O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Castro Marim e Faro

Longe de um Algarve romântico ou idílico, as descrições são por vezes chocantes aos olhos dos algarvios do século XXI

O governador civil de Faro Aires Garrido visitou, em 1866/67, todo o distrito, dando desta forma execução à Portaria de 1 de Agosto de 1866. A visita pretendia avaliar as carências de cada concelho, bem como o rigor da gestão administrativa em diferentes entidades e instituições.

Do périplo resultou a elaboração de um detalhado Relatório, com informações específicas de cada município, apresentado depois ao governo, que aqui temos vindo a dissecar.

Longe de um Algarve romântico ou idílico, as descrições são por vezes chocantes aos olhos dos algarvios do século XXI. Todavia, demonstram-nos a realidade de uma outra região de há mais de 150 anos, onde tudo era diferente…ou talvez não? Descobrir as diferenças, mas também as semelhanças é o desafio que deixamos ao leitor.

A viagem desta semana desenvolve-se nos concelhos de Castro Marim e Faro.

 

Sobre Castro Marim, escreveu aquele magistrado administrativo: «o concelho de que é cabeça a antiga villa d’este nome, a qual conta hoje 330 fogos, vive com difficuldade por falta de gente habilitada para os empregos publicos e de meios para custear as despezas que exige a sua autonomia municipal. A camara é composta de gente pela maior parte incompetentíssima, bastando notar que por occasião da minha visita não foi possivel reuni-la, porque um dos vereadores não quiz abandonar a rega de uma horta em que se achava occupado, outro não pode desembaraçar-se a tempo dos affazeres do seu officio de ferrador, etc., e é por estes dois motivos que o concelho nem pode dizer-se bem administrado, nem poderá fazer quaesquer despezas necessarias para obter os melhoramentos de que tanto está carecendo».

A desconsideração para com Aires Garrido foi total, mas evidencia também que as prioridades dos vereadores castro-marinenses eram primeiro de natureza pessoal e só depois o coletivo, que representavam.

O governador, porém, não se intimidou e qualificou aqueles edis como incapazes, frisando carecer o concelho de muitas «obras que ali se tornam de primeira necessidade e que não ha esperanças de effectuar emquanto as cousas permanecerem no estado em que se acham».

Uma mudança nos destinos da autarquia era tida como primordial, mas não o suficiente, como veremos. A diferença entre as despesas e as receitas próprias da edilidade era colossal.

Afinal, «não havendo ali commercio nem industria alguma alem da agricola, sao as despezas municipaes custeadas por uma derrama, por meio da qual se pagam os vencimentos dos empregados administrativos e municipaes, e o material do serviço, não havendo outros sobejos para melhoramentos alem da dotação para as estradas de terceira ordem». Vivíamos em plena Regeneração e a construção de estradas era considerada prioritária.

Não obstante, «a casa da camara é muito deficiente, algumas ruas estão carecendo de ser calçadas, o cemiterio da villa é situado no centro d’ella e dentro do recinto do castello, sendo a sua area a de uma igreja caída, carecendo-se de o remover de ali para local conveniente, o caes precisa de reparos, é má a casa da aula, emfim são muitas as necessidades do concelho».

Carências às quais Aires Garrido prometia atenção, sem descurar, como já o havia feito noutros municípios, que «pouco ou nenhum auxilio» esperava obter dos habitantes.

Quanto aos cemitérios, para além de destacar que a vila precisava de um novo, escreveu «das duas freguezias ruraes carecem tambem de despezas, um para se completarem as obras de sua construcção, e o outro para reparar as suas ruínas».

Similarmente, outras obras impunham-se: «são insufficientes e inconvenientes as casas das respectivas escolas primarias, e estão com necessidade de obras as igrejas, e mais do que todas as da villa, ao passo que das confrarias e especialmente de uma que ali ha mais rendosa em esmolas e oblatas, tudo se gasta em festas e suffragios sem se curar de outra cousa».

Recorde-se que Aires Garrido ficou escandalizado com as prioridades da confraria de Nossa Senhora dos Mártires, como já aqui recordámos, tendo mesmo demitido a mesa.

 

Os orçamentos da Câmara encontravam-se aprovados até 1852-1853, aguardando os anos restantes a ratificação do governo civil. Também os das «parochias estão approvadas até 1865 as de Castro Marim e Azinhal, e até 1863 a de Odeleite».

