Bicentenário da Revolução Liberal: Qual a reação dos algarvios ao pronunciamento militar do Porto a 24 de Agosto de 1820?

Bicentenário da Revolução Liberal assinala-se esta segunda-feira, 24 de Agosto

Faro, séc. XIX (Fonte Biblioteca Nacional Digital Portugal)

A 24 de Agosto de 1820 ocorreu no Porto um pronunciamento militar que iniciou o fim do absolutismo e a construção do liberalismo em Portugal. Com ele o país entrava na contemporaneidade, ou não marcassem os regimes liberais a última das divisões a que tradicionalmente se periodiza a história.

A burguesia penetrava nos círculos do poder, pondo fim ao ostracismo a que estava votada, na participação ativa na vida política da nação. Para muito mais tarde ficava o povo, que teria de aguardar pela República ou mesmo pelo 25 de Abril de 1974.

 

A conjuntura internacional e nacional

Na monarquia absoluta havia uma concentração do poder do Estado. O rei era simultaneamente quem fazia as leis, o supremo juiz na sua aplicação e quem mandava na administração pública, não existindo direitos em relação ao monarca. Os cargos públicos eram ocupados por um núcleo restrito de pessoas de famílias nobres.

Mas os tempos eram agora outros, e o progresso, assente nas novas ideias sobre a sociedade e a sua organização política, afirmavam-se pelo mundo. A nova ordem advinha das denominadas revoluções atlânticas: a Revolução Americana e a Revolução Francesa.

A primeira culminou com a independência dos EUA, em 1776, que criou uma inédita República Federal. Com uma vontade crescente de deposição do Antigo Regime, absolutista e opressor, os franceses revoltaram-se em 1789, exigindo «liberdade, igualdade e fraternidade».

Já no século XIX, em 1810, a Espanha viu algumas das suas colónias americanas proclamarem a independência. Os povos exigiam novos tempos alinhados com a denominada filosofia das luzes. Era agora entendimento que o poder não pertencia ao monarca, mas à nação que o delegava no rei, os cidadãos tinham direitos próprios e garantias individuais e os poderes eram separados, o legislativo, exercido pelas Cortes (assembleia eleita e representativa da nação), o judicial, pelos tribunais e o executivo, pelo monarca. Normas reunidas numa constituição, em regra escrita.

 

O pronunciamento militar no Porto (Fonte: Patriotismo por antonomasia… por hum Cidadão Portuense, e Constitucional)

 

Portugal depois das Invasões Francesas (1807-1812) tornou-se, nas palavras da historiadora Isabel Vargues, num «país politicamente desmoralizado e económica e socialmente fragilizado». A família real protelava o seu regresso do Brasil (onde se fixara em 1807), tendo D. João VI promovido no Rio de Janeiro a cerimónia da sua aclamação, em 1818.

Em Lisboa, a Regência revelava um imobilismo e uma incapacidade de pôr em marcha reformas urgentes que obviassem a pobreza, ruína agrícola, comercial e industrial em que o país mergulhara.

Por outro lado, crescia a oposição ao incremento da influência inglesa nos assuntos internos portugueses, que detinha, desde as Invasões Francesas, um controlo efetivo sobre o país, quer administrativa, quer militarmente.

Para muitos Portugal tornara-se num protetorado de Inglaterra, por outras palavras, de metrópole o país virara colónia. A conjuntura internacional naquele ano de 1820 encorajou os conspiradores portugueses. Em Espanha a Constituição de Cádis (1812) fora reposta em Março, enquanto na Sicília e em Nápoles ocorreram em Julho revoltas de natureza liberal.

É assim que na manhã de 24 de Agosto, no Porto, uma cidade mercantil, ocorre um pronunciamento militar. De madrugada teve lugar uma concentração de tropas no Campo de Santo Ovídio, onde foi formada uma parada, lidas duas proclamações, celebrada uma missa e feita uma salva de artilharia.

Às 8 horas da manhã os revolucionários reuniam-se na Câmara, tendo previamente convocado o senado e autoridades para o efeito. Da sessão resultou a formação de uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino (da qual foi vice-presidente o coronel farense Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, que teve também um papel preponderante naquela manhã), que impôs a convocação de Cortes, para a redação de uma constituição e o regresso do rei a Portugal.

O movimento, considerado, a 29 de Agosto, pelo governo da Regência em Lisboa, como um horrendo crime de rebelião contra o poder e autoridade verdadeira, foi secundado por muitos concelhos do norte e centro do país e consagrado, com legitimidade popular, na capital do reino, a 15 de Setembro. Altura em que a Regência é afastada, com a formação de uma outra interina. Doze dias depois os dois governos, do Porto e de Lisboa, unificavam-se em Alcobaça. A revolução liberal principiava o seu trilho.

