Um fotógrafo em busca da “discordância angular da Praia do Telheiro”

O fotógrafo Filipe da Palma conta-nos aqui a difícil viagem que fez em busca de imagens de um dos mais curiosos locais geológicos da região algarvia

Foto: ©Filipe da Palma

Tendo-me proposto a elaboração de um trabalho fotográfico cujo tema recai sobre a imensa diversidade geológica da região do Algarve, tal desiderato compele-me a uma vez mais (já o havia feito com a arquitetura popular) a percorrer o espaço natural com a câmara fotográfica.

Se motivos existem que me impelem a descer às profundezas, outros levam-me aos mais altos espaços, da litoral fímbria às zonas serranas, das areias sedimentares, aos arenitos, aos calcários, aos xistos.

Assim, tendo em minha extensa lista um mítico local denominado “discordância angular da Praia do Telheiro”, decidi meter-me a caminho de Sagres.
Escrevo mítico pois, por diversas vezes, já havia tentado lá ir (após ter visto algumas poucas e raras imagens) e, da única vez que o consegui, na companhia de um Amigo, era ainda manhã, impossibilitando quer uma boa visualização, quer uma subsequente boa tomada de imagens, pois a área, para além de se encontrar na penumbra da sombra, encontrava-se ainda em contraluz.

Chegando à rotunda de Sagres, pela Ecovia do Litoral, vulgo Nacional 268, virar à direita em direção ao Cabo de São Vicente.

Cerca de 3.500 metros depois, numa delgada possibilidade de descoberta do território (antes do farol do Cabo de São Vicente), virar novamente à direita, relegando para fora do campo visual quer os inúmeros autocarros em peregrinação turística, quer os alvos e babilónicos corpos que se acotovelam nos melhores cenários de selfies.

Uma reta duplamente quilométrica, após uma pequena curva e contra-curva, estende-se até a um monte semi-abandonado e parte em ruínas, de seu nome Vale Santo, onde ainda persiste uma exploração agrícola.

Meses passaram desde uma anterior deslocação à zona e, por essa altura, não me havia apercebido de novas vedações que impossibilitam quase por completo o estacionamento de uma viatura. Felizmente, consegui parqueá-la entre ruínas.

Em casa, no dia anterior, pelo Google Earth, havia reparado que, a partir do final da alcatroada estrada, seria possível conduzir pelo caminho de terra até muito próximo do sítio onde pretendia captar algumas imagens da Praia do Telheiro, porém, tendo presente que me encontrava em território de Parque Natural e dispondo de tempo antes do recuo do Oceano – permitindo a minha lenta progressão pela rochosa fímbria até à Ponta dos Ouriçais, local onde é visível em todo o seu espanto o Geomonumento da Praia do Telheiro – optei por o fazer a pé.

Primeiramente, desejei fazer um percurso que me colocasse num ponto em que pudesse ter perceção da área onde recaía meu interesse, situando-o num plano mais abrangente e que permitisse a leitura das especificidades do terreno.

Assim, de costas para o alcatrão, após ter estacionado a viatura, vira-se à esquerda numa pequena elevação de terreno e pouco depois novamente na primeira à esquerda, numa progressão para Sul da Praia do Telheiro.

Mais ou menos um quilómetro de fácil progressão entre terrenos vedados com cerca elétrica para contenção de gado e avisos escritos em inglês dissuadindo quem deseje atalhar caminho.

Passados os limites de propriedades, que corresponderão à disposição das terras cerealíferas mais férteis e a despidos terrenos de pastagens, estendem-se e crescem as verdes manchas que encontram na aridez do terreno nutrientes suficientes para germinar, porém não crescendo muito em altura, mas antes e em algumas espécies, desenvolvendo-se horizontalmente, pois o quase sempre permanente e rijo vento assim o condiciona.

Sempre orientado por anteriores deslocações ao território, um quilómetro mais terá passado até ao momento de aproximação à falésia quando me julguei próximo do local que permitiria a visão que desejava captar.

 

Foto: ©Filipe da Palma

 

Assim, aconteceu. Entre as moitas odoríferas nestes primeiros calores de finais de Primavera, entre as calcárias e alvas rochas que despontam da terra ocre, vejo o azulino Oceano e, ao fundo, após uma enseada e seu pristino areal, a extremidade Norte da Praia do Telheiro.

