Quando as catástrofes caíram em cascata sobre os algarvios – O «annus horribilis» de 1855-56 (III)

O Relatório é um documento precioso, pese embora o contexto horrível em que foi redigido, e a tendenciosidade que apresenta, sempre elogiando as medidas tomadas e os poderes instituídos

«O reino do Algarve parece estar desamparado da misericordia celeste!» (Jornal «Imprensa e Ley», 20 de janeiro de 1856)

 

Continuamos a percorrer o Algarve e as catástrofes que se abateram sobre os algarvios no terrível ano de 1855-56.

Assim, no concelho de Lagoa, o flagelo da cólera manifestou-se na Mexilhoeirinha, a 8 de Setembro. Com 100 fogos, abasteciam-se os habitantes no «poço d’ Estombar».

As casas «são quasi todas de telha-vã, e com más condições hygienicas». Em termos de ocupação tinha primazia o «trafico da navegação do rio».

As febres intermitentes eram consideradas doenças endémicas. Em 1833 ficara incólume ao surto de cólera. A epidemia fez-se ali sentir até 16 de Outubro, com 36 doentes, perecendo 11.

No seu combate evidenciou-se António Carvalho Ribeiro Viana, um dos clínicos enviados de Lisboa pelo governo.

Na sede de concelho, Lagoa, o martírio chegou a 30 de Setembro, ainda que muito antes, no campo, se tivessem diagnosticado alguns casos.

Com 1 381 fogos, a freguesia albergava 4 913 habitantes, os quais se dedicavam aos trabalhos agrícolas.

Sem charcos, havia a alguma distância da vila «muitas alfarrobeiras, amendoeiras, figueiras, oliveiras, terras de semeadura, e vinhas».

Os lagoenses consumiam água dos poços, de boa qualidade e suficiente em quantidade.

A vila registava, contudo, duas exceções positivas no contexto regional, as habitações eram «em geral bem construídas, arejadas, com accommodações, e limpeza» e quanto ao vestuário «vestem-se os habitantes, mesmo os pobres, com agasalho».

As febres intermitentes constituíam doenças endémicas, sendo que a cólera em 1833 também ali fizera «estragos».

A doença progrediu lentamente, com poucas infeções diárias, cessando a 12 de Novembro. O número de contagiados foi de 85, onde se incluem os tratados no hospital próprio (não foram discriminados), já as mortes foram de 40 pessoas.

O tratamento aplicado foi análogo a outras localidades, assistindo também aqui o cirurgião António Carvalho Viana, bem como José Casimiro Fonseca Almeida.

 

Extrato do Livro de Óbitos de Porches, com vítimas da Cólera em 1855

 

Ainda no concelho, Porches sofreu a epidemia «com excessiva violência» entre os dias 15 e 30 de Novembro.

A freguesia, com 164 fogos e 763 habitantes, tinha na sua envolvente «terras de semeadura e vinhas, porém muito pouco arvoredo». A agricultura constituía a principal atividade dos porchenses.

Não tinha charcos, constituindo os poços a principal origem de água. As casas eram «pequenas, sem accommodações, nem aceio», enquanto os habitantes «alimentam-se e vestem-se mal». Com 96 infetados, faleceram 57 indivíduos.

A derradeira povoação afetada no Algarve foi Albufeira, a 1 de Dezembro. A freguesia tinha 909 fogos e 3 603 habitantes, os quais se dedicavam à atividade «agrícola, a artística, e a pescaria».

Abundavam ali as figueiras, as amendoeiras, oliveiras, vinhas e terras de semear. A água de abastecimento provinha de poços. As «habitações são em geral pequenas, e pouco limpas».

A cólera progrediu lentamente, à exceção de 24 a 29 de Dezembro de 1855 e de 5 a 8 de Fevereiro de 1856. A 14 de Abril era considerada extinta.

