Quando as catástrofes caíram em cascata sobre os algarvios – o «annus horribilis» de 1855-56 (II)

Continuamos a recordar a evolução da pandemia da cólera, através de um Relatório elaborado na época, pelas autoridades administrativas e de saúde

«Para maior calamidade d’esta província, a cholera tornou a apparecer em Pera, e já levou à sepultura cincoenta pessoas!» (Jornal «O Popular», 24 de Janeiro de 1856)

O ano de 1855-56 foi tenebroso para os algarvios. Continuamos aqui a recordar a evolução da pandemia da cólera, através de um Relatório elaborado na época, pelas autoridades administrativas e de saúde.

Assim, depois de Aljezur, Tavira e Lagos, a doença fez-se sentir em Faro. A capital de distrito, com duas freguesias, São Pedro e Sé, tinha 7 341 habitantes repartidos por 2 232 fogos. Não havia pântanos ou charcos, mas «nas vasantes das marés ficam pequenos esteiros rodeados de extenso lodaçal, que exhala miasmas fétidos».

Na envolvência de Faro, «pouca ou nenhuma vegetação», contudo «a pouca distancia há boas terras de semeadura, muitas quintas, vinhas, e figueiras, e casaes muito aceiados».

A água provinha de poços e era de boa qualidade. As habitações das famílias mais abastadas eram «bem construídas, commodas e em boas condições hygienicas», já as humildes «acanhadas, algumas menos arejadas, e em geral pouco ou nada limpas».

Os farenses ocupavam-se na agricultura, no comércio, nos empregos públicos e nas artes.

Em termos de alimentação, nas classes favorecidas «usam de bons alimentos animaes e vegetaes, porém os pobres, de que muito abunda a cidade, alimentam-se mal». Estes últimos «raras vezes comem pão de trigo, e o alimento é no inverno couve em abundância e papas de milho; na primavera favas; no estio abóbora, uvas e figos; e no outono figos seccos e peixe de má qualidade». O peixe, como não podia deixar de ser, constituía o alimento mais frequente nas povoações litorais.

Quanto ao vestuário, «os habitantes andam mal enroupados, principalmente os pescadores».

 

A cidade, apesar de muito salutar, a epidemia grassara ali com «violência», em 1833, desde então, apenas se registavam as «doenças das estações». O primeiro caso de cólera surgiu a 8 de Agosto, num pescador de 18 anos, que faleceu 39 horas depois.

De imediato, «tratou-se de arranjar um hospital próprio em duas grandes enfermarias do espaçoso hospital da Mizericordia, com o necessário de camas, facultativos, enfermeiros, assistentes, botica própria, e meios de conducção prompta».

Os seis médicos da cidade foram repartidos pelas duas freguesias, para tratarem os coléricos nos seus domicílios. Foi ainda organizada uma comissão de socorros, que acudia os mais necessitados.

A epidemia progrediu, principalmente, nas zonas confinantes de Faro, atingindo os pescadores e as suas famílias. Os dias em que se propalou com maior veemência verificaram-se entre 23 e 27 de Agosto, cessando a 13 do mês seguinte (37 dias de temor).

No início de Setembro, chegaram de Lisboa 4 facultativos (médicos), enviados pelo governo, juntamente com medicamentos e «avultada porção de arroz».

Dado o estádio dos contágios em remissão, os médicos foram deslocados para outros locais do distrito, os medicamentos distribuídos pelas farmácias e o arroz pelos indigentes.

Em Faro, foram hospitalizadas 82 pessoas, das quais 51 morreram. No domicílio, permaneceram 528 doentes, falecendo 286. No conjunto, pereceram 337 dos 610 infetados.

De entre os médicos, evidenciou-se o Dr. Francisco d’Assis Belleizão, bem como o administrador do concelho António Ribeiro Viegas e Silva, «pela actividade e zêlo que desenvolveram em soccorrer os doentes, e em prover á hygiene publica».

 

Nas restantes freguesias, surgiram casos raros da doença, à exceção de São Brás de Alportel, então termo de Faro. Com 1 407 fogos e 3 836 habitantes, a aldeia situava-se por entre muito arvoredo, nomeadamente alfarrobeiras, figueiras, oliveiras, hortas e vinhas.

Os seus habitantes dedicavam-se à agricultura, a par do comércio (almocreves) e consumiam «muito boa e abundante água de fontes». Não havia por ali pântanos, nem doenças a assinalar.

Os edifícios eram pequenos, construídos de barro, pedra e telha vã. Quanto à alimentação e vestuário, salvo raras exceções, são a partir de agora designados como idênticos às localidades já mencionadas.

O primeiro caso irrompeu a 10 de Setembro, tendo a epidemia progredido com impetuosidade entre 24 e 29 daquele mês, terminando ao fim de 36 dias, a 15 de Outubro. Assistidos pelo médico Manuel Luís Machado, o balanço final foi de 122 infetados, dos quais 61 morreram.

