Do antigo celeiro, nasce o museu de Vila do Bispo

A mais recente estrutura museológica do Algarve abre este sábado as suas portas, oficialmente. E tem muito para oferecer

Exterior, com as cores da geologia de Vila do Bispo – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Quase desde que há homens no território hoje conhecido como concelho de Vila do Bispo que há mós, para moer os grãos e fazer pão ou outros alimentos. Por isso, não é de estranhar que, no novo Museu de Vila do Bispo, que abre as suas portas este sábado, haja mós de diversos períodos, desde a Pré-História.

E que o próprio museu tenha sido instalado no antigo edifício da Federação Nacional dos Produtores de Trigo, construído nos anos 40 no sítio das Eiras, que, até anos 80 do século passado, funcionou como celeiro para guardar a podução do concelho. Daí que o Museu de Vila do Bispo tenha outro nome: Celeiro da História.

«Temos, de facto, muitos sistemas de moagem, ao longo dos tempos. Até podíamos chamar a isto Móseu», brinca Ricardo Soares, arqueólogo da Câmara de Vila do Bispo e responsável pelo projeto de museologia.

 

Átrio de entrada e loja – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O Sul Informação visitou o Museu há já algum tempo, quando ainda estava a começar a instalação das peças que vão contar 400 milhões de anos de histórias deste território. O grande edifício é vermelho e cinzento por fora. O vermelho assinala a zona nova, construída agora, e evoca «a cor do grês que marca a Ponta do Telheiro», monumento geológico do concelho, como explica o arqueólogo. O cinzento marca os antigos edifícios da FNPT.

Muitas das paredes, no exterior e no interior, têm no betão em que foram construídas as marcas das tábuas de cofragem. Ricardo Soares conta que isso pretende recordar «o tabuado que dividia os cereais dentro do celeiro».

Lá dentro, num espaço amplo marcado por um fundo de cor bem escura, vai brilhar o acervo deste Museu de território, que começa com amostras de rochas, exemplares da riqueza geológica do concelho, continua com as pegadas de dinossauro presentes em vários locais, nomeadamente na praia da Salema (e aqui recriadas com ilustrações de Luís Taquelim). «Queremos tentar transmitir a ideia de que a história da Terra é muito maior que a história da humanidade. Nós só cá chegámos ontem, ao fim do dia», frisa o arqueólogo.

Chegam finalmente os homens e a sua primeira marca é o abrigo neolítico de Vale de Boi. Lá estarão alguns objetos descobertos durante as escavações arqueológicas dirigidas ao longo de mais de 20 anos por Nuno Bicho, como a falange de leão (Havia leões no Algarve há 34 mil anos?).

Seguindo para o Mesolítico, surgem os concheiros. «Sempre o marisco e a pesca desde que há registos no território», sublinha Ricardo Soares. Depois, a agricultura chega, há 6500 anos. E o Museu conta esta história, mostrando muitos utensílios, nomeadamente foices feitas com madeira e sílex.

Uma sala é dedicada ao Megalitismo. É que Vila do Bispo é das zonas de Portugal com mais concentração de menires. Uma das peças que será mostrada pela primeira vez é uma estela-menir descoberta durante uma escavação na zona da Raposeira. Mas há outros exemplares.

Mesmo sem existir casa para o Museu, a Câmara de Vila do Bispo já há vários anos que aposta em dar a conhecer o vasto património geológico e arqueológico do concelho à comunidade, a começar pelos alunos das escolas locais. Uma das peças que está agora em exposição é uma pequena enxó votiva pré-histórica, feita em fibrolite, uma rocha que só existe na Serra Morena, em Espanha, a muitas centenas de quilómetros do Algarve.

A pequena peça foi oferecida «por um miúdo que conheci nas aulas de Património, aqui na escola. O pai dele é caçador, achou essa pedra e deu-a ao miúdo, que, por estar desperto para o assunto, viu que estava ali algo de valor arqueológico. Fizemos uma troca: ele deu-me a enxó, eu dei-lhe umas amostras de rocha mais raras».

 

Cortiço horizontal em cerâmica, romano – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Avançando no tempo, no espaço dedicado à época romana chama a atenção o mosaico levantado da Boca do Rio (e que agora regressa ao concelho) ou uma peça mais discreta, mas muito interessante: um cortiço horizontal em cerâmica. É que os romanos tinham cortiços destes em paredes, para atrair os enxames de abelhas, como se fossem pombais.

Há ainda peças islâmicas, peças medievais (como uma lápide de cobertura de uma sepultura com uma inscrição e simbologia judaica), peças do início da Idade Moderna. E aqui chega-se a uma figura incontornável da história de Portugal e do concelho: o Infante D. Henrique.

«Confesso que a figura do Infante não me atrai muito, mas tenho de admitir a sua importância. Aqui no concelho, ele foi importante pelo menos em duas épocas fundamentais: na fundação da Vila do Bispo e depois, no século passado, em 1960, quando das comemorações dos 500 anos da morte do Infante, quando se fez a maior campanha de obras de que o concelho já foi alvo: foi a estrada, o restauro da fortaleza, o edifício da Câmara Municipal», conta Ricardo Soares.

«Pensámos: como vamos tratar o Infante?» E a resposta foi, quase em jeito de provocação, recriar uma sala de aulas dos anos 60, a remeter para a famigerada Escola de Sagres, que nunca existiu, mas que persiste na mitologia nacional. «É a escola de Sagres, desconstruindo-a», explica o arqueólogo.

