Agentes culturais revoltados com falta de resposta sobre continuação ou fim do 365Algarve

Ministério da Economia respondeu a questão colocada pelo Sul Informação…e as notícias não são boas

Novo circo foi uma das propostas habituais do Lavrar o Mar

«Desrespeito», «indignação», «falta de consideração», «inacreditável», «absurdo». É com estas palavras que os representantes de cerca de metade dos projetos culturais apoiados pelo 365 Algarve nesta última temporada classificam a falta de informação sobre o futuro deste programa.

O 365 Algarve, que começou em Outubro de 2016 e atingiu quatro temporadas, foi lançado em Agosto desse ano, em conjunto pelas Secretarias de Estado da Cultura e do Turismo, com um orçamento de 1,5 milhões de euros, com o objetivo de «aliar cultura e turismo para travar a sazonalidade no Algarve».

Quatro anos depois, após mais de um milhar de espetáculos e de outras iniciativas, os agentes culturais promotores das atividades estão há longos meses à espera de saber se o 365Algarve é para continuar. Aliás, até estão à espera que, ao menos, lhes digam claramente que o programa não vai continuar…e porquê.

O Sul Informação esteve à conversa, via zoom, com 11 agentes culturais que participaram ativamente nesta mais recente temporada do programa e a disposição geral é de revolta perante o silêncio.

Giacomo Scalisi, da Cooperativa Cultural Lavrar o Mar, resume o sentimento de todos: «é importante não deixar passar em silêncio esta ausência de respostas por parte das secretárias de Estado da Cultura e do Turismo».

«É uma falta de consideração para nós, que estamos no terreno e infelizmente já um pouco habituados a esta questão de sermos um bocado descartáveis. De sermos um bocado serventes para a tutela, que, quase a toque de caixa, nos diz: “Faz favor organizem-se”; “Já não precisamos de vocês”; “Até à próxima”», acrescenta Nuno Pereira, do LAC – Laboratório de Actividades Culturais.

Alexandra Santos, uma das responsáveis pelo Festival da Comida Esquecida (Cooperativa Qrer), sublinha: «temos tantos projetos a que queremos dar continuidade, mas assim, sem qualquer informação, estamos todos um bocado sem saber o que fazer com eles».

Para José Laginha, dos Encontros do Devir (Devir-Capa), o 365Algarve «não era perfeito, mas isso não justifica que ele desapareça, sem mais nem porquê».

 

Festival da Comida Esquecida, em Giões (Alcoutim) – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

A 26 de Outubro, numa deslocação a Faro e questionada pelo Sul Informação, Ângela Ferreira, secretária de Estado do Património Cultural, considerou ser «muito importante» prosseguir com o «trabalho» do 365Algarve. Cerca de um mês antes, a mesma responsável tinha prometido para «Novembro» uma decisão sobre o programa. Só que passou Novembro, Dezembro já vai a mais de meio, e sobre a decisão nada se sabe.

E as notícias não são, de facto boas. Quem manda no programa é, na realidade, o Ministério da Economia (que tutela a Secretaria de Estado do Turismo e o Turismo de Portugal, de onde provinha o dinheiro que financiava o 365Algarve). Por isso, o nosso jornal questionou esse Ministério, para saber se já há «alguma decisão sobre a continuidade ou não do programa».

A resposta, bastante lacónica e de modo algum direta, foi a seguinte: «a interrupção abrupta da atividade turística a que se assistiu teve um significativo impacto negativo nas empresas do setor do turismo. E, neste quadro fortemente negativo, as microempresas e PME que organizam eventos encontram-se entre as empresas que enfrentam maiores dificuldades e desafios. O Turismo de Portugal está a trabalhar numa medida que visa, assim, a concessão de apoios financeiros que permitam às microempresas e PME a retoma da sua atividade, através da organização de novos eventos com os efeitos positivos daí advenientes para as mesmas, para o emprego e para a economia nacional, incluindo a economia do Algarve».

Em paralelo, acrescenta o Ministério da Economia na sua resposta ao Sul Informação, «foi criado, no âmbito do OE 2021, um programa de apoio ao trabalho artístico e cultural, destinado às artes performativas, visuais, de cruzamento disciplinar e à exibição alternativa de cinema. As áreas artísticas abrangidas por este novo programa de apoio incluirão, designadamente, a arquitetura, as artes plásticas, o design, a fotografia, os novos media, o circo, a dança, a música, o teatro e o cinema, áreas que encontram no Algarve 365 representatividade».

Ou seja: anunciam-se apoios a microempresas e PME para a « organização de novos eventos» em todo o país, nomeadamente no Algarve. E anunciam-se apoios para o «trabalho artístico e cultural», precisamente nas áreas que estavam representadas no 365Algarve.

Para a questão concreta sobre se o programa continua, não há resposta concreta. Mas, pelas entrelinhas, percebe-se que acabou.

E é precisamente contra a «falta de consideração» de nem uma resposta ou comunicação oficial haver, que as estruturas culturais algarvias se manifestam.