 

 

Os primeiros dias de Agosto foram críticos na sua disseminação. No concelho de Olhão ela fez-se sentir, tal como em Faro, no dia 8. Porém, se a vila fora atacada no ano anterior, em 1855 a epidemia incidiu principalmente na freguesia de Moncarapacho e montes vizinhos da de Quelfes.

Estas duas freguesias tinham 1 468 fogos, com 5 928 habitantes, os quais se ocupavam dos trabalhos agrícolas e «nas muitas fábricas e fornos de loiça, que alli existem».

Moncaparacho constituía uma populosa aldeia, «rodeada de muitos arvoredos, alfarrobeiras, amendoeiras e oliveiras». A água para consumo humano provinha de poços, era abundante e rica em sais calcários.

Nas suas imediações não havia pântanos, mas era húmida em virtude das linhas de água próximas. As habitações, construídas em alvenaria, eram «pequenas, sem commodos, e pouco limpas», enquanto o vestuário e a alimentação semelhantes a outras povoações rurais, ainda que aqui «os habitantes um tanto abusam do vinho e aguardente».

A cólera grassou com intensidade entre os dias 20 e 24 de Agosto, terminando a 2 de Setembro, ao que prosseguiu em sítios da freguesia de Quelfes, cessando no concelho a 17 de Outubro. Foram infetadas 257 pessoas, das quais 122 faleceram.

 

Ao mesmo tempo que o flagelo se fazia sentir em Faro e Moncarapacho, ele manifestava-se também em Alvor. Vila grande, sem pântanos nem charcos, embora nas imediações de um rio. Na envolvência, predominavam os arvoredos de oliveiras, amendoeiras e essencialmente figueiras.

A água de boa qualidade era captada em poços. As habitações «na maxima parte sam térreas, cobertas de telha-vãa, construídas de paredes de taipa sem soalho, e com pouco aceio».

As freguesias de Alvor e da Mexilhoeira Grande albergavam 1 082 fogos e 3 111 habitantes. Dedicavam-se à agricultura e à pesca. Sem doenças endémicas, não registara casos epidémicos em 1833, quando a doença se desenvolveu em Portimão e Lagos.

Com grande violência de contágios entre 22 de Agosto e os primeiros dias de Setembro, a epidemia cessou ali a 1 de Outubro. No total, foram infetadas 392 pessoas, das quais 331 faleceram.

Evidenciou-se no seu combate o pároco Francisco Prazeres Cabrita, «unindo á administração dos socorros espirituais a dos socorros alimentares e pecuniários; e distinguiu-se em estender mão benéfica aos infelizes».

Na sede de concelho, Vila Nova de Portimão, os primeiros casos foram diagnosticados a 22 de Agosto. A freguesia albergava 1 587 fogos, com 5 651 habitantes. Estes ocupavam-se na agricultura, comercio, artes, navegação, pesca, e no «trafico do rio».

 

As habitações «da gente pobre sam baixas, com parede de taipa, sem soalho, cobertas de telha-vãa, ventiladas mas sem aceio, principalmente as do bairro dos Fumeiros, habitação dos marítimos».

A água provinha de cisternas e poços, «havendo na distância de légua, na margem esquerda do rio, uma fonte chamada do Gramacho, de excelente agua, aonde a vão buscar em botes». Não existiam pântanos.

Nos arredores, predominavam hortas e vinhas, bem como oliveiras, amendoeiras e figueiras.

A doença fez-se sentir logo com grande transmissão, foi criado um hospital, bem como recolhidos auxílios pecuniários junto dos portimonenses para distribuição pelos mais necessitados.

Foi ainda estabelecido um lazareto na fortaleza de Santa Catarina, para onde se encaminhou a tripulação do vapor de guerra Lynce, também ela infetada. Os dois médicos locais José Marques Neves e Dâmaso Pimentel contaram com o apoio de um dos clínicos lisboetas, José Henriques Teixeira.

A doença grassou principalmente entre 24 e 27 de Agosto, chegando aos 50 infetados por dia. A 9 de Outubro estava erradicada. O bairro dos Fumeiros foi um dos mais atingidos.

Nos 55 dias em que se fez sentir foram infetados 516 pessoas, das quais 229 faleceram (no hospital estiveram 47 doentes, salvando-se 28).

 

Propagava-se ainda em Portimão, quando, em Silves, surgiram os primeiros doentes. A freguesia tinha 1 223 fogos, com 3 582 habitantes.

A água de consumo provinha de poços e fontes, que «têem em abundância». Apresentava pouco arvoredo, mas excelentes «terras de semeadura, e boas hortas». No rio existiam alguns pântanos, essencialmente nos meandros. Eram frequentes as «febres intermitentes de péssimo caracter».

A cólera reinou por ali 52 dias, entre 4 de Setembro e 25 de Outubro, com dois picos de infeção, 20 e 28 de Setembro e 15 e 18 de Outubro. Foi criado um hospital, bem como tomadas medidas de higiene pública.