 

Sebastião Cabreira (Fonte Biblioteca Nacional Digital)

Qual a reação dos algarvios ao pronunciamento do Porto?

É uma questão pertinente, mas de difícil resposta. Na região não existiam jornais e muitos dos livros de atas das autarquias não chegaram aos nossos dias. As excepções são Vila do Bispo, Sagres, Lagos, Portimão, Loulé, Faro, Tavira e Castro Marim.

Todavia, nem todos fazem alusão ao acontecimento, como são os casos de Sagres e de Vila do Bispo, onde há uma total omissão ao mesmo. Certo é que a 6 de Setembro a notícia já era conhecida em Loulé, dia em que a Câmara reuniu com todos os ilustres da vila.

Numa sessão presidida pelo juiz de fora, que chefiava por inerência os destinos do concelho, vereadores, procuradores, oficiais de justiça, autoridades militares, dignidades eclesiásticas, seculares e regulares, clero, nobreza e povo, na qual não só foi qualificada de infame a cidade do Porto, que estava «sublevada por castigo do Céu», como foi considerado de ilegítimo o «governo estabelecido naquela desgraçada cidade», sugerindo-se até um «severo castigo» para os seus autores.

A reunião terminou com juras de fidelidade à Regência: «Viva o senhor Dom João Sexto, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, defendendo-se com o sangue das nossas famílias, sem violarem os direitos da sua família, os excelentíssimos senhores governadores do Reino, legítimos representantes do nosso fidelíssimo monarca. Viva El Rei nosso senhor, viva a sua real família, viva a augusta Casa de Bragança», sendo a ata subscrita por mais de 115 indivíduos. Os louletanos tomavam assim partido pelo governo da Regência de Lisboa.

Em Faro a edilidade reuniu extraordinariamente a 19 de Setembro, com vereadores, procurador, oficiais e militares, para «que se levantasse o Grito da Liberdade Nacional seguindo o Glorioso exemplo da Immortal Cidade do Porto».

A iniciativa partiu do Comandante do Regimento de Artilharia n.º2, tendo na sessão sido deliberado convocar as demais entidades civis, eclesiásticas, militares, nobreza e povo, para que às 17h00 daquela tarde, na praça pública, se proclamasse na «frente do regimento ao Som de artelharia, com toda a Pompa devida a El Rey Nosso Sr. a Rainha Nossa Sr.ª a Real Casa de Bragança com Cortes, e Constituição», bem como três noites de iluminação na cidade.

Onze dias depois de Loulé, a vereação de Faro debruçava-se sobre os acontecimentos, com um comportamento distinto. Todavia, se o pronunciamento já era do conhecimento dos louletanos a 6, dificilmente a notícia não chegou a Faro nos mesmos dias. É certo que o juiz de fora se encontrava doente e ausente em Olhão e que a sessão foi agendada a pedido do comandante do regimento a um vereador, mas há uma outra variável relevante: Lisboa havia secundado os revoltosos no dia 15 e disso haviam tido conhecimento os farenses naquele mesmo dia 19.

 

Sé de Faro (Fonte Jornal O Occidente, n.º360, 1888)

 

Por outro lado Faro era, ao contrário de Loulé, uma urbe portuária, onde o comércio era desenvolvido, e com ele a difusão de novas ideias pelo intercâmbio e acima de tudo o desenvolvimento da burguesia.

À hora aprazada, arvorado o estandarte real, o senado, acompanhado de toda a nobreza da cidade, demais autoridades e povo dirigiram-se para a praça, sob repiques de sinos, onde eram aguardados pelo regimento. Feita a continência o comandante leu uma proclamação à tropa e a todos os presentes, que exclamaram «alegres vivas a El Rey Nosso Senhor, á R. Casa de Bragança ás Cortes á Constituição». A culminar a iniciativa houve uma salva de artilharia do regimento e outra da esquadrilha de guerra, surta no porto.

Regressaram à Câmara, com grande concorrência de pessoas de todas as classes, tendo os representantes destas assinado o auto. Porém, foi depois «votto unanime e desejo geral» que todos os presentes o subscrevessem, num total de 80 signatários. Um privilégio advindo já dos novos tempos. Pela exiguidade da sala e elevada concorrência, o senado e demais participantes retiraram, por sugestão do Cabido, para a sala capitular, onde prosseguiu a sessão «com maior pompa e decência».

