empenho e interesse nos pareceres de Aires Garrido.

Por sua vez, a frequência escolar era baixíssima, quase 8% em Albufeira e Aljezur e aproximadamente 3% em Alcoutim. Já os edifícios escolares eram na generalidade maus, a instrução de todo era uma prioridade da sociedade.

O litoral também ainda não era sinónimo de riqueza e o concelho de Alcoutim registava não só mais habitantes que Albufeira, como muito menos mendicidade.

Pese embora uma penúria e atraso generalizado, causou estupefação ao governador o contentamento com que os aljezurenses e alcoutenejos viviam. Todavia, caro leitor, a realidade descrita para estes concelhos não era a exceção no Algarve de 1867, como veremos…

 

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

Leia também a primeira parte deste artigo:
O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

 

 



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