O governador fez ainda uma derradeira proposta, ou melhor, uma constatação: «este concelho está tão proximo do da Villa Real de Santo Antonio, que as villas cabeças de um e outro apenas distam entre si meia legua, pelo e porque, separadas, nem uma nem outra podem sustentar convenientemente a sua autonomia e ocorrer ás necessidades e encargos quo ella exige, convem e é de reconhecida necessidade reuni-los em um só municipio, o qual por este modo virá a compor-se de perto de 3:000 fogos, e poderá, como é indispensavel, pagar ordenados rasoaveis a seus empregados e dispor de meios para os melhoramentos materiaes que um e outro carecem».

Lembrava mesmo que «a freguezia de Odeleite é a que fica a maior distancia de Villa Real, mas nada perde com isso porque a distancia de Castro Marim é igual».

Agregar os concelhos para os fortalecer nos mais diversos sentidos era a sua sugestão ou antes determinação.

Na vila, existia a Misericórdia e um Compromisso Marítimo, com 316 sócios. Em termos de mendicidade, 194 pessoas viviam exclusivamente de mendigar, enquanto 28 sobreviviam da caridade pública, ou seja, 3% da população do concelho, na época com 7 046 habitantes (Censo de 1864), era paupérrima.

Por fim e relativamente ao ensino, existiam 3 escolas masculinas (uma em cada freguesia), frequentadas regularmente por 55 rapazes, de um total de 517. Não existia escola para meninas, não obstante o número de raparigas ser de 401. Face ao exposto, somente cerca de 6% de miúdos, entre os 6 e os 14 anos, frequentava um estabelecimento de ensino.

Em suma, Castro Marim era uma pequena vila, mal administrada, com um elevadíssimo deficit na autarquia e sem grande ambição por parte dos políticos que comandavam os destinos do concelho.

Situação semelhante ocorria nas outras instituições, onde as diversões tinham prioridade sobre quaisquer outras necessidades básicas locais, como o apoio à mendicidade ou ao ensino.

 

E na capital de distrito? Seria Faro um exemplo neste desconcertante périplo que temos vindo a revisitar? Vejamos o que escreveu o governador. «A camara de Faro viveu por largos annos em completa indolencia com relação aos melhoramentos materiaes que o concelho exigia e as necessidades mais palpitantes do serviço a seu cargo; ultimamente despertou e começou por calçar as ruas da cidade, (…) achando-se já calçadas quasi todas as ruas». Vencida a letargia, os farenses embelezavam a cidade com o empedramento das suas artérias, mas quedavam-se por aí, «porque sendo Faro uma capital de districto e provincia, com rasão se nota que não tenha illuminação, que a sua chamada casa da camara sirva apenas para as sessões do corpo municipal, não cabendo n’ella a secretaria e archivo; que as cadeias publicas além de estreitas e insalubres para os presos, sejam um foco de infecção para a cidade».

Carências que não enobreciam a urbe capital, mas não as únicas: «que não tenha um mercado publico; que careça de uma fonte, servindo-se os habitantes de aguas de poços descobertos e sujeitos a receberem todas as immundicies que a ignorância de uns e a malicia de outros n’elles quer depositar».

Como se tudo isto não bastasse, não havia «uma casa para tribunal judiciario nem para a accommodação de qualquer outra repartição d’aquellas a que a camara é obrigada a fornece-la».

Mas, caro leitor, estas eram as faltas principais, pois, segundo Aires Garrido, havia «por satisfazer muitas outras que seria longo enumerar».

Em síntese, Faro era uma terra como outra qualquer, carente de infraestruturas e investimento. O governador reconhecia que a elevada despesa da autarquia não permitia às sucessivas vereações promover grandes obras, sem aumentar desmesuradamente os impostos, responsabilidade que nenhum edil queria tomar.

A solução que propôs passava pela poupança e em simultâneo pelo crédito, que a câmara não recusava, traçando, como prioridades de investimento, «começar pela obra da cadeia e casas para accommodações das repartições publicas que ella [câmara] é obrigada a promptificar, esperando que para este fim lhe seja concedido o edificio do castello, que já pediu, e que de novo vae pedir, a fim de minorar quanto possivel as grandes despezas que esta obra exige».

O governador Aires Garrido diligenciava para que Faro não se limitasse apenas a ostentar o honroso título de capital, mas que o fosse efetivamente, com todas as infraestruturas comuns a uma cidade principal.

O cemitério da cidade estava concluído, «bem situado, decente e tem sufficiente capacidade para o numero annual dos óbitos», mas nem por isso deixou de ser uma preocupação para o governador, é que «ha aqui duas ordens terceiras que teem cemiterios proprios, nos quaes procuram sepultura para os seus finados quasi todas as familias da cidade».

