O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Vila Nova de Portimão e Vila Real de Santo António

Ainda se encontram muitos resquícios e formas de estar, em muitos concelhos, que chegaram aos nossos dias, com sociedades alheadas e apáticas, políticos medíocres, edilidades endividadas e instituições perdulárias

Portimão e Vila Real de Santo António constituem os derradeiros concelhos analisados no profícuo Relatório de Aires Garrido, governador civil de Faro, dando assim cumprimento à determinação governamental de visitar todo o distrito e anotar o estado económico e social em que este se encontrava, bem como diligenciar no sentido da resolução dos principais problemas.

Sobre a então Vila Nova de Portimão, que apenas ascenderia à categoria de cidade em 1924, pela mão do filho pródigo Manuel Teixeira Gomes, escreveu: «tem esta villa 1:160 fogos, mais 346 do que em 1839. Sendo a terra mais commercial do Algarve, tem progredido muito assim em augmento de população como em melhoramentos materiaes; está bem policiada, bem calçadas suas ruas, algumas das quaes são formadas de edificios quasi todos de recente construcção e elegante prospecto, o que tudo, e a sua situação sobre a bahia do rio do mesmo nome, que forma junto d’ella o melhor e mais frequentado porto da costa d’este districto, dá á mesma villa um aspecto agradável e animador».

Portimão sobressaía no panorama algarvio pelas suas gentes, localização, melhoramentos materiais, comércio e crescimento urbano. Apesar de sofrer um enorme constrangimento, «é pena que não haja n’ella água potável», a falta do precioso líquido não impedia que a povoação crescesse e se desenvolvesse.

A água era transportada ade«alguma distancia em barcos-tanques, e em condições inconvenientes», desde a tapada do Gramacho, acrescentamos nós, rio acima, às portas de Silves, até ali.

O governador reconhecia que não era impossível «conduzir a ella as aguas de alguma das nascentes das serras mais próximas» contudo, muito dispendioso. Conquanto, acreditava que a obra não demorasse, «attento o espirito do progresso que notei entre os seus principaes habitantes».

 

As repartições públicas concentravam-se todas «em uma parte do edificio que foi antigo collegio dos jesuitas e depois convento de Camillos, concedido á camara para esse fim, existindo na outra parte o hospital de S. Francisco e a misericórdia».

Todavia, se o edifício era apropriado, «os papeis porem é que se achavam mal arrumados, existindo alguns sobre o pavimento, por falta de estantes, para cuja aquisição dei as ordens mais terminantes, e tomei nota para verificar se se cumprem». Havia ainda legislação não encadernada, bem como «algumas outras faltas de facil reparação», atribuídas à inexperiência do novo escrivão, que no entanto mostrara «ter zelo e vontade de acertar».

Com uma receita considerável, a Câmara destinava-a para as «obras de calçadas, concerto de caminhos, fontes e poços publicos, pontes e similhantes», bem como «para as estradas de terceira ordem».

Quanto à cobrança de dívidas, ela era deficiente, um desmazelo praticamente transversal à região. Os orçamentos encontravam-se aprovados até 1854-55, enquanto os restantes aguardavam apreciação. A nível das juntas de paróquia, deparou-se com alguns atrasos, que variavam entre 2 e 4 anos, tendo providenciado como lhe cumpria.

Uma outra dificuldade, todavia em vias de resolução, prendia-se com o cemitério: «sendo muito mal situado, no centro da villa, e deficiente o cemiterio publico, fez a camara construir um outro em boa exposição e situação, que foi benzido no próximo findo anno, e está servindo, faltando-lhe apenas alguns retoques, para cuja despeza se acha votada no orçamento a competente verba».

Alvor também registava problemas com a necrópole: «alem de não ter a capacidade sufficiente, esta mal situado, junto da igreja parochial e mui proximo da povoação», tendo o governador proposto a construção de um novo. Em melhor situação encontrava-se o da Mexilhoeira Grande.

 

No concelho, conservavam-se três Misericórdias (Portimão, Alvor e Mexilhoeira Grande), bem como um legado na vila, denominado de S. Nicolau, cujo rendimento era administrado pela Ordem Terceira de S. Francisco e aplicado a socorros de enfermos nos próprios domicílios.