 

Festival Ventania

Lavrar o Mar, Festival da Comida Esquecida, Encontros do Devir, Festival Verão Azul, Festival Internacional de Cinema e Literatura de Olhão (FICLO), Festival Out (In)Verno, Ventania – Festival de Artes Performativas do Algarve, LAMA/À Babuja. Estes foram alguns dos projetos que, ao longo da quarta temporada, interrompidos (primeiro), condicionados (depois) pela pandemia, se apresentaram em todo o Algarve, mesmo nos locais mais recônditos, fora da época alta do turismo. Mesmo em ano completamente atípico, atraíram portugueses e estrangeiros, da região e fora dela. E agora esbarram num muro de silêncio.

«Este silêncio é deveras estranho. Porque um programa não pode acabar assim, Pelo menos deveria haver um comunicado qualquer a dizer que “vamos acabar com o programa”», sublinha Débora Mateus, do FICLO (Cineclube de Tavira).

«Estou muito indignada com o facto de nem sequer existir uma decisão. Porque uma decisão permite contestação ou aceitação, enquanto este silêncio gera indiferença. E indiferença é uma forma de mau-trato, é o que sinto. Penso que está na hora de provarmos que não merecemos esse mau-trato e que o nosso trabalho, de facto, é vital para a região. Porque, não existindo o 365, todos nós sabemos que o Algarve adormece na época baixa», defende Elsa Santos Mathei, da Questão Repetida, que organiza o Festival Out (in)Verno.

Mónica Samões, da associação casaBranca, que promove o Festival Verão Azul, frisa, por seu lado, que, «embora nós soubéssemos, desde o início, que isto seria um programa para durar x anos, existia a expectativa de que existisse, já nem falo sequer de uma satisfação, mas uma espécie de avaliação». Para essa avaliação, os promotores dos eventos gastaram muitas horas a fazer relatórios e a preencher inquéritos, que agora ficam sem qualquer utilidade.

«É muito fácil destruir não é? Construir é que é mais complexo. E é um trabalho no tempo. E as coisas, muitas vezes, precisam de tempo para se instalarem, nós todos, todas as estruturas, nas relações com as entidades, as comunidades, as autarquias. Tudo isto é uma construção», que levou muito tempo e que agora, pelos vistos, «vai por água abaixo», acrescenta Mónica.

João de Brito, do LAMA Teatro, recorda a importância «transversal» que o 365Algarve teve para todas as estruturas, com «projetos mais pontuais, projetos mais continuados, sedimentação de coisas que estavam na gaveta e que saíram para fora», mas também para a «ligação com as comunidades, com as Câmaras, com as Juntas de Freguesia». Como fica tudo isso agora?

Madalena Victorino, do Lavrar o Mar, em sintonia, pergunta onde fica a «continuidade de uma dinâmica cultural que se estabeleceu, transversalmente, pelo Algarve, com projetos tão diversificados e de tanta qualidade, que imprimiram em toda a região, em época baixa, uma dinâmica que nunca tinha existido?»

«Ou continuamos sempre a fazer o mesmo? Quando está alguém no poder, concede atenção a um determinado assunto, põe-no a funcionar. Depois as tutelas mudam e tudo acaba?», questiona.

 

Encontros do Devir

José Laginha não se espanta com o silêncio da Cultura, mas preocupa-se com o do Turismo. Embora, no fundo, não o estranhe. É que, desde o início do 365Algarve, em 2016, sempre houve vozes do setor turístico, na região algarvia e fora dela, a questionar a validade de “gastar” 1,5 milhões de euros do turismo a financiar a cultura. Sobretudo, esta cultura, feita não de grandes espetáculos comprados fora, mas produzida na região, por grupos e artistas que cá vivem.

«Sempre ouvi o argumento de que todo o dinheiro do turismo é para fazer turismo. Ou seja, o dinheiro do turismo só é aplicado em cultura se isto significar que vai haver benefício direto para o turismo», admite o coreógrafo.

O 365Algarve, recorda José Laginha, «foi vendido» desde o início como algo para encher camas de hotel na época baixa. «Se as camas estão vazias e não há perspetivas de que venham a ser ocupadas, não acho muito estranho» o silêncio. No entanto, avisa, o que é preciso é que as entidades da tutela pensem «se vamos ter futuro» e se, para haver esse futuro, «não é preciso que o Algarve se mantenha como uma região com interesse».

Elsa Mathei tenta desconstruir a ideia de que turismo é turismo e cultura é cultura. «A cultura também traz dinamismo económico para os agentes do turismo, para os hotéis, para a restauração».

Giacomo Scalisi concorda e refere o exemplo de Monchique que, com os espetáculos de novo circo trazidos pelo Lavrar o Mar e que marcaram as passadas quatro épocas de Ano Novo, recebeu «mais de 7 mil visitantes» nesses dias. E o concelho de Monchique só tem 4 mil habitantes. Muitas desses espectadores ficaram instalados nos alojamentos do concelho ou nos dos municípios vizinhos, comeram nos restaurantes monchiquenses, permaneceram vários dias. Para mais, na sua maioria foram pessoas que não visitariam aquele concelho se não fosse pela atividade cultural.

