O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

Em 1867, o Algarve era tudo menos idílico ou cosmopolita

Hospital da Misericórdia de Faro

Por portaria de 1 de Agosto de 1866, foram os governadores civis intimados a visitar anualmente os distritos que chefiavam, uma prática que advinha da lei, «por ser este o meio mais adequado para se conhecerem as verdadeiras necessidades dos districtos, e para se prover ácerca d’ellas por modo conveniente».

Além de fiscalizarem os diferentes ramos da administração, ficavam incumbidos de elaborar uma síntese para apresentarem «para que em vista d’esses relatorios possa o governo attender ás necessidades da publica administração».

Os ânimos em Portugal haviam finalmente serenado, a turbulência advinda das Invasões Francesas (1807-1811), das Lutas Liberais (guerra civil entre 1832-1834) e da Patuleia (1846-1847) eram agora passado.

Em 1851, um derradeiro golpe militar dava lugar à Regeneração, um período marcado pelo esforço de modernização do país relativamente à Europa, que já descolara em termos de desenvolvimento. Têm assim início a construção de estradas macadamizadas e de vias férreas um pouco por todo o lado.

Todavia, poucos anos depois, em meados da década de 1860, as finanças e a divida pública estavam num estado clamoroso ou, por outras palavras, o país estava em crise.

A situação, segundo Jorge Dias Fernandes, em a «Impopular Reforma Administrativa de 1867», resultava da conjuntura internacional desfavorável, que impedia o recurso a empréstimos estrangeiros, a que se juntava a quebra das receitas oriundas dos emigrantes no Brasil e, como se não bastasse, a tudo isto acresciam algumas políticas governamentais erradas.

Caro leitor, estamos na década de 1860, qualquer semelhança com a atualidade é pura coincidência.

Mas hoje, tal como então, os governos procuraram cortar na despesa, contudo, sem o resultado pretendido; o défice crescia e era elevadíssimo em 1867.

 

Câmara de Faro

 

Neste âmbito, foram elaboradas várias reformas, entre elas a da administração local, que previa a modificação na estrutura do poder local e divisão do território, bem como alterações tributárias. Modificações que pressupunham desde logo a extinção de concelhos, uma realidade bem patente no relatório redigido pelo governador civil de Faro, dado à estampa, juntamente com todos os outros distritos, em 1868.

Na verdade, trata-se hoje de um documento fundamental para compreendermos o país e o Algarve naquela época. Uma região onde a construção de cemitérios, tão caros ao liberalismo, avançava de uma forma morosa e o desenvolvimento advindo da Regeneração já se fazia sentir.

O comboio havia chegado a Beja em 1864, enquanto no Algarve já decorriam obras de construção da linha. Por sua vez, a rodovia macadamizada era uma realidade entre Loulé e Faro e na hoje designada EN125 (na época Estrada Real n.º78).

É certo que o mar continuava a constituir a «estrada» de ligação do Algarve a Lisboa e ao mundo. Então, como sempre, era de barco que as «novidades» materiais e culturais chegavam aos algarvios.

Coube a Aires Guedes Coutinho de Garrido (1805-1874), natural de Penela e formado em direito, que tomara posse como governador civil de Faro a 8 de Maio de 1866, visitar o distrito e apresentar o resumo do que vira ao governo, presidido por Joaquim António de Aguiar.

O relatório, concluído a 24 de Abril de 1867, foi dividido em duas partes: a primeira, especificamente sobre cada concelho [gestão dos serviços municipais e paroquiais (antecessores das juntas de freguesia)]; a segunda dedicada a diversos ramos da administração pública presentes no território (instrução, asilos de infância desvalida e mendicidade, associações de socorros mútuos, estabelecimentos de piedade e beneficência, entre outros).

Não escamoteando que apenas dirá a «pura expressão da verdade», Aires Garrido logo afirma que «a administração em geral não é boa».

Afinal, a maioria das Câmaras Municipais eram «compostas de pessoas que pouco ou nada se interessam pelos melhoramentos públicos» e, ainda assim, era necessário pedir-lhes por favor que aceitassem o cargo, uma vez que, pelos afazeres que detinham, não logravam muito tempo para se dedicarem à causa pública.

Os funcionários municipais também não eram muitos e, em resultado, os arquivos não estavam organizados (por falta de armários muitos documentos eram guardados, em maços, no chão sobre os ladrilhos), nem a maioria dos livros continha termos de abertura ou de encerramento.

Os assuntos eram organizados por anos e não de acordo com as temáticas e, não raras vezes, dizia-se que não havia determinado documento, para não o procurar, optando antes por pedir segundas vias ao governo civil. Ao nível das Juntas de Paróquia, a situação era semelhante.