Já a Misericórdia de Portimão detinha um hospital, em bom estado de conservação, e com uma capacidade para 24 enfermos. Existia ainda uma associação de socorros mútuos, com 129 sócios «artistas», bem como um compromisso marítimo.

Dos 9 383 habitantes do concelho (Censo de 1864), 93 (1%) sobreviviam de mendigar, enquanto 51 (0,5%) não mendigavam mas viviam da caridade pública. Em termos de escolaridade contavam-se 3 escolas públicas masculinas, frequentadas por 101 miúdos e 4 particulares: 2 para rapazes (55 miúdos) e 2 para meninas (54), de um total de 749 rapazes e 794 meninas em idade escolar. Nesta sequência, somente 20% dos rapazes e 6% das meninas estudavam. Era assim Vila Nova de Portimão na infância de Manuel Teixeira Gomes, na época, com 6 anos.

 

Na extremidade sotaventina da região, Vila Real de Santo António foi o último município a receber o juízo de Aires Garrido. Sobre ele exarou: «este concelho é dos de menor area e população; compõe-se de duas freguezias, ambas com pouco mais de 1:000 fogos: sobre os que tinha em 1830 tem hoje a villa mais 470».

Aumento de população que obrigara à «construcção de novas casas, e á abertura de mais ruas, no que se tem seguido o plano da primitiva construcção, tornando-se assim a villa uma terra mui saudavel, aceiada e agradavel».

Vila Real seduzira o governador. Apesar de não abundar «pessoal para os cargos municipaes, porque a população é quasi toda marítima», encontrava-se «menos mal administrado, e pena é que os seus recursos sejam tão escassos para se attender convenientemente aos melhoramentos materiaes de que tanto carece».

Ainda assim, «quasi todas as ruas se acham calçadas, e as repartições publicas, posto não se achem tão bem alojadas como seria para desejar, assim mesmo o estão mui soffrivelmente, bem como a escola primaria, poisque as casas da camara e as outras que esta tem alugadas para as repartições que n’aquellas não cabem, são decentes e teem a capacidade requerida».

A receita municipal era reduzida e resultante de contribuições, sendo os rendimentos próprios muito diminutos, «no entanto esta verba podia ser de uma quantia mui superior se a camara houvesse aproveitado para sementeira de pinheiros os extensos areiaes que ficam ao sul da villa até á costa do oceano, o que alem do rendimento que podia produzir, abrigava a villa, obstando aos estragos que lhe causa a invasão das areias», alertava o governador.

Uma medida que a edilidade protelava, por considerar necessário o aumento dos impostos para «custear a despeza da sementeira, guarda e conservação dos pinhaes, e do receio de que sejam destruidos pelos povos ignorantes e malfazejos».

Desânimo que o governador procurou solucionar, propondo a execução de regulamentos, bem como a sua sementeira por parcelas, além de incumbir o administrador «de fazer com que a opinião publica se disponha favoravelmente para esta providencia e se convença da sua utilidade». Em suma, era necessário propalar e convencer os vila-realenenses da sua importância.

Na verdade, ela seria de «reconhecida vantagem para o concelho, e para todo este districto, onde é geralmente sentida a carestia de madeiras para combustivel, e a absoluta falta d’ellas para construcções» e por conseguinte, uma importante fonte de receitas municipais. Em abril de 1867 decorria a medição do terreno e a elaboração do orçamento para o efeito.

Uma outra obra que se impunha «da mais superior necessidade n’este concelho é a construcção de um caes sobre o Guadiana em frente da villa, que a defenda da invasão das aguas», é que estas «vão successivamente escavando a areia da praia, e ameaçam já em alguns pontos as edificações». A sua ausência colocava em risco a própria vila, tendo Aires Garrido providenciado a realização do orçamento e projeto com vista à sua execução.

Em termos administrativos, os orçamentos da Câmara estavam aprovados até 1857-58, encontrando-se os restantes em análise. Nos «cartorios assim da camara como da administração do concelho não encontrei irregularidades notaveis, e dei as providencias que me parecem necessarias para serem emendadas algumas pequenas omissões ou defeitos». A nível das juntas de paróquia foram detetados alguns atrasos.