 

 

O total de afetados foi de 112, dos quais 42 perderam a vida (principalmente pobres). O médico António José da Silva Carvalho prestou apoio aos doentes. Em simultâneo, surgiu na vila um surto de sarampo.

Entre 7 de Julho de 1855 e 14 de Abril de 1856, contraíram a doença no distrito de Faro, pelo menos, 5 499 pessoas (2 620 masculinos e 1 879 femininos), das quais faleceram 2 770 (1 339 masculinos e 1 431 femininos).

A taxa de mortalidade nos contaminados era da ordem dos 50%. A maior taxa de infeção ocorreu na cidade de Lagos (20% da população), já a mortalidade atingiu o pico nas freguesias de Alvor e Mexilhoeira Grande, onde, em menos de dois meses, 11% da população perdeu a vida (a tal não seria alheia a ausência de médico).
No contexto nacional, o surto fez cerca de 18 000 vítimas, sendo o Algarve a região mais martirizada, pela inexistência de recursos e de médicos.

O periódico lisboeta «Imprensa e Ley», de 20 de Janeiro de1856, referia: «a cholera fez ali [Algarve] um mortocinio como em parte nenhuma das que evadiu. Povoações e casaes inteiros ficaram ermos. A desolação e o luto abismaram famílias inteiras».

Importa referir que o Relatório apenas contabilizou os surtos epidémicos, todos os casos dispersos não foram arrolados por não permitirem comparações (em Julho de 1856 ainda existam alguns casos em Vila Real de Santo António).

Na sessão da Câmara dos Deputados, de 3 de Março de 1856, o número de óbitos na região foi aventado em mais de 6 000. Acreditamos que a cifra não tivesse sido tão elevada, mas só a análise pormenorizada aos registos paroquiais poderá aferir a exatidão.

As vítimas, velhos, novos, grávidas e crianças, pertenciam maioritariamente aos estratos mais humildes da sociedade: «pobres, e entre elles os pescadores, e de vida laboriosa», por norma mal alimentados e com parcas práticas de higiene.

A linha de separação entre a vida e a morte era muito ténue. Com cemitérios exíguos, é inimaginável o sofrimento, o medo e o horror que aquelas gentes suportaram em tão curto intervalo de tempo.

 

 

Só em 1883 Robert Koch identificou a bactéria Vibrio cholorae, responsável pela enfermidade. Com a adoção de medidas de saneamento básico, os surtos de cólera no mundo foram reduzidos substancialmente.

Em Portugal, o último surgiu em 1974 e justamente no Algarve, em Tavira, estendendo-se a Lisboa e ao Porto. Mas os tempos eram agora felizmente outros.

Porém, na Europa e em Portugal de meados do século XIX, faziam-se comparações e procuravam-se justificações. Entre 1852 e 1860 a doença fez mais de um milhão de mortos na Europa.

O Relatório é, pois, um documento precioso, pese embora o contexto horrível em que foi redigido, e a tendenciosidade que apresenta, sempre elogiando as medidas tomadas e os poderes instituídos.

Nele obtemos conhecimentos variados, verdadeiras preciosidades de um outro Algarve, com um litoral paupérrimo, de colossais desigualdades sociais, sem esquecer a população e principais profissões, as características das habitações, doenças endémicas, hábitos alimentares, vegetação dominante, etc. Em suma, uma região onde a miséria era a regra, onde não se vivia, mas antes se tentava sobreviver (uma realidade aplicável a todo o país).

Ainda que Lagoa se destacasse pela positiva, ela era a exceção no contexto regional.

Contudo, a epidemia de cólera de 1855-56 foi apenas uma das calamidades que se abateu sobre os nossos antepassados, naquele horrível ano. Logo em Janeiro, um sismo abalou a região e…

 

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições conservou-se a ortografia da época. As imagens correspondem a bilhetes postais ilustrados da primeira metade do século XX, à exceção da tabela, inserta no Relatório.

 

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