Entre outros aspetos (criação de uma guarda de polícia urbana, demissão dos comandos militares), foi proposto que se «Votasse em huma Junta que Provisoriamente Governe este Reyno do Algarve», a qual ficaria sedeada em Faro, «a primeira cidade do Algarve».

O objetivo do governo regional era evitar o «estado de Anarchico» na região, sendo que este se deveria manter em funções até ao estabelecimento de um governo único no país. Proposta aprovada no dia seguinte, em sessão extraordinária. Foi conjuntamente determinado o envio de emissários portadores de um ofício a todas as câmaras do Algarve, acompanhado das deliberações tomadas.

A missiva requeria que fossem enviados a Faro dois procuradores por cada concelho, para a eleição do dito governo provisório, a 30 de Setembro. Uma sugestão desatendida ou mesmo condenada pelas autoridades algarvias, como veremos.

Também em Lagos foi o coronel de milícias e governador interino da praça que convidou o presidente da autarquia, senado, nobreza, povo e guarnição militar, a comparecer no dia 21 de Setembro, na igreja matriz, para aí, juntamente com o clero, «darem todos graças ao Todo Poderoso» pelo estabelecimento de um governo interino em Lisboa e «pella feliz Regeneração».

Por entre «descargas de Alegria e Salva Real», por tão faustos motivos, aclamaram «todos com unânimes e Repetidos Vivas o Nosso Augusto Monarca o Senhor Rei D. João Sexto, a Real Casa de Bragança, a Nossa Santa Religião Católica e a Constituição que fizerem as Cortes». Lagos, importante praça militar e onde em 1816 foi fundada a primeira Oficina maçónica no Algarve, solenizava assim o acontecimento.

 

Castro Marim (Fonte Postal ilustrado, início séc. XX)

 

A sotavento, Castro Marim dedicou a sessão de 22 de Setembro aos novos rumos da nação. Refira-se que o livro de atas, publicado há poucos anos, encerra alguma desordem no seu conteúdo. Há duas atas diferentes lavradas no dia 22 de Setembro, em páginas distintas e entre elas a sessão de 25 de Setembro, um termo de juramento de escrivão de vintena de 31 de Outubro, a que se segue a ata da reunião do dia 10 de Setembro.

Desalinhos à parte, foi a 22 de Setembro que o juiz de fora e vereadores determinaram «dar todas as provas de Júbilo pela instalação do novo Governo de Lisboa (…) que unindo-se á junta provizional do Governado Supremo da Cidade do Porto, de mão comum procurarão a felicidade da nação e a salvação da pátria, que tanto tem a esperar, e da reunião de tão illustrados nobres que compõem ambos as ditas Juntas».

Mais deliberaram três noites de iluminações e nessa mesma tarde na praça da vila juntar-se a Câmara e a nobreza da terra para darem «vivas a El Rey Nosso Senhor, a Dinastia da Caza de Bragançia e Governo Interino de Lisboa, Cortes e Constituição», sendo secundados pelo Batalhão de Caçadores 4, que deu «as salvas de alegria do estillo, comrespondendo o castelo e o forte com salvas de artelharia».

 

Portimão, séc. XIX (Fonte Biblioteca Nacional Digital)

Por sua vez, na próspera e comercial Vila Nova de Portimão o senado reuniu-se a 25 de Setembro, na sequência da receção, de entre outras, da proclamação do governo provisório, de 17 do mesmo mês, deliberando nova sessão para a manhã seguinte.

Assim, refere a ata de 26 de Setembro, que a notícia da instalação de um governo interino em Lisboa fora recebida por todos com contentamento e alvoroço, pelo que manifestavam ali «ardentes desejos de União e adezão dos seos vottos aos da capital».

O senado, na presença das autoridades civis e militares, nobreza, clero e povo, prestou, com «o maior intusiasmo, o mais Vivo reconhecimento, obdiencia e homenagem e votos de fedelidade» ao novo governo. Tendo o presidente, momentos depois, das janelas da Câmara, repetido aos militares e povo, que se encontravam no largo, os mesmos vivas, que foram correspondidos com a «maior alegria, dando a tropa três salvas». Cerimónia que decorreu com a maior ordem, tranquilidade e geral contentamento.

Foi ainda acordada a colocação de luminárias durante três noites, acompanhadas com salvas de artilharia, bem como celebrada uma missa cantada e de um Te Deum na matriz, em ação de graças ao «Altíssimo por tão grandes beneficios». A ata foi subscrita por cerca de 60 pessoas.

