Uma cabeçada no beliche, um cão muito mau e um final com pés de molho

Foi um dia recheado de peripécias para o Caminhante

Descubra os três peregrinos com os pés de molho

T3:E5 – Santarém>>Azinhaga

O dia não começou nada bem. Enfiei uma cabeçada no poste do beliche, entrei em pânico porque não encontrava os óculos (que estavam na testa), o café onde pensava ir tomar o pequeno almoço ainda estava fechado (ontem tínhamos lá estado, a decoração eram relógios com a hora em várias cidades, mas o dono decidiu sancionar a Rússia e tirou o de Moscovo) e foi difícil descobrir o caminho para sair de Santarém (nas cidades é sempre assim). Mas pronto, vamos lá começar pelos acontecimentos de ontem à noite.

Ao jantar, além dos habituais canadianos e alemães, havia uma nova alemã de Viseu (era portuguesa, mas há muito tempo residente na Alemanha), um casal de americanos e um moço da Latvia. Aqui, dei barraca porque disse – Lituânia? E ele insistiu – Latvia, capital Riga!

Fez-se luz: ele era da Letónia e a figura que fiz fez lembrar aqueles que dizem – Portuguese? From Spain?

Depois deste infeliz início (não se esqueçam, lá em cima estão a Estónia, a Letónia e a Lituânia) lá contou ele as suas desventuras. O moço tinha comprado bilhetes de avião de Riga para Lisboa, com escala em Londres e no Porto. Foi barrado no check in da capital da Letónia (estou a escrever várias vezes para me penitenciar) porque, como ia passar por Londres e houve o Brexit, ia precisar de passaporte, que não tinha. Perdeu as passagens e acabou por voar direto da Letónia para Lisboa.

Na minha frente ficou a americana, a quem eu tentei (e acho que consegui) convencer que viesse fazer a Rota Vicentina e a Via Algarviana. É que, por coincidência, eu tinha levado uma revista que falava nisto. Fotografou as páginas para ir à net saber mais.

Entretanto chegou um típico americano: enorme, gordo, espalhafatoso, a falar muito alto. Sentou-se ao meu lado e acabámos por ter uma conversa muito interessante, quando descobriu que eu era português. A primeira observação que fez foi que nós era só turismo, turismo, hotéis e os ordenados desse pessoal eram muito baixos. Acabámos a discutir desde a política americana, a corrupção, os serviços de saúde e a liberdade de imprensa, entre muitas outras coisas.

A conversa foi tão absorvente que, quando reparo, o pessoal já estava a pagar a conta – e eu só tinha comido metade da minha dose. Esta coisa de saber como é que quem está de fora nos vê, é muito interessante.

 

Nevoeiro pela manhã

 

Voltando à caminhada, a saída de Santarém foi feita, muito apropriadamente, através da porta e calçada medieval de Santiago. Felizmente havia nevoeiro e, depois, algumas nuvens que evitaram que apanhasse muito calor.

A paisagem era, essencialmente, estradão entre vinhedos. Não tinha a noção de que havia tanta gente a trabalhar no campo e fui efusivamente saudado por um grupo de trabalhadores e trabalhadoras que plantavam/semeavam qualquer coisa que os meus (muito) poucos conhecimentos agrícolas não descobriram o que era.

Quando cheguei a Vale de Figueira, vejo sair do café uma peregrina e chego a tempo de ouvir o comentário da assembleia de velhotes sentado à porta: “…camada de malucos c’anda p’raí…”.

Entro para tomar um café e já lá estavam mais duas peregrinas. Meto conversa com o dono, pergunto se passam muitos (a resposta foi: Uiiii) e ouço uma voz lá de dentro – Este fala português?! Quando disse que era português e algarvio saiu logo o comentário – Adoro o Algarve, quem me dera viver lá!

 

Vinha com e sem rega

 

Continuando a andar e a cruzar-me com os muitos tratores que se veem a trabalhar por todo o lado, fui atacado por um cão.

O problema dele foi o excesso de confiança, porque veio em silêncio mas estava tão certo de que me ia morder que ladrou a um metro das minhas canelas, o que me permitiu reagir com o bastão. Falhado o primeiro ataque, começou a tentar alcançar-me correndo rapidamente à minha volta. Eu defendia-me, apontando-lhe o bastão e também andando à roda. Isto demorou um bom bocado, eu já estava a ficar tonto de tanto andar à roda, até que apareceu o dono, que agarrou o bicho garantindo que ele nunca mordia (ainda estou para ouvir um dono de cão dizer que ele morde). Desta vez foi por um triz.

Entretanto, fiz um bocado de manutenção do Caminho, usando o bastão como roçadora numas ervas que quase tapavam os sinais com as setas. Psicologicamente não sei se isto teria alguma coisa a ver com o susto que tinha apanhado.

Já quase no final reparei que vinham dois peregrinos atrás de mim e outros dois à minha frente. Estes eram o casal de americanos com quem tinha jantado ontem. Acabei por vir com eles hospedar-me no mesmo sítio, não sem que antes nos tivéssemos juntado seis peregrinos à entrada da Azinhaga, tendo alguns ainda ido pôr os pezinhos de molho no Rio Almonda.

 

 

Leia os outros episódios da Temporada 3 da saga d’O Caminhante:

Episódio 1 – Junto à Sé de Lisboa, começa a Temporada 3 da saga do Caminhante
Episódio 2 – Hoje não temos couratos
Episódio 3 – Desventuras de um algarvio nas voltas da grande cidade
Episódio 4 – Entre estradão e alcatrão, até ao pescador do peixe-gato com 10 quilos
Episódio 5 – O milagre da fonte à beira do caminho

 

Leia mais um pouco!
 
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