Uma falésia que, em seu final, apresenta uma nacarada cor em seu conjunto, pois a camada superior de grés, disposta quase horizontalmente sobre o cinzento/negro do xisto e grauvaques, ao dissolver-se, a tudo empresta sua cor, até à linha de rebentação/maré; bem diferente em seus elementos constituintes do sítio onde me encontro, de onde parecem despontar alvos ossos, na verdade calcários dolomíticos que, ao longo de milhões de anos de exposição aos elementos, se foi erodindo, tornando-se numa cársica paisagem.

Com pausas várias determinadas pelos enquadramentos possíveis na tomada de imagens, fazendo sobressair este ou aquele elemento, observei que a maré estava ainda muito elevada, fustigando ainda o inferior xisto, possibilitando desta forma o regresso ao carreiro principal e andar cerca de mil metros mais até à Praia do Telheiro.

Duas moças, aparecidas de um outro carreiro, acompanharam-me na descida por entre raízes e penedos, corpos novos e de uma alvura nórdica, em busca de locais exclusivos, tropeçando de quando em vez nos aglomerados de rocha detrítica muito compactada que faziam parte de um antigo conjunto de dunas consolidadas, nos quais é possível observar estruturas cilíndricas que não são mais que raízes fossilizadas, as quais são denominadas de rizoconcreções.

Uma vez na praia, caminhando para Norte (pela direita) e deixando para trás a visão de uma maciça e altaneira muralha de calcário dolomítico, vão-nos surgindo, do lado direito, blocos fragmentados de compactado arenito de depósitos quaternários que, pela erosão da camada a si inferior, constituída por depósitos argilosos, se precipitaram no areal.

Tem início, junto à linha de água, uma caminhada de cerca de 200 metros. Porventura, esta, a parte mais difícil, pois que a progressão é um pouco penosa entre pequenos e gigantescos blocos que fazem subir e descer, avançar para depois recuar, parar para avaliar distâncias e saltar, ponderar entre passar sobre ou sob um bloco que parece suspenso com poucos pontos de contacto… as mãos ajudam a suster o corpo, as pernas abrem em inusitados ângulos, o corpo balança de um lado para o outro para compensar o natural adornar, os pés confinados a botas com rigidez suficiente em seu cano capaz de prevenir contusões e entorses .

Entre paragens, quer para avaliar o esforço a despender, quer para descansar um pouco, ao olhar para o irregular recorte do topo da falésia que já nos acompanha, apercebemo-nos de forma clara que estamos a progredir pelo material que caiu do topo.

Uma vez ultrapassada esta secção, surge uma outra com cerca de 300 metros, mais fácil em esforço, mas não menos difícil em progressão, pois requer atenção e passo curto, uma vez que se estende num piso entremarés, ora sob a forma de pétreas e ovaladas formas, ora em liso plano onde o verde que cobre a rocha é sinónimo de pouca aderência.

 

Foto: ©Filipe da Palma

 

Agora é já diferente o recorte da falésia, mais aprumado, sem blocos que se encontrem em suspensão sobre a cabeça. De facto, observando, são diferentes as matérias constituintes da orla costeira, uma imensa e maciça muralha de camadas sobrepostas de xisto é coroada por uma horizontal e vermelha camada de arenito, o grés.

Ao chegar ao término desta etapa, numa pequena reentrância da falésia, à direita, apercebemo-nos de uma separação entre esta e um bloco de si destacado em sua base pela largura de pouco mais de um pé e que vai alargando em oblíquo V.

Esse bloco, à esquerda, antes pertencente à grande massa terrestre, mais pequeno e tendo já perdido sua coroa de grés, apresenta-se de cor já quase totalmente negra.

É por essa abertura que devemos prosseguir, sem largura para transporte de mochila no dorso e ligeiramente inclinados para a rocha negra, arrastamo-nos uns poucos metros até atingirmos o hall de entrada da Ponta dos Ouriçais, magnifico portal/anfiteatro invertido para a Rocha Mãe, para a História planetária, para as visões sensoriais das telúricas forças que modelaram a superfície terrestre, juntando e separando continentes, criando e obliterando oceanos, fazendo da rocha matéria dúctil ao toque da pressão e temperatura.