Já em Tavira só a 3 de Outubro encontrámos uma pequena referência indireta à revolução. Trata-se da receção de um ofício do governo interino de Lisboa em resposta à carta que o senado de Tavira havia enviado, «sobre os acontecimentos do comissário que veio a esta cidade mandado pela Junta que se queria formar em Faro». Segundo Luís Vidigal, a Câmara de Tavira recebeu a missiva farense a 22 de Setembro, tendo no dia seguinte, zelosamente, dado conhecimento da posição que tomara a S. Majestade. Afinal os tavirenses, «firmes nos nossos deveres», não só haviam rejeitado a nomeação de deputados para a Junta como «a recepção das mesmas Cartas», repreendendo em simultâneo a atitude das autoridades de Faro ao monarca.

Em ofício remetido para Castro Marim, o provedor da comarca de Tavira, relatava o menosprezo que a proposta merecera na Veneza algarvia, referindo que esta tinha sido desprezada pelos povos e desentendida pelas autoridades civis e militares, «devia esperar-se do reconhecimento publico que havião feito, e obediência que já tinhão prestado ao governo novamente instalado em Lisboa».

Lembrava ainda o provedor que a Câmara de Castro Marim deveria evitar alguma deliberação precipitada, embora confiasse que nesta «se sustentarão firmes os arbítrios de alucinação e do erro». Ofício similarmente remetido para as demais edilidades da região.

Em Portimão, sobre a matéria, o senado determinou responder, a 25 de Setembro, ser desnecessário o estabelecimento da Junta. Posição mais impetuosa teve a autarquia lacobrigense, no dia seguinte, apesar de não ter recebido os emissários farenses, o seu propósito já era ali conhecido, pelo que estavam dispostos a «repelir com firmeza semelhante Proposta como extemporânea, e subversiva da boa Ordem, que felizmente reina entre nós», ao que acrescentavam «com vista à regeneração e prosperidade da Nação», só reconheciam e receberiam ordens do novo governo de Lisboa, alinhado juntamente com o do Porto.

Face ao exposto, a reação do Algarve ao pronunciamento liberal primou, à excepção de Loulé, pela cautela. Só depois do triunfo do movimento em Lisboa, a 15 de Setembro, as autarquias se debruçaram sobre o assunto. Se até então a prudência terá imperado depois, se a capital do reino anuía, o Algarve consentia…

 

Lagos (Fonte, jornal O Ocidente n.º384, 1889)

Faro e Lagos reuniram a 19 e 21 de Setembro respetivamente, a pedido das chefias militares, que desta forma secundavam os congéneres portuenses. Já em Castro Marim e Portimão a iniciativa partiu dos juízes de fora. Localidades onde se reproduziram os acontecimentos do Porto, repetindo-se salvas, missas, luminárias, e vivas à liberdade, ao monarca, às Cortes e à constituição, tudo na maior tranquilidade e segurança.

Apesar dos tempos de mudança, desde logo assinalada em Faro com todos os presentes a poderem rubricar o auto, em Castro Marim o povo não foi convocado a associar-se ao momento festivo. Loulé, depois de condenar o pronunciamento, a 6 de Setembro, cuja ata foi a mais ratificada da região, remeteu-se ao silêncio, enquanto Tavira praticamente o ignorou nas suas sessões, constituindo os dois casos de maior conservadorismo na região. A localização geográfica de Loulé (no interior) e o predomínio da nobreza e influência do clero em Tavira (mais de 30 igrejas), não serão alheios a esta realidade.

Mas note-se também a indiferença dos senados de Sagres e Vila do Bispo. Se a maioria das autoridades do Algarve se congratularam com o novo período que se iniciava, foram unânimes em acatar as ordens das velhas instituições, como o provedor da comarca, na oposição à eleição de um governo regional, conforme sugeriu o progressivo senado farense, e acontecera aquando a expulsão dos franceses, em 1808. Os meses seguintes foram intensos, Lagos, por exemplo, solenizou pomposamente, a 15 de Outubro, a fusão do governo do Porto com Lisboa, também em Faro o acontecimento não passou inobservado.

Em Dezembro, os algarvios elegiam, pela primeira vez, três deputados, um por Tavira, outro por Faro e um outro por Lagos, que em Lisboa participariam na redação da primeira Constituição de Portugal.

A Revolução Liberal principiava, mas o caminho a trilhar ia ser árduo e complexo. Por um lado a difícil aceitação pela perda/partilha do poder de uns, por outro, a incompreensão da mudança, muito protagonizada pelo povo rude. Em 1823 a contra-revolução restaurava o absolutismo, apenas derrotado em 1834, depois de uma violenta guerra civil, que no Algarve se prolongou até 1844.

Mas por agora, Agosto de 1820, «viva a Liberdade», «viva a constituição», «viva a regeneração da nação».

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época.

 

 

 

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