O desespero da Câmara de Lagoa após os ataques de Remechido a Algoz e Alte, há 185 anos

Em Fevereiro de 1837, o pânico e o terror afloravam à porta dos algarvios

Em Fevereiro de 1837, o Algarve encontrava-se a ferro e fogo. A vitória dos liberais na guerra civil, em 1834, não trouxera a tranquilidade à região.

Recorde-se que, naquela época do século XIX, os portugueses se dividiram no apoio aos irmãos: D. Pedro, o primogénito, adepto dos ideais liberais, assentes na separação de poderes (judicial, executivo e deliberativo) e numa Constituição; e D. Miguel, que defendia a continuação da monarquia tradicional, onde o rei detinha o poder praticamente absoluto.

Depois de uma década de 1820 muito tumultuosa e rica em acontecimentos, iniciados com o pronunciamento militar do Porto, que já aqui evocámos, sem esquecer a elaboração da primeira Constituição (1822), a sua suspensão (1823), a atribuição da Carta Constitucional (1826), por D. Pedro, com abdicação do trono português a favor da filha D. Maria II (D. Pedro promovera a independência do Brasil, em 1822, do qual era imperador) e por fim a usurpação do trono por D. Miguel (1828).

Este último acontecimento potenciou a guerra civil, com consequências dramáticas no país e no Algarve, em particular, onde os ataques dos absolutistas, Remechido a Albufeira e Camacho a Loulé, constituíram o expoente máximo do terror, como já aqui lembrámos.

Ora, o término das hostilidades a 26 de Maio de 1834, com a vitória de D. Pedro, não tranquilizou os ânimos no Algarve. Se é certo que até ao Verão de 1836 se viveu numa relativa paz, ainda que mais aparente que real, com o reaparecimento da guerrilha de Remechido, no Verão de 1836 tudo se precipitou. Os ataques a diversas povoações nos meses seguintes, levaram as autarquias a reiterarem, consecutivamente, o pedido de socorro à rainha D. Maria II e ao seu governo.

 

Um desses pedidos partiu da Câmara de Lagoa, a 18 de Fevereiro de 1837. Referia a autarquia que a sua reclamação era «movida da instante necessidade do País e faltaria aos seus Deveres, se fosse muda espectadora de tantas desgraças», lembrando as várias missivas remetidas pelas suas congéneres algarvias, que «queixam-se, e com razão, e não se lhes deve fazer a injustiça de as não acreditar».

Afinal, se estes pedidos continuassem a ser ignorados, «de certo seremos vítimas do mais sanguinário inimigo de Vossa Majestade, e dos seus súbditos fiéis», referindo-se obviamente a José Joaquim de Sousa Reis – o Remechido.

Acrescentava: «Senhora! Tem-se dito que o Remechido vive no fundo de barrancos, que foge e se dispersa, apenas sente quem o persiga, e que os Povos pequenos da proximidade da Serra é que aumentam com o seu medo os perigos da guerrilha». E advertia, «a verdade é que Remechido vai impunemente, onde quer, que suas hordas ainda há pouco penetraram o Algoz, ponto central do Algarve, e que devagar por toda a parte, assassinando esses poucos defensores da Liberdade; a verdade é que apenas em Lagos e Faro o cidadão se pode dizer seguro, e que nas mais partes de toda a Província não há segurança individual».

Elucidava ainda a carta da Câmara de Lagoa: «a verdade é que os de Silves se têm visto precisados a reparar os muros, que fabricados pelos Mouros, os séculos tinham já prostrado, e que nenhuma povoação está livre de ser invadida, e que não são, as pequenas à serra, cujos habitantes em geral são os mesmos homens do Remechido, mas sim as grandes que o teme».

Criticava aqueles que menosprezavam o pânico que se vivia o Algarve: «o medo que têm os algarvios é aquele mesmo que teriam quaisquer outros que aqui habitassem, é o mesmo que teriam os que censuram, por estarem longe do perigo».

Afinal, havia «um bando de facínoras, que tem aumentado em grande número, sedentos de sangue Liberal, que atacam uma povoação guarnecida de tropa e a derrotam». Criminosos que, ora apareciam assassinando em São Martinho, ou nas proximidades de Lagoa, roubando fardamentos, dificultando o trânsito para o Alentejo, intercetando o correio, roubando os gados dos habitantes do centro do Algarve, ao que rematava: «será porventura objeto que não deva recear quem está exposto aos seus furores?».

Embora reconhecesse que as forças governamentais faziam sortidas à serra, era «forçoso confessar, que deles nem o menor vestígio de melhora. As tropas aparecem como um relâmpago, e a noite redobra com as trevas, quando ele cessa. É depois destas sortidas, que tem aumentado a sua força moral, e física, a certeza da inutilidade das tentativas os faz mais atrevidos».

 

Audácia que levava os guerrilheiros a agir a qualquer hora do dia, impondo pesados tributos, pagos na hora ou posteriormente, como sucedeu em Alte. A povoação fora assaltada dias antes, a 13 de Fevereiro, às 10 horas da manhã, em plena luz do dia, comandando Remechido a investida, juntamente com a sua guerrilha, composta, entre outros, por um major e vinte cavalos, e logo ali impuseram uma «contribuição em pão, farinha e dinheiro, ficando esperados por dezassete dias os que não tiveram para pagar logo».

Na sua missiva à rainha, as autoridades lagoenses reconheciam que «boa parte da população, principalmente os da plebe, estão unidos em espírito e sentimentos à guerrilha», questionando: «unidos, quem os poderá conter?».

Por tudo isto, justificavam o temor que viviam, avisando «que se de pronto se não remedeia o mal crescerá, e teremos ateada no Algarve a Guerra Civil, e de novo nesta malfadada província se representarão os Horrores de 1833, é assim que eles começaram! Senhora, existe um Estado no Estado».

Terminavam lembrando: «não podemos enfim acabar esta representação, sem lembrar a Vossa Majestade, como a orla marítima do Algarve, onde de facto Vossa Majestade só domina, digo Vossa Majestade que o usurpador reina na serra, na serra que tão legitimamente pertence a Vossa Majestade».

O apelo dramático das autoridades lagoenses não foi o primeiro e também não seria o último. Por aqueles dias, seguiram para a capital do reino apelos angustiantes das Câmaras de Vila Real de Santo António, Portimão ou Silves.

É certo que o governo não deixou de tomar medidas logo por aqueles dias, como, a 4 de março, a suspensão das garantias no Algarve e Alentejo. Contudo, tal não impediu que a guerrilha continuasse a sua atividade com sucesso e impunidade, nos longos e penosos meses seguintes.

Remechido só foi capturado a 28 de Julho de 1838 e condenado à morte quatro dias depois. Mas a insegurança não terminou, só no final de 1844 os bandos que impregnavam a serra se dissiparam. Mas, por agora, em Fevereiro de 1837, o pânico e o terror afloravam à porta dos algarvios.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições, foi atualizada a ortografia.

 

 



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