Ainda que um fosse tolerável, o outro carecia «das condições necessarias para continuar a servir a similhante uso». Mas esse não era o maior problema, é que se tratava de espaços privados, e logo com dois inconvenientes, «não pode n’elles exercer-se como no cemiterio publico a conveniente fiscalisação, e a camara soffre consideravel prejuizo nos seus rendimentos a que tem direito». O último era primordial para a autarquia aumentar as suas receitas.

Não deixando de reconhecer que para limitar as inumações naqueles espaços carecia do apoio da população, «a qual a receberia muito mal se só se tratasse de a adoptar por meio da força, poisque alem de toda a população, quasi, pertencer a uma das ditas ordens, é nos respectivos cemiterios que jazem seus paes e parentes, e é por conseguinte para ali que todos desejam ser levados, é tambem ainda pela circumstancia de estarem juntos das igrejas e terem muitos suffragios, dos quaes só assim julgam participar». Um problema cuja solução não se apresentava fácil. Nas freguesias rurais as necrópoles eram «toleráveis».

No que à administração diz respeito, escreveu: «encontrei mui regular a escripturação, e os cartorios e archivos em bom estado, especialmente na secretaria da camara municipal, onde o serviço se faz com methodo e ordem».

Os orçamentos encontravam-se aprovados, contrariamente ao que sucedia nas juntas de paróquia, que constituíam mesmo uma exceção no contexto regional.

Em abril de 1867, redigia Aires Garrido: «até ao presente porém só deixaram de me ser presentes os orçamentos de duas parochias, e o que é mais notável, ambas do concelho da capital do districto».

Afinal, os vogais nunca tomavam posse e apesar de, em Setembro, o governador os forçar a tal, a morte pouco depois do pároco deitara tudo a perder. Em suma, como «ainda não appareceram os livros, títulos e mais papeis do archivo parochial, não tem a junta feito orçamento por ignorar quaes os bens e rendimentos que lhe cumpre administrar» e assim se protelava a gerência.

A Misericórdia de Faro administrava o hospital, cujo edifício se encontrava em «muito bom estado», provido de mobília, bem como de vestuário, até para casos extraordinários de epidemia. Ainda assim, a mesa, estava por diligências do governador, a cobrar dívidas com mais de 20 e 30 anos de atraso.

Existiam associações de socorros mútuos, com 128 sócios «artistas» e 30 «auxiliares», bem como um Compromisso Marítimo (com estatutos de 1552 e em 1866 o quinto com maior receita no contexto regional).

A mendicidade, como em todo o Algarve, também aqui se fazia sentir: 509 indivíduos pediam na via pública, dos quais 146 tinham menos de 14 anos. Existiam ainda 615 pessoas que sobreviviam da caridade pública, sem mendigar. Ao todo 1 124 farenses não tinham qualquer rendimento para sobreviver, ou seja cerca de 5% da população do concelho, com 22 747 habitantes (Censo de 1864).

Quanto à escolaridade, 4 escolas públicas masculinas e 2 particulares ministravam o ensino a 191 e 117 alunos (19%), respetivamente, de um total de 1 614 rapazes em idade escolar.

Quanto a escolas femininas apenas 1 pública, na qual estudavam 36 raparigas (2%), das 1 702 existentes.

Duas freguesias no concelho não tinham escola e a da cidade era «alugada pela camara, e não satisfaz, mas terá de servir emquanto se não proceder a construcção do edifício», que a autarquia pretendia levar a efeito com a habilitação que efetuara ao legado do Conde Ferreira.

Ainda assim, Faro revelava duas particularidades ao nível do ensino: a percentagem de rapazes que frequentava as aulas era de 19%, a cifra mais elevada até agora nos concelhos percorridos, e o número de matriculados coincidia com os alunos que frequentavam regularmente as aulas. Por norma, as assiduidades eram bastante diminutas.

Os farenses haviam adormecido à sombra do prestígio proporcionado pela escolha da cidade para capital de distrito, 30 anos antes, e em resultado a urbe estagnara, carecendo das principais infraestruturas, não se evidenciando no contexto regional.

É certo que não se comparava com a inércia de Castro Marim, onde a vereação, tida como maioritariamente incompetentíssima, nem se reuniu, preocupada que estava com os seus afazeres pessoais, em detrimento do interesse coletivo, frisando o governador a «reconhecida necessidade» de agregação daquele concelho com Vila Real.

Mas caro leitor, se Faro, a capital de distrito e província, não constituía exemplo, haveria algum concelho do Algarve que se destacasse pela positiva, no juízo de Aires Garrido? Claro que sim, como veremos já no próximo capítulo…

 

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

Leia também as duas primeiras partes deste artigo:
O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

 



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