A maioria não apresentava orçamentos anuais de receita e despesa, «a falta de escripturação regular, a ignorancia e indifferença dos vogaes da maioria d’estas corporações» era a regra e não a exceção.

A cobrança de dívidas não era efetuada, «só pagava quem queria», enquanto os orçamentos pautavam-se ainda por despesas excessivas, e outras ilegais. Assinalava Aires Garrido que eram votadas e aprovadas «despezas para jantares e refrescos» e havia até paróquias com orçamentos para festejos a todos os santos que existiam na igreja e «assim outros abusos e desperdícios que seria longo enumerar».

Como resultado, as verbas não chegavam para subsidiar escolas ou obras de beneficência que se impunham e, frequentemente, até os paramentos das igrejas, em dias de festa, eram pedidos por empréstimo a paróquias vizinhas, até mesmo de Espanha.

Por tudo isto, Garrido prometia que «todas estas aberrações vão deixando de existir, o que todavia exige improbo trabalho e demanda de tempo».

A gestão da roda dos expostos (crianças abandonadas à nascença e criadas por amas, subsidiadas pelas câmaras municipais) chocou aquele magistrado administrativo: «mui poucos serão os districtos em que a administração dos expostos se ache tão irregular como n’este a encontrei, e mais do que n’este creio que em parte alguma».

Não eram pedidos elementos às amas, de tal forma que se subsidiava quem não precisava e, muitas vezes, eram as próprias mães que entregavam os seus filhos para depois os recolherem com o subsídio. A maioria mudava de residência para um concelho distinto, pois, caso ocorresse o óbito da criança, continuariam a receber o apoio, ludibriando as autoridades.

 

Tavira em 1880

 

De acordo com o relatório, a fraude era a regra em todos os concelhos, à exceção de Faro e Tavira. O governador criou normas e fiscalização, extinguindo de imediato 8 rodas, subsistindo as de Faro, Tavira, Castro Marim, Loulé, Albufeira, Silves e Lagoa. A 30 de Junho de 1866, estimavam-se no distrito 1 339 crianças expostas. A população do Algarve era de 174.445 pessoas.

Em termos de estabelecimentos de piedade e assistência, existiam 17 Misericórdias, das quais 9 tinham hospital. Em Tavira, o hospital não dependia da Misericórdia, o do Espírito Santo, tal como em Portimão, onde «um legado denominado de S. Nicolau» era aqui administrado pela Ordem Terceira de São Francisco.

Existiam ainda 15 associações de socorros mútuos (9 compostas exclusivamente por pescadores – compromissos marítimos e 6 por artistas e operários), 3 celeiros comuns (emprestavam cereais mediante um juro aos agricultores) e 109 confrarias ou ordens terceiras de diversas invocações.

Se se tratava de instituições de âmbito associativo, a sua gestão não era melhor que a existente nos municípios ou paróquias.

No caso das Misericórdias, os orçamentos eram por norma desproporcionais entre as «despezas destinadas a actos de beneficência e as applicadas a festividades e suffrágios, pela maior parte não auctorisadas pelos estatutos e estranhas até à natureza d’estes estabelecimentos».

Havia instituições que tinham empregados a mais, e como se não bastasse muitos eram gratificados por serviços que deviam cumprir gratuitamente, entre outras irregularidades.

Em resultado, à exceção de Faro e Tavira, os edifícios onde eram recebidos os doentes eram acanhados, desprovidos de mobiliário e de roupa, apresentando alguns, segundo Aires Garrido, que visitara todos, um aspeto repugnante.

 

Castro Marim

 

Contudo, também existiam bons exemplos, como os hospitais das Misericórdias de Lagoa e Loulé, que sofriam melhoramentos por aqueles anos, por iniciativa de beneméritos locais, ou ainda o de Portimão. Das confrarias existentes, aquele magistrado eliminou várias, e de entre elas houve uma que o escandalizou, a de Nossa Senhora dos Mártires, de Castro Marim.

Desde logo, havia mais de dez anos que não apresentava contas, depois com um rendimento anual de cerca de 1000$000 réis que era totalmente dispendido na solenidade anual a Nossa Senhora, «á sombra do qual se têem praticado as mais escandalosas delapidações». É que, apesar da quantia avultada, a verba não chegava, pelo que propunha a venda de jóias e ainda assim «figurava no mesmo orçamento um deficit presumível de 26$000 réis». Contas que remeteu para serem «competentemente julgadas».

Perante esta apetência para festas, até parece que a pobreza não constituía problema. No distrito, viviam 2.783 pessoas exclusivamente de mendigar nas ruas, dos quais 544 tinham menos de 14 anos de idade. Aos quais se adicionava mais 1.673 que não mendigavam, mas viviam da caridade pública (246 com 14 anos ou menos).