Os passos deverão continuar a ser cuidadosos e previamente estudados.

Dependendo da individual sensibilidade, é produzido um magnético encantamento através da Visão.

Formas, cores e texturas, que possuem seu significado, para um leigo constituem-se em testemunho tangível da História do Planeta, pois, mesmo nada sabendo, perceciona-se através de cada poro um significado antigo e telúrico das forças constituintes do Planeta.

No topo, uma mais recente camada, correspondendo ao período do Triássico (200 a 250 milhões de anos), constituída pela deposição de sedimentos detríticos, cuja existência ao longo do tempo originou mais tarde uma camada de vermelho arenito – pela presença e contacto com óxido de ferro.
Sob esta, em discordância litológica e geométrica, rocha do período do Carbónico (300 a 320 milhões de anos), xisto e grauvaques em estratos verticais com dobras e falhas, pétreas presenças testemunhando deformações, metamorfismo, levantamentos e arrasamentos.

De referir que, entre as duas camadas, há uma lacuna de quase uma centena de milhões de anos (diferença entre os valores mencionados), cuja inexistência é igualmente factor que contribui para a sua constituição em referência, em elemento de estudo à escala global.

Uma vez neste espaço, quer pela cénica paisagem que nos domina, quer pelo desejo de procurar os melhores ângulos que se constituam em imagens testemunhais do Espanto, a tentação de permanecer mais que o tempo possível atrai e faz parar os ponteiros do relógio.

 

Foto: ©Filipe da Palma

 

O acesso, a quem desejar arriscar, deverá ser feito nos dias com maiores amplitudes de maré, pois, quanto mais baixa a maré, mais fácil: quer o caminho, quer a possibilidade de recuo para tomada de imagens, quer ainda o tempo disponível.

De salientar que mesmo existindo uma maré baixa de grande amplitude, tudo ainda depende do vento que soprar e da vaga que se ergue ampliando o domínio do oceano que, por estas paragens, não costuma ser meigo.

A toda esta conjugação de vários elementos, há que juntar o facto de tal deslocação, preferencialmente, terá de ocorrer ao final do dia, a partir do mês de Junho, pois é quando o arco de luz proporcionado pelo astro rei é maior, possibilitando a iluminação em pleno da formação geológica mais a Norte.

Assim, perante tantas e tamanhas dificuldades de acesso ao afloramento Norte, existe a possibilidade de o visualizar/fotografar a partir do topo da falésia (situada no extremo norte da baía, na Ponta dos Ouriçais), virado para sul; já o afloramento situado mais a Sul, mais próximo à Praia do Telheiro, igualmente de difícil e perigoso acesso, recomendo a tomada de imagens a partir da praia ou do topo da falésia que se ergue a sul desta.

Já por diversas ocasiões houve necessidade de retirar pessoas da área mencionada com o prestimoso auxílio de bombeiros, os quais deverão constar na lista telefónica e contactados assim que haja possibilidade ( a partir do momento em que se desce à praia, deixa de haver cobertura, pelo menos na minha rede).

Apesar de se encontrar no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, é urgente a sua classificação para o seu estudo, conservação e manutenção de sua integridade.

Apesar da dificuldade do caminho se constituir em obstáculo para quem deseje levar consigo um qualquer souvenir no regresso, mais não deveria ser permitido que lembranças visuais e sensoriais e que a tangibilidade das mesmas mais não se efetue senão pelo intermédio de imagens impressas.

Para além do lixo (essencialmente plásticos) que se acumula no fundo das furnas postas a descoberto na vazante, em vários pontos são visíveis cordas dependuradas pelas falésias, utilizadas por pescadores e mariscadores, presas no topo a ferros martelados falésia abaixo, abrindo novas fissuras e acelerando a erosão.

 

Fotos: ©Filipe da Palma

 

Mais informações: https://geossitios.progeo.pt/geosites/praia-do-telheiro

 

Autor: Filipe da Palma é fotógrafo, que tem documentado, através do seu trabalho, os aspetos mais originais da arquitetura vernacular do Algarve, bem como nventariado em imagens o património imaterial algarvio, é autor do livro «Platibandas do Algarve».

 

 

 



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