Alexandra Santos não percebe porque é que «vamos deitar por terra uma data de dinheiro, de trabalho, de energia, de pensamento para depois voltar a recomeçar».

«Foi feito um grande investimento económico neste ano, nestes quatro anos, estamos a falar de milhões de euros, criámos dinâmicas, criámos público aqui na região. E agora o que é que acontece?», interroga Giacomo Scalisi.

José Laginha acrescenta: «nós não estamos a pedir nada que não tenha sido gerado aqui, no Algarve. Eu acho que este é um ponto de que, normalmente, o turismo se esquece, quando tenta tratar-nos como se nós fossemos uma região qualquer». Não. O Algarve é a maior região turística portuguesa, a que mais dinheiro gera para todo o país. Por isso, consideram os agentes culturais, é mais que justo que receba aquilo a que tem direito.

Só que, diz Débora Mateus, «uma vez mais, se calhar, o Algarve, neste país tão centralizado, acaba sempre por ser um dos parentes pobres. Isso acontece em muitas áreas, obviamente, mas acontece exageradamente na cultura».

E, sem os apoios à produção do 365Algarve, as estruturas culturais algarvias podem sobreviver ou estão, também elas, em perigo?

 

Street Art Lab do LAC

 

Candela Vara, do FICLO, já tinha posto o dedo na ferida, ao dizer que, com a indefinição causada pela falta de um anúncio formal da sobrevivência ou morte do programa, se está a acentuar «a precarização dos agentes culturais».

Berna Huidobro, do TEL-Teatro Experimental de Lagos/Festival Ventania, recorda que o programa ajudava a «criar empregabilidade na época baixa». «O nosso festival, anualmente, costumava empregar 60 artistas, 20 técnicos. Então, é um evento que atrai pessoas, mas também dá alguma coisa à economia local».

Com o fim (não) anunciado do 365Algarve, Berna diz que o seu Festival Ventania, «que acontecia durante duas semanas, agora só irá durar três dias. Sem o 365, o volume e a qualidade reduz-se».

Elsa Mathei revela que o Out (in)Verno já está «planeado para o próximo ano, mas numa escala de um terço. Estávamos em três concelhos, ficamos reduzidos a um, não conseguimos tornar o festival itinerante». Este corte, lamenta, «vai penalizar uma série de pessoas envolvidas nos projetos».

Giacomo Scalisi admite que, em alguns casos, possa estar em perigo a sobrevivência das estruturas. Não é o caso da cooperativa Lavrar o Mar: «nós temos um financiamento que as Câmaras nos continuam a dar, um financiamento mínimo, obviamente, porque estamos a falar de Câmaras pequenas, como Aljezur e Monchique. Mas até agora têm acompanhado o nosso e manifestam a vontade de continuar a acompanhar. Porque perceberam que o trabalho que estamos a fazer é importante, para as pessoas que moram no Algarve, que moram em Aljezur, que moram em Monchique e, também, para a economia destas duas vilas».

José Laginha anuncia que, depois de ter sido «90% internacional», trazendo à região algarvia nomes importantes do mundo da dança contemporânea, os próximos Encontros do Devir pouco mais serão que uma «plataforma online» «para divulgar os jovens». «Não acaba o festival, mas é virado completamente ao contrário».

Andrea Sozzi, da casaBranca, admite que o Festival Verão Azul vai ser alvo de «uma redução muito forte».

Alexandra Santos contesta como é que «se pode deitar fora o investimento financeiro feito por parte das tutelas», bem como «todo o trabalho feito e que é preciso sustentar, com energia, para que ele depois, num momento mais solar, que se pensa que virá com a vacina, ganhe outra vez fôlego». «Vamos começar tudo, outra vez, do princípio?»

«O que questionamos é porque é que o investimento de tanto tempo e de tanto dinheiro acaba desta maneira, sem ter uma resposta, sem ter uma avaliação que, provavelmente, até foi feita», conclui Giacomo Scalisi.

 

Participaram nesta entrevista coletiva:

Giacomo Scalisi e Madalena Victorino – Lavrar o Mar Cooperativa Cultural CRL
José Laginha – Devir-Capa | Encontros do Devir
Alexandra Santos – Cooperativa Qrer | Festival da Comida Esquecida
Nuno Pereira – LAC | Laboratório de Actividades Criativas
João de Brito – Associação Lama Teatro
Mónica Samões e Andrea Sozzi – CasaBranca | Festival Verão Azul
Débora Mateus e Candela Vara – Cineclube de Tavira | FICLO
Elsa Santos Mathei – Questão Repetida | Festival Out (In)Verno
Berna Huidobro – TEL-Teatro Experimental de Lagos | Festival Ventania

 

 

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