O copo é que paga

Este projeto encerra «a ideia de que o investimento público no Algarve é excêntrico a uma lógica de coesão nacional, e que deve ser suportado por uma lógica de custo-benefício que, por exemplo, os transportes públicos de Lisboa não seguiram – todos pagámos e pagamos»

Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga.

É karma anatómico. E é justo, porque proporcional. “Top down”, dir-se-ia em linguagem organizacional. É música, disse o António Variações.

Mas, bem a propósito, há variações ao tema. Não em dó menor, mas metendo uma dó maior. Por exemplo, quando o corpo que paga não é o da cabeça que não tem juízo. Que é o que – mais uma vez – está prestes a acontecer ao Algarve.

Isto porque o Governo anunciou uma intenção de aumentar genericamente (mas não muito, segundo o Ministro do Ambiente e da Acção Climática) o preço da água no Algarve, para ajudar a pagar a manutenção de obras que ainda não foram sequer construídas.

No fundo, quer pôr a região já a pensar em fazer um pé-de-meia para o que há-de vir um dia, que, no caso, é uma captação de água no Guadiana para alimentação da albufeira da barragem de Odeleite e uma central de dessalinização, que estão incluídas no Plano de Recuperação e Resiliência, cuja consulta pública terminou há poucos dias.

Mas como foram estas obras lá parar?

Através de um outro Plano, o Regional de Eficiência Hídrica do Algarve (PREHA). Ora as soluções constantes desse plano resultaram mais da influência de grupos de pressão – um deles, a Algfuturo, reclamou mesmo uma vitória, concretamente pela chamada “solução Guadiana” – do que propriamente da expressão da vontade da região.

Tanto mais, que o PREHA contraria em boa parte o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve (esse bem mais participado), ao privilegiar um modelo em que os consumos ditam as disponibilidades, e não o contrário.

Mas que esse pequeno grande pormenor não nos faça reféns.

Ainda de acordo com o anúncio feito, estas duas grandes obras são como que uma apólice de seguro hídrico para a região. E, se não são, parecem mesmo. Tal como acontece com tantas apólices de seguros, são-nos impostas, apresentam-se com montes de coberturas que não pedimos, custam um balúrdio e não nos conseguem tirar aquela inquietante sensação de que, quando delas necessitarmos mesmo…nos vão falhar.

Neste capítulo, a captação fluvial, que parte de um vasto conjunto de pensamentos positivos que a realidade resiste a corroborar, toma a dianteira, até porque nos coloca na dependência não só do clima e da precipitação, mas também da generosidade hídrica do regadio que se abastece na albufeira da barragem de Alqueva e, mais a montante, dos nossos vizinhos de Espanha, no âmbito da gestão “partilhada” da bacia hidrográfica internacional do Guadiana – que, como se sabe, tem corrido lindamente…

Mas, seja como for, já nos acenam com a factura do que, em boa verdade, não chegámos a pedir.

A tarifa é, também, um instrumento de gestão. Uma medida de valorização do recurso aos olhos dos consumidores, quando não aconteça pela mera sensibilização face à sua escassez e preciosidade. Uma espécie de “não vai a bem, vai ao bolso”. Aumentar o peso da água na economia de particulares e empresas pode, portanto, ser uma medida de salvaguarda.

Mas quando, de acordo com dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, a média algarvia de perdas reais de água no abastecimento do sector urbano – portanto antes de chegar aos consumidores pagantes – se situa algures na proximidade dos 25% (mas com alguns sistemas a perderem quase 50% da sua água), e o cenário no sector agrícola (dados do projecto AGIR) não difere muito, quer na regra, quer nos extremos, estamos obviamente perante uma falácia, desenquadrada de qualquer política de fundo.

Mais ainda quando olhamos para a média regional de água não facturada, que se situa nos 30% (escondendo esta valores que chegam perto dos 60% em alguns sistemas) – mesmo ressalvando a necessária sensibilidade neste indicador, que integra água com funções operacionais e sociais, como custos de operação dos municípios/entidades gestoras ou custos associados a políticas municipais de apoio social e solidariedade, dá que pensar.

Mas o que deve mesmo fazer pensar é o seguinte: a tendência verificada é de crescente incerteza nas disponibilidades hídricas, fruto de quebras acentuadas na precipitação e alterações difíceis de prever na sua distribuição ao longo do tempo, a par de outros factores climáticos também eles incertos – como é, de resto, típico de uma região de influência mediterrânica.

Perpetuar um modelo de necessidades crescentes, em vez de adaptar o modelo de consumo às disponibilidades, gera um desequilíbrio. Ambiental, primeiramente, e a vários níveis, desde logo porque há água que deve fluir livremente na paisagem e não em tubagens ou canais. Que depois se reflecte nas nossas vidas, queiramos ou não. A muita gente isto escapa e pouco interessa, porque é abstracto, distante. Agora que, via carteira, atinge também pensamentos mais identificados com máquinas registadoras e, pior que tudo, estratos social e economicamente mais vulneráveis da nossa população, talvez faça pensar mais e melhor.

O grande problema deste aumento do preço da água não é então tanto o valor que possa dele decorrer, mas mais os princípios que encerra.

A começar pela ideia de que os sistemas naturais podem ser adulterados até à exaustão, na tentativa de impor um determinado modelo a uma realidade que manifestamente o não pode suportar – basta lembrar o falhanço das promessas encerradas no paredão de Odelouca.

Em associação, a ideia de que o investimento público no Algarve é excêntrico a uma lógica de coesão nacional, e que deve ser suportado por uma lógica de custo-benefício que, por exemplo, os transportes públicos de Lisboa não seguiram – todos pagámos e pagamos.

Imediatamente a seguir, a total falta de solidariedade para com uma das regiões economicamente mais afectadas pela pandemia, apresentando-lhe um ónus adicional para o futuro, e que não lhe resolve os problemas nesta matéria.

E, finalmente, a clara afirmação de que o Algarve será perpetuamente sacrificado pelas más opções e decisões de gestão de um recurso fundamental, enquanto não adequar o modelo à realidade.

Portanto, quando a cabeça dos outros não tem juízo, quando esforças o consumo mais do que é preciso, o co(r)po é que paga…

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

 

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