Todavia, nada que escandalizasse a sociedade ou as confrarias, como vimos.

O governador atribuía este flagelo a várias origens. No caso das crianças, provinham maioritariamente dos expostos que aos 7 anos eram entregues às amas que os criaram. Estas pertenciam maioritariamente às classes mais pobres, não lhes propiciavam educação, nem as colocavam a aprender ofícios, começando cedo a esmolar a favor dessas mesmas amas, hábito que não perderiam em adultos.

 

Câmara de Lagos

 

Depois, se os miúdos padeciam de alguma enfermidade, procuravam as amas que esta não se curasse, «para mais attrahirem a compaixão e a beneficencia publica», o que não acontecia só com os expostos, «mas tambem, desgraçadamente, praticam alguns paes para com os filhos».

Por outro lado, a indolência e imprevidência da classe marítima, muito numerosa e que, em condições adversas (mar agitado, ou quando a pesca escasseava), não tinha outro recurso senão esmolar. Estávamos ainda muito longe dos apoios sociais: estes só chegaram depois de 25 de Abril de 1974.

A quase inexistência de fábricas e de oficinas também contribuía para esta dura realidade, lembrando aquele magistrado que, à exceção de três ou quatro estabelecimentos, onde se preparava a cortiça para exportação, «não há no districto uma só fabrica».

Acresciam as más práticas agrícolas (as terras não eram preparadas, adubadas ou regadas, as máquinas eram desconhecidas e as sementes não eram selecionadas) e muitos terrenos incultos, lamentando o governador que a ausência de estradas não possibilitava o transporte e com ele o comércio dos produtos agrícolas.

Tudo isto sem esquecer a educação. De um total de 28 844 crianças dos 6 aos 14 anos, só 2 211 frequentavam regularmente a escola, ou seja, nem atingia 8% do total. Existiam na região 48 escolas masculinas públicas e 14 particulares, já para o sexo feminino 5 escolas públicas (uma ainda sem funcionar) e 11 particulares.

Tais números levavam Aires Garrido a deplorar a pobreza, ignorância e preconceitos da maioria dos algarvios, que preferiam encaminhar os filhos para os trabalhos agrícolas ou para a pesca em detrimento da escola, sem esquecer que outros havia, não por falta de recursos, mas que desejavam que os filhos não recebessem «instrucção alguma, para não serem incomodados com o serviço de jurys e de cargos públicos não retribuídos».

Também os municípios e as paróquias não fomentavam a frequência escolar. Tinham mesmo, segundo o governador, «repugnância em votarem subsídios para casa e mobílias para a creação de novas escolas» e por norma os edifícios eram maus, «sem soalho, faltas de luz e de agasalho». Por sua vez, o reduzido vencimento dos professores não atraía as pessoas mais capacitadas para a profissão e menos ainda para lugares recônditos, como era a maioria do Algarve de então.

Perante este cenário desolador, o governador civil assinalava como positiva a segurança: «graças á boa indole d’estes povos, são raros os crimes de maior gravidade no districto». Indicava somente, desde a sua chegada a Faro, dois factos criminosos, um assassinato e uma tentativa de roubo, com arrombamento de casa por alta noite.

O primeiro, ainda que praticado por um estrangeiro, foi preso em flagrante e os indivíduos indiciados no segundo foram igualmente capturados todos no mesmo dia.

 

Castelo de Silves

 

Porém, tinha ainda um derradeiro constrangimento que não ocultou: faltava na maioria dos algarvios «a disposição e o interesse necessário para auxiliarem a acção da auctoridade na realização de muitos melhoramentos a emprehender», ao que acrescentava, «são causas que obstam mui poderosamente a que tudo se consiga com a brevidade que tanto seria de desejar».

Com políticos medíocres, funcionários incapazes e uma pequena elite retrógrada a ocupar cargos nas diversas agremiações, mais preocupada com a espuma dos dias, ou antes consigo mesma, em «jantares e refrescos», em detrimento de investimentos na educação, no combate à pobreza, ou mesmo materiais, em suma de traçar uma estratégia de mudança, o Algarve de 1867 era tudo menos idílico ou cosmopolita.

A ignorância, chico-espertice e indiferença reinavam.

Volvidos mais de 150 anos, reconhecem-se nos nossos dias muitas práticas e pensamentos que nos fazem lembrar que o tempo corre veloz, mas as mentalidades não se alteram tão lestamente.

Mas, afinal, o que disse Aires Garrido ao governo especificamente sobre cada concelho? É o que vamos contar nas próximas semanas. Retratos demolidores de uma outra realidade perdida nos anais da história regional.

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

 

 



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