Uma caminhada de quase 24 km e um almoço na Casa do Benfica

Hoje foram quase 24 km

T3-E10 – Calvinos / Alvaiázere

Ontem disse que o Albergue de Calvinos era de cinco estrelas. As abelhas (as boas, daquelas que fazem mel) devem achar o mesmo. Lá andei de toalha a apanhar várias e a devolvê-las à natureza (vivas, claro).

Entretanto chegou ao Albergue mais um peregrino, que neste caso é uma peregrina e portuguesa, ainda por cima. Lá perdi a exclusividade de ser o único português a fazer o Caminho. Mas continuo a ser o único algarvio, pois ela vem da parte sul do Ribatejo e entrou no Caminho em Valada, pela ponte Rainha D. Amélia (ver T3:E5).

Fui às compras num café/mercearia que existe aqui próximo (próximo, é relativo, foram dez minutos a andar bem para lá mais dez minutos a voltar) e o jantar foi uma partilha de conservas e conversas. Uma das histórias foi que ela, ontem, tinha encontrado um velhote finlandês encostado à beira dum estradão. Perguntou se ele estava bem, ele abanou a cabeça, puxou a perna das calças para cima e estava cheio de pensos: tinha sido atacado por dois cães que o tinham mordido, os mesmos cães que a tinham atacado. Ela conseguiu safar-se porque, entretanto, apareceu a dona dos bichos que lhe garantiu que os seus cães não mordiam ninguém. Entretanto, ajudou o finlandês que ficou no primeiro sítio em que se podia tratar.

Então vamos à crónica de hoje. Como referi, o Albergue era tão bom que, além das abelhas que mandei para fora, esta noite também albergou um raio de uns mosquitos que andaram a zunir à minha volta até de manhã. Mesmo enfiado no saco cama só com o nariz de fora, é chato.

 

 

A peregrina arrancou e eu ainda fiquei a fazer umas sandes, a arrumar a loiça e a tratar do lixo. Já tinha andado um par de quilómetros quando reparei que me tinha esquecido de tomar o pequeno almoço e da fruta que tinha comprado para trazer. Pelas minhas contas, os próximos peregrinos no albergue de Calvinos vão encontrar, além dos óleos, sal e coisas básicas para cozinhar, duas garrafas de cerveja, pão, salsichão, duas laranjas, meia dúzia de tangerinas e outras tantas pêras. E três garrafas de cerveja vazias, que a senhora da mercearia disse para deixarmos lá que o senhor que trata do albergue logo as devolvia.

O Caminho seguiu por uma autêntica montanha russa de sobe e desce, numa estradinha de alcatrão estreita, mas sem carros. Era estranho passar por casas, povoações e aldeias sem ver vivalma.

Passei do concelho de Tomar para o de Ferreira do Zêzere e um pouco à frente, duas placas com a simbologia dos Caminhos de Santiago. O problema é que apontavam em direções opostas, a da direita para o Caminho Areias e a da esquerda para o Caminho Portela e um cartaz explicativo. Qual escolher? Andei para um lado, andei para o outro. O da esquerda já mostrava uma forte subida e tinha três linhas. O da direita, segundo o cartaz, era mais fácil e estava profusamente descrito, com fotos e tudo. Acabei por ir à app que indicava o da esquerda como sendo o correto. Percebo que os municípios queiram levar os caminhantes a lugares que eles acham que são mais interessantes, mas o Caminho é o Caminho. Segui pela esquerda, por um trilho florestal coincidente com uma antiga via romana.

 

 

Uns quilómetros mais à frente vejo a minha colega peregrina sentada na beira da estrada, a descansar de dores no ombro e nas costas. Acabamos por fazer o resto da etapa juntos, a contar histórias. Toda a família dela faz caminhadas e já foram várias vezes a Fátima e a Compostela. Como uma das filhas mora à beira do Caminho, montou um albergue informal com dois beliches, quatro camas. Quem quiser ficar fica, convidam os peregrinos para jantar com a família e, muitas vezes, enfiam-lhes a roupa na máquina de lavar. O preço? É o que os peregrinos quiserem dar. E destas coisas também é feito o Caminho…

Entretanto já tínhamos descoberto que éramos do Benfica e não é que o primeiro restaurante que encontramos à entrada de Alvaiázere era na Casa do Benfica? Pronto, foi lá que almoçamos.

Ela estava pensando continuar, mas as dores nas costas e uma queda (felizmente, sem consequências de maior) já dentro da povoação fizeram com que parasse hoje aqui. Por solidariedade entre peregrinos emprestei-lhe Traumeel (passe a publicidade), uma pomada milagrosa que uma especialista em caminhadas me tinha indicado e com a qual me tenho dado muito bem.

Estava a tratar da entrada na pensão quando chegou um casal de peregrinos holandeses, que aqui também ficaram porque o homem tinha problemas no joelho. Receitei-lhe Traumeel…

Hoje foram quase 24 km, soube bem o banho/lavagem de roupa (pré secagem com centrifugação manual, vamos a ver se seca que o sol aqui está avariado, não tem força).

 

Leia os outros episódios da Temporada 3 da saga d’O Caminhante:

Episódio 1 – Junto à Sé de Lisboa, começa a Temporada 3 da saga do Caminhante
Episódio 2 – Hoje não temos couratos
Episódio 3 – Desventuras de um algarvio nas voltas da grande idade
Episódio 4 – Entre estradão e alcatrão, até ao pescador do peixe-gato com 10 quilos
Episódio 5 – O milagre da fonte à beira do caminho
Episódio 6 – Uma cabeçada no beliche, um cão muito mau e um final com pés de molho
Episódio 7 – O Caminhante na terra de Saramago
Episódio 8 – De Vila Nova da Barquinha a Tomar, há Vhils e “Caça Brava”
Episódio 9 – Nos Casais, o caminhante foi recebido com sinos

Leia mais um pouco!
 
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