O Caminhante na terra de Saramago

Dos 24km desta etapa, uma boa fatia foi à conta da cultura…

T3:E7 – Azinhaga / Vila Nova da Barquinha 

Ontem, ao jantar, éramos apenas cinco: o casal de americanos, que afinal não era casal, o letão da Letónia e um inglês com um sotaque tão esquisito que não se conseguia (ou eu não consegui) perceber patavina. O americano, para meu grande espanto, conhecia o vinho verde e foi o que bebemos. 

O pessoal estava (meio) estoirado e cheio de vontade de ir dormir, mas ainda houve tempo para irmos conversando sobre o problema da Letónia, dos lobos que se cruzam com os cães, resultando num híbrido perigoso e muito agressivo, e o caso dos ursos no Michigan, que adoram as sandes de atum que a malta leva nas mochilas, com resultados às vezes trágicos.

Mas a coisa mais estranha aconteceu com os americanos, que perderam um livro no início do percurso de ontem. Quando deram por isso, não voltaram atrás e continuaram a andar. Então não é que, quase no fim da etapa, encontraram o mesmo livro na beira do estradão? Por muitas explicações que se tentem arranjar, é (mais) um mistério dos Caminhos…

Hoje andei a deambular pela Azinhaga, a terra de José Saramago. Cumprimentei a sua estátua e lembrei-me daquele canadiano da minha idade com quem me tinha cruzado há dias. Antes de vir para cá arranjou uma professora de português que, nas aulas, lhe falou de música – referiu Sérgio Godinho e os Xutos e Pontapés – e de Saramago. Leu a versão em inglês das “Intermitências da Morte” e ficou um enorme fã do escritor. Já foi à Fundação José Saramago em Lisboa e quando terminar o Caminho vai passar por lá para levar livros.

Esperei pela abertura da delegação da Fundação que cá está e tive direito a uma visita muito interessante guiada por uma pessoa que se interessa. Por indicação dela visitei a rua onde estão cem oliveiras, cada qual com o nome de uma personagem dos livros de Saramago. São oliveiras jovens, com exceção das primeiras, que são velhas e têm o nome dos avós do escritor, Josefa e Jerónimo. A última oliveira foi plantada no dia em que Saramago faria cem anos.

Saí com a alma cheia e apanhei pela frente 7km da EN365, estreita, sem bermas, e com poucas sombras. Correu bem porque estive sempre atento ao trânsito e porque praticamente todos os motoristas quando me viam afastavam-se para a faixa contrária.

Na Golegã fui ao posto de turismo e a funcionária disse que a EN365 era uma queixa recorrente. Foi interessante ver uma cidade tão ligada aos cavalos, até o seu centro cultural se chama Equuspolis. Fiz um desvio para lá passar e, sabendo que era lá o museu municipal Martins Correia, obviamente que o visitei.

Cheguei a Vila Nova da Barquinha cansado, mas a necessidade de tratar da roupa aguçou o engenho e inventei a lavagem dois em um: lavar a roupa enquanto se toma banho. E até é mais ecológico, usa-se menos água.

Hoje não vi nem um único peregrino, mas o Caminho também tem destas coisas – dos 24km desta etapa, uma boa fatia foi à conta da cultura…

Leia os outros episódios da Temporada 3 da saga d’O Caminhante:

Episódio 1 – Junto à Sé de Lisboa, começa a Temporada 3 da saga do Caminhante
Episódio 2 – Hoje não temos couratos
Episódio 3 – Desventuras de um algarvio nas voltas da grande idade
Episódio 4 – Entre estradão e alcatrão, até ao pescador do peixe-gato com 10 quilos
Episódio 5 – O milagre da fonte à beira do caminho
Episódio 6 – Uma cabeçada no beliche, um cão muito mau e um final com pés de molho

 

Leia mais um pouco!
 
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