 

Vila Real de Santo António conhecia por aqueles anos alguma dinâmica, «o movimento do porto, onde concorrem muitos navios para transportar o minerio extrahido das minas de S. Domingos, tem contribuido muito para levantar Villa Real do abatimento em que jazia pela decadência das pescarias».

Contudo, o previdente governador não deixava de reconhecer que «é porem necessário aproveitar este ensejo para emprehender ali os melhoramentos indicados, pois que elle pode falhar um dia, e deixar a povoação em circumstancias ainda mais criticas do que as em que estava antes do começo da exploração da dita mina». Afinal, então como hoje, as comunidades não devem depender apenas de uma atividade económica.

No que concerne à saúde pública, «tanto o cemiterio da villa como o de Cacella estão bem situados e decentes».

No concelho, com 5 059 habitantes (Censo de 1864), não existia qualquer Misericórdia, ou hospital, nem associações de socorros mútuos, à exceção de um Compromisso Marítimo. Este tinha 647 sócios e constituía um dos maiores do distrito.

De acordo com os dados apresentados, 15 pessoas sobreviviam de mendigar, enquanto 3 viviam da caridade pública, isto é 0,3% da população era paupérrima. Valores ainda assim reduzidos quando comparados com outros concelhos.

No ensino, 3 escolas masculinas, 2 públicas e 1 particular, ministravam as primeiras letras a 60 e 30 rapazes respetivamente, de um total de 863 (10%). Já as 665 meninas com idade escolar não frequentavam qualquer estabelecimento de ensino.

 

Uma reforma administrativa que nunca avançou

Embora Portimão se destacasse comparativamente a Vila Real de Santo António, este último não deixava de constituir, naquilo que podemos classificar, como um exemplo intermédio em termos de administração, no desconcertante périplo que efetuámos nas últimas semanas.

Vila Real constituía a exceção no contexto das periferias, recorde-se que Alcoutim, Castro Marim, Aljezur e Vila do Bispo foram concelhos onde o governador detetou mais problemas e carências de recursos humanos e materiais, tal como em Monchique.

Propunha mesmo a fusão de Aljezur com Monchique, Vila do Bispo com Lagos, e Castro Marim com Vila Real de Santo António. Para Alcoutim, a distância a estas últimas vilas pesara e, apesar de o indiciar, não o concretizou.

Da análise dos Relatórios efetuados em todos os distritos, com base em observações diretas dos governadores, o governo avançou para a elaboração da Lei da Administração Civil de 26 de Junho de 1867, uma tentativa de reforma do código administrativo, que ficaria conhecido por de Martens Ferraz.

Segundo Jorge Manuel Dias Fernandes, em «A impopular reforma administrativa de 1867», que já aqui citamos, aquela, entre outros aspetos, previa a redução do número de distritos de 17 para 11, enquanto os concelhos, dos cerca de 350 existentes ficavam 178 e as juntas de paróquia das pouco de mais de 4 000 passavam a cerca de 1 000.

O governo procurava assim diminuir as despesas com a administração, tentando debelar a crise que se vivia, com elevados deficits nas contas públicas.

O mapa final da reforma foi publicado a 10 de dezembro de 1867 e, segundo Daniel Alves, Nuno Lima e Pedro Urbano, em «Estado e sociedade em conflito: o Código de Mártens Ferrão de 1867. Uma reforma administrativa efémera», no Algarve os 15 concelhos existentes agregavam-se em 8 (Aljezur, Vila do Bispo e Lagos; Monchique e Portimão; Lagoa; Silves e Albufeira; Loulé; Faro e Olhão; Tavira; Vila Real, Castro Marim e Alcoutim).

Já as paróquias civis passavam a 36, das 65 eclesiásticas. O distrito também mudava de designação de Faro, para Algarve. Não por acaso, foi mantido o concelho de Lagoa, tido como exemplar, por Garrido, ainda que com outras freguesias.

Todavia, juntamente com o aumento de impostos, gerou-se um enorme descontentamento popular e político em Portugal, que culminou com os protestos de 1 de Janeiro de 1868 – a Janeirinha.