 

Lápide medieval com inscrições judaicas – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Neste percurso pela história do território, vai haver um espaço vazio, este sábado, dia da inauguração. O espaço dedicado ao naufrágio do navio-almirante francês L’Ócean, junto à Boca do Rio, em Agosto de 1759. O navio, que ardeu e se afundou após refrega contra navios britânicos, deixou muitos vestígios no fundo do mar, desde canhões a objetos do dia a dia. Mas as peças que deviam vir para Vila do Bispo, apesar de o processo ter sido iniciado em 2016, com um protocolo com a então Direção-Geral do Património Cultural, ainda não chegaram. Porquê? A DGPC foi extinta no fim do ano, dando lugar a duas novas entidades e, no meio de todas essas mudanças, o Município de Vila do Bispo ainda não conseguiu que as peças lhe fossem entregues…

Mas esse não é o único naufrágio recordado no Celeiro da História. Os afundamentos de navios ao serviço das forças aliadas, pelo submarino SM U-35, da Marinha Imperial Alemã, na I Guerra Mundial, fazem parte da história que aqui está a ser contada, havendo peças bem curiosas para observar.

Do século XIX e XX, há um interessante espólio etnográfico, que remete para uma vida dividida entre a terra (a agricultura) e o mar (a pesca, o marisqueio). Mas há também máquinas agrícolas quase únicas no mundo, como uma máquina escolhedeira, que pertencia à FNPT, registada em 1958. Feita de madeira e metal, a máquina, italiana de fabrico, servia para escolher o cereal conforme o seu tamanho. «Foi toda restaurada, pode funcionar», conta Ricardo Soares.

A terminar, o Museu chega aos dias de hoje: e a prancha de bodyboard com a qual a atleta local Joana Schenker se sagrou campeã do mundo da modalidade, em 2017, é uma das peças a dar conta dessa história que todos os dias se escreve.

Há ainda um pequeno auditório com 50 lugares, a pensar nas escolas e no serviços educativos, bem como áreas de exposição, reservas e escritórios para a equipa. À entrada, a acolher os visitantes, estará uma escultura em bronze de Teresa Paulino, chamada «O abraço».

 

Loja do Museu – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O Museu de Vila do Bispo – Celeiro da História resulta de muito trabalho feito aos longo de décadas, em especial nos últimos anos. «Temos tido vários projetos plurianuais, por exemplo, na Boca do Rio, em Vale de Boi, mas também a Carta Arqueológica Terrestre e Subaquática ou o projeto PaleoCoast, que junta espeleologia e arqueologia, mais uma vez terrestre e subaquática», salienta o arqueólogo.

Ricardo Soares faz questão de sublinhar que este Museu nasce de um «processo participativo e inclusivo» e isso começa logo pelo nome. «As pessoas sempre chamaram a isto celeiro e é isso que vai continuar a chamar-se: celeiro da história».

O serviço educativo, que já trabalha com as crianças desde há anos, continuará a sua tarefa. E haverá, até ao final do mês de Janeiro, quatro visitas guiadas por dia, em Português e em Inglês, «já que 60% da nossa comunidade é estrangeira».

Além disso, para reforçar a sua ligação à comunidade, a loja do Museu terá à venda produtos locais, seja artesanato, mel, queijos de figo ou outras coisas. «Não ganhamos nada com isso, é mesmo um apoio direto aos produtores locais».

Como este é «um museu de paisagem», prolonga-se para fora das paredes do edifício-sede. Nesse âmbito, vão ser feitas parcerias com empresas locais, atuais ou futuras, que farão formação no Museu. «No fim, dadas as suas boas práticas, essas empresas serão certificadas pelo Museu». E um visitante que queira conhecer mais sobre algo de que ouviu falar no Museu, na área da flora, da fauna ou da arqueologia, terá ao seu dispor uma lista de empresas certificadas que fornecerão esse serviço e serão, no fundo, «uma extensão do Museu no terreno».

Pôr tudo isto de pé custou, até agora, cerca de dois milhões de euros, um esforço muito significativo por parte de uma Câmara Municipal que não é propriamente rica. Mas o objetivo é criar um novo atrativo no concelho para que os turistas não se limitem a uma visita relâmpago à Fortaleza de Sagres.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 


Um Museu «sempre a mexer»

Com a inauguração oficial do Museu este sábado, às 11h00, e a festa para a comunidade, marcada para domingo, às 15h00, na zona envolvente (se o tempo o permitir), fecha-se um ciclo.

Mas não termina o trabalho do Museu.«As coisas estão sempre a mexer e nós temos planos para continuar o Museu», revela o arqueólogo e museólogo Ricardo Soares.

Recorrendo aos fundos do Algarve 2030, o projeto passa por tratar toda a envolvente do edifício, ligando-a de forma mais harmoniosa ao vizinho campo de futebol, criar um parque de merendas e uma eira comunitária, que possa servir para atividades culturais e recreativas, envolvendo as pessoas com o Museu.

Mas o projeto passa ainda por criar mais espaço para reservas e um espaço amplo para mostrar as grandes alfaias agrícolas que são peças de museu, como uma enorme e rara debulhadora mecânica Tramagal, oferecida por uma grande casa agrícola do concelho e que muito trigo debulhou nos campos férteis de Vila do Bispo.

O que vai arrancar já é o site do Museu, que terá várias funcionalidades interessantes, como podcasts a contar a história das peças principais.

 

A máquina escolhedeira – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

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