No total, foram infetadas 65 pessoas, das quais 35 perderam a vida. Evidenciou-se no apoio aos doentes o médico Nicolau Joaquim Águas.

Em termos administrativos, particularizemos o caso de Silves, que não será dissemelhante na região. As reuniões de Câmara tornam-se irregulares ainda em Junho.

Em Julho, houve apenas uma sessão e uma outra em Agosto e quatro canceladas, por ausência de quórum, no mesmo período. Entre 8 de Agosto e 31 de Dezembro a vereação não reuniu.

A 8 de Agosto era reconhecido que, «estando nós ameaçados do flagelo da Colera morbus, era de absoluta necessidade de tomarem-se as mais enérgicas providencias para melhorar o deplorável estado em que se acha o estado de limpeza da Cidade, e das povoações do concelho».

Assim, foi deliberado que os silvenses procedessem à limpeza das suas ruas todas as sextas feiras, sendo as mesmas inspecionadas nos sábados imediatos, bem como que retirassem «as estrumeiras nas ruas e immediações da cidade e povoações» até ao dia 17, sob pena de multas.

Na reunião seguinte, a 31 de Dezembro, surgem duas referências à epidemia: o pedido de um dos rendeiros para abatimento da prestação face ao prejuízo que teve pela proibição das feiras de Todos os Santos, em Silves e de Nossa Senhora da Saúde, em Messines; e o requerimento de José Martins de Armação a solicitar o apoio da autarquia para a criação de dois filhos gémeos, dado que a sua mulher havia falecido com a cólera. Pedido deferido.

Vejamos agora o comportamento da epidemia no litoral deste concelho. A freguesia de Alcantarilha, à qual Armação de Pêra pertencia, tinha 785 fogos com 3 230 habitantes.

Segundo o Relatório, não havia pântanos, nem charcos. Alcantarilha encontrava-se rodeada de arvoredo «de oliveiras, amendoeiras, e figueiras, e de terras de cereaes, legumes e vinhas», sendo a principal atividade económica a agricultura.

As habitações, de que não houve descrição em Silves, eram aqui, à exceção de «algumas pessoas de fortuna, de telha-vãa, e nam sam cómmodas, arejadas, ou limpas». A água provinha dos poços e era «bastante salobra».

Não existiam doenças endémicas, em 1833 a cólera lavrara ali com pouca intensidade.

 

 

Já Armação de Pêra constituía «uma povoação muito pequena, (…) composta por poucos habitantes, todos pescadores, e pobres». Na envolvência apenas vinhas. As casas «sam pequenas, cobertas de telha-vãa, e sem limpeza. Os habitantes não têem agasalho algum no vestuário».

A alimentação «é quasi exclusivamente de figos, e de alfarrobas» e a principal ocupação a pesca. Sujeitos a afeções cutâneas e a febres intermitentes, foram muito atingidos pela cólera em 1833.

Muito próximo, a freguesia de Pêra tinha 461 fogos, com 1 404 habitantes, os quais se ocupavam na agricultura e como almocreves. Abasteciam-se da mesma água que os anteriores. Os edifícios eram cobertos de telha vã, térreos, húmidos e pouco ventilados.

O alimento compunha-se de carne, peixe e vegetais. Na envolvente abundavam figueiras, amendoeiras e pinheiros, bem como terras de cereais e de legumes.

Na «epidemia cholerica de 1833 soffreram muito, mas desde então só têem aparecido as epidemias ordinárias. Não há molestias endémicas».

Note-se que não é feita referência nem à Lagoa dos Salgados, na ribeira de Espiche, nem à lagoa da ribeira de Alcantarilha, junto a Armação, pelo que provavelmente não existiriam.

Em Alcantarilha, a doença fez-se sentir de forma difusa entre 22 de Outubro e 2 de Fevereiro, tendo atingido 22 pessoas, das quais 9 faleceram. Em Armação, o surto iniciou-se a 20 de Novembro, cessando dois meses depois, ao todo 20 doentes, dos quais 7 perderam a vida. Em Pêra, chegou a 31 de Dezembro e ali permaneceu até 1 de Fevereiro de 1856, tendo grassado com grande intensidade até 7 de Janeiro. Na totalidade infetou 176 indivíduos dos quais 87 faleceram.

O médico Hermenegildo José Chaves socorreu as duas freguesias. O pânico naqueles dias medonhos era a regra. A proximidade destas povoações levou à fuga de dois irmãos de Pêra para Alcantarilha, de 6 e 9 anos, após a morte de outros três irmãos em Pêra, todavia, já haviam contraído a doença, vindo esta a desenvolver-se nos dias seguintes.

A epidemia alastrava na região, quando, numa manhã nebulosa de Janeiro, uma nova e inesperada calamidade se abateu sobre o Algarve…

 

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições conservou-se a ortografia da época. As imagens correspondem a bilhetes postais ilustrados da primeira metade do século XX, à exceção da tabela, inserta no Relatório.

 

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