Em consequência, ocorreu a queda do governo e com ele dos governadores civis. Aires Garrido (1805-1874) deixou Faro a 18/1/1868, vindo em Agosto seguinte a ocupar idêntico cargo na Guarda.

Se a sua passagem pela região se quedou por 20 meses, o Relatório que nos legou evidencia-nos um homem zeloso no cumprimento das suas obrigações, interessado nas vias de comunicação e na saúde pública, os desígnios da época, mas também à frente do seu tempo, ainda que em Lagos defendesse a demolição das muralhas, em Silves prometeu vigiar as obras na Sé, garantindo a manutenção do formulário gótico, para, em Vila Real, felicitar as autoridades por acatarem no crescimento urbano o iluminismo da conceção da urbe.

Também aqui frisou a importância da diversificação da atividade económica, um problema tão atual como então. A sua preocupação com o ensino foi constante, bem como pelos mais desprotegidos, acusando as autoridades e instituições de pouco fazerem para minimizarem aquelas «chagas» no Algarve de Oitocentos. Entidades, salvo raríssimas exceções, como vimos, ocupadas por elites egoístas e retrógradas, mais preocupadas com «jantares e refrescos», para utilizar as suas palavras, do que na promoção do bem comum.

 

O Relatório, organizado por concelhos, lega-nos informações preciosas, ao contrário de magistrados de outros distritos, que os organizaram por assuntos/ temáticas, perdendo-se muitas particularidades.

As conclusões que dele podemos extrair são variadas e vastas, mas importa dizer que a realidade descrita para o Algarve não era dissemelhante do resto do país.

Não por acaso que, no Portugal de hoje, somente 52% dos seus habitantes concluíram o ensino secundário e/ou superior, enquanto a média da União Europeia é de 78%. O investimento no capital humano qualificado raramente constituiu prioridade nacional, e apesar da enormíssima evolução nas últimas décadas, continuamos na cauda, com custos elevadíssimos para o país.

As descrições que acompanhámos ao longo das últimas semanas devem-nos propiciar à reflexão. Note-se que, em termos de administração, dos 15 concelhos existentes destacavam-se somente três, Lagoa, Tavira e Portimão, cinco eram mesmo maus (Alcoutim, Castro Marim, Aljezur, Monchique e Vila do Bispo), já em Lagos imperava a corrupção. Os restantes seis municípios quedavam-se pelo meio-termo (Albufeira, Faro, Loulé, Silves, Olhão e Vila Real de Santo António).

Se do Algarve de há 150 anos pouco subsistiu, é certo que se encontram muitos resquícios e formas de estar, em muitos concelhos, que chegaram aos nossos dias, com sociedades alheadas e apáticas, políticos medíocres, edilidades endividadas e instituições perdulárias.

Quando atravessamos mais uma crise, com os impostos a atingirem níveis indecentes, vale a pena lembrar que administrativamente, a nível concelhio, o país é ainda o reflexo da reforma administrativa de 1836.

Quase 200 anos depois, quando não faltam excelentes vias de comunicação terrestres e digitais, e os autarcas transitam de um concelho para outro, independentemente de qualquer afinidade com esse território, é grotesco a sociedade e o Estado manterem uma estrutura administrativa anacrónica, voltada para o passado, ao invés de a adaptar ao presente e ao futuro.

Mas isto são outros assuntos, outras temáticas. Por agora no Algarve de 1868, os algarvios respiravam de alívio, o inoportuno e indesejável governador desaparecia para gáudio do povo rude e pobre e das elites mesquinhas e atrasadas, afinal tudo iria permanecer como dantes, pelo menos durante mais alguns anos…

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época. As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados, da última década do século XIX e/ou primeiras do século XX.

 

Leia também as cinco anteriores partes deste artigo:

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – I

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Albufeira, Alcoutim e Aljezur

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Castro Marim e Faro

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Lagoa e Lagos

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Loulé, Monchique e Olhão

O Algarve em 1867 ou um retrato arrasador dos algarvios e da região – Silves, Tavira e Vila do Bispo

 

 



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