Rural v2.0

Há ideias parvas. Mas, ainda assim, resistentes. Uma delas já dura há pelo menos três décadas, e prende-se com o […]

Há ideias parvas. Mas, ainda assim, resistentes.

Uma delas já dura há pelo menos três décadas, e prende-se com o conceito de que betão e asfalto (gourmet ou não, não sei dizer) alimentam um País.

O resultado está à vista: não produzimos sequer aquilo de que precisamos para comer, quanto mais para atiçar a bacoca fogueira de vaidades que fomos regando com gasolina emprestada.

Prognósticos no final do jogo são fáceis de fazer, pode dizer-se. Éramos uns campónios, facilmente deslumbráveis com “arquitecturas e ordenamentos territoriais” de engenhocas formados em universidades independentes (até mesmo em relação aos dias úteis da semana), constará. Ninguém explicou que ia acabar assim, desculpar-se-ão os aldrabões.

Tudo isso é muito bonito, mas o que é facto é que sempre foi havendo quem alertasse para o erro estrutural de abandonar os sectores primário e secundário que, só por acaso, são os que geram riqueza substantiva. O terciário, embora janota e de ar bem acondicionado, na melhor das hipóteses movimenta riqueza, acrescida do delirante valor especulativo.

Assim viemos até aqui, voluntariamente e por aclamação popular, num modelo de crescimento oco, que socializa os custos para privatização dos lucros. Agora somos um País com o interior desertificado, os campos abandonados, sem pesca, sem indústria. Mas muitas auto-estradas vazias, porque inúteis e tributadas acima das posses da população, e casas, muitas casas vazias (estádios e afins incluídos), para três vezes a população real.

Agora já vamos estando aflitos, e a fazer contas de cabeça. Mas não muito.

Não deixam de me espantar os motivos que encontramos para paralisar o País, por mais absurdas, irreais e imerecidas que sejam as reivindicações. Isto quando, pela hipótese de comprar bugigangas a pataco, estamos dispostos a esquecer “direitos fundamentais”, sacrificando a economia nacional, comprando tudo às potências que, graças à falta de regras em que vivem, e através da qual deslealmente as deixamos connosco competir, metendo, no mesmo contentor em que vem a mercadoria, também os empregados das lojas – no outro, pimenta será sempre refresco…

A verdade é que temos que voltar a fazer qualquer coisa pela vida. O regresso aos campos parece um passo inevitável. A questão é como. Que camponeses seremos nós, a minha geração? Seremos i-agricultores, farm-villagers, de enxadas touch-screen?

Poderemos ainda ser aquela “gente do campo”, simples e sem grande inquietação aparente, ao ritmo das estações? É que a sociedade da informação, nas suas diversas expressões, desassossegou-nos o espírito, e as alterações climáticas baralharam-nos as Primaveras e Outonos. Como (re)ruralizar?

Qual será a nossa paisagem, o fruto da interacção da nossa cultura contemporânea com o nosso ecossistema?

Orlando Ribeiro, cujo centenário acaba de ser comemorado, dedicou parte da sua obra aos construtores anónimos das paisagens portuguesas e ao produto do seu labor.

Pese embora o Portugal que este homem viveu e cujas paisagens tão bem descreveu, já não exista, na medida em que o tempo passa e tudo evolui, os traços de personalidade que ele identificou, a alma desta terra e desta gente, permanece. Está entranhada na nossa memória genética.

“Só” temos que encontrar a sua expressão actual.

Talvez do reencontro com aquilo que realmente somos, a par de uma catarse colectiva relativamente ao que queremos, com base nos nossos reais recursos, possa nascer um novo impulso. Poderá não ser tudo aquilo que precisamos, mas é o que temos, e desaproveitá-lo é atentar contra o futuro.

Juntemo-nos para pensar nisso…

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista

(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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