Campanha arqueológica subaquática desvenda segredos da baía de Lagos

Trabalhos juntaram investigadores de Portugal e da Noruega

As duas roldanas de bronze retiradas do fundo do mar – Foto: CNANS/DGPC

O cepo romano, em chumbo, com 45 quilos de peso, bem como as duas roldanas de bronze do século XVIII, já foram retirados do fundo do mar, na baía de Lagos, apesar do temporal das últimas semanas ter dificultado o trabalho dos arqueólogos subaquáticos.

As roldanas foram as primeiras a ser recolhidas, por uma equipa de mergulhadores do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), em conjunto com os parceiros do Museu Marítimo da Noruega.

Mas, no fundo do mar, embora em zona menos acessível ao mergulho recreativo, ainda ficaram três roldanas, que deverão ser provenientes de um «navio do século XVIII, em madeira», segundo o arqueólogo subaquático Gonçalo Lopes, que coordenou esta que foi a quarta e última campanha de mar realizada ao abrigo do projeto «Water World».

Determinar a cronologia exata, ou seja, a idade destas roldanas, não é tarefa fácil, já que se trata de «achados fortuitos», não tendo sido propriamente encontrado o «contexto arqueológico, que nos permitiria contar um pouco mais da história», disse Gonçalo Lopes em entrevista ao Sul Informação.

Além das roldanas, no fundo do mar há uma âncora, «que nos parece estar balizada no século XVIII».

E para que serviam as roldanas? «Estas peças eram utilizadas para as manobras dos navios, através do movimento das velas e dos cabos, através da desmultiplicação de forças», explica o arqueólogo.

Uma âncora romana, com o cepo (à direita). em ilustração 3D – Imagem: CNANS/DGPC

Mais difícil foi a recuperação do cepo romano, em chumbo, elemento metálico das âncoras romanas, que eram feitas em madeira, neste caso já há muito desaparecida devido à ação da água do mar [ver ilustração acima].

Só uma semana depois da retirada das roldanas, e aproveitando uma aberta entre as frequentes tempestades que, este Outono, têm assolado a costa algarvia, os arqueólogos subaquáticos conseguiram voltar a mergulhar e resgatar essa peça.

Tendo em conta que «este já é o quarto cepo descoberto naquela zona», Gonçalo Lopes afirma que, «com um grau de probabilidade elevado, aquela seria uma zona de fundeadouro, em época romana».

Todos estes achados arqueológicos foram agora levados, «de forma provisória», para o laboratório do CNANS, em Lisboa, onde serão alvo de conservação e restauro. Mas a ideia é que venham depois a integrar a coleção do Museu de Lagos.

Alguns destes achados tinham sido identificados por Christiane Kelkel, instrutora de mergulho alemã que desde 1994 vive entre a Alemanha e Lagos, e que, desde então, já realizou 3.500 mergulhos nestas águas.

Ao longo destes anos, a mergulhadora foi identificando artefactos no fundo do mar e reportando a sua localização às autoridades, para que pudessem depois ser verificados, registados e, sempre que possível, levantados do fundo do mar.

Nesta campanha, a equipa do CNANS conseguiu, finalmente, «dar resposta à achadora, que tinha feito nove ou dez declarações de achados fortuitos», explicou Gonçalo Lopes na sua entrevista ao Sul Informação.

«No caso das roldanas, são artefactos que não tinham sido declarados por este achador, mas sim descobertos até no âmbito de um outro trabalho arqueológico».

O arqueólogo sublinhou que a recolha dos objetos do fundo do mar era importante, sobretudo no caso do cepo romano, por haver «o risco de que pudessem desaparecer».

«A zona das roldanas não é propriamente um sítio de mergulho recorrente, do ponto de vista recreativo. Mas a zona do cepo romano é e, por isso, a probabilidade de alguém dar com o cepo e ele desaparecer era bastante elevada. Por acaso, tivemos sorte durante estes anos todos», admitiu o arqueólogo.

Além do temporal no mar, que na segunda semana de trabalhos dificultou os trabalhos sobretudo por afetar a visibilidade dentro de água, os arqueólogos depararam-se ainda com um outro obstáculo: a invasão de algas exóticas, que começam a cobrir o fundo do mar, como se pode ver em algumas das fotografias que acompanham este artigo.

 

 

Mas a campanha no âmbito do projeto «Water World», que voltou a trazer ao Algarve uma equipa norueguesa, não se destinou apenas a recolher artefactos arqueológicos do fundo da baía de Lagos.

Os investigadores do Museu Marítimo da Noruega trouxeram dois equipamentos: um é um sonar de varrimento lateral, que permite «ver aquilo que está acima da areia».

«Utilizámos esse equipamento em vários sítios de naufrágios que já conhecíamos. Os dois mais conhecidos são o Vilhelm Krag, ao largo da Praia da Luz, e um frente a Alvor», já no vizinho concelho de Portimão, mas ainda dentro da área sob investigação.

Ora dá-se a coincidência de o navio SS Vilhelm Krag ser norueguês. Foi afundado em 24 de Abril de 1917, pelo submarino alemão SM U-35 em plena I Guerra Mundial. Foi um dos quatro navios torpedeados nesse mesmo dia, na zona entre Lagos e Sagres, pelo submarino da Marinha Imperial Alemã comandado pelo famoso Lothar von Arnauld de la Perière.

«É fascinante ver como o navio vai sendo desenhado no ecrã à medida que passamos [o sonar], sabendo que tem mais de 100 anos de história. Uma coisa é ler sobre isso, mas ver os vestígios faz-nos ficar arrepiados», contou o arqueólogo norueguês Morten Reitan à Agência Lusa.

Neste caso, como nos restantes três afundamentos, o comandante do submarino alemão teve uma atitude de cavalheiro, permitindo que as tripulações deixassem os navios antes de os torpedear.

«Perdemos muitos navios na I Guerra Mundial, mas este foi um afundamento de cavalheiros. Não foi brutal, a tripulação conseguiu chegar a Lagos e todos sobreviveram», recordou Morten Reitan.

Os trabalhos de levantamento geofísico do fundo do mar recorreram ainda a um equipamento que foi testado pela primeira vez no ano passado, no âmbito deste mesmo projeto Water World, no estuário do Arade, um trabalho que o Sul Informação também acompanhou.

 

Uma das roldanas ainda no fundo do mar – Foto: CNANS/DGPC

 

E estes dias de trabalhos serviram para “descobrir” mais alguma coisa? Gonçalo Lopes, que conhece bem as águas algarvias já que é portimonense de nascimento, responde que «há sempre coisas novas que surgem, mas essencialmente foi bom para confirmar o que já era conhecido».

«Deu, por exemplo, para perceber outras coisas, nomeadamente as cronologias. Por exemplo, nós achávamos que as âncoras já conhecidas pertenceriam à Idade Moderna, aos séculos XVI, XVII e XVIII, mas há ali pelos menos uma que poderá ser um bocadinho mais antiga, talvez de finais da Idade Média». São dados novos, importantes para a carta arqueológica do concelho de Lagos, que está a ser trabalhada e que também abarca a parte marítima, além da terrestre.

Gonçalo Lopes, que coordenou a equipa de quatro pessoas do CNANS (três arqueólogos – além dele, ainda Cristóvão Fonseca e Pedro Caleja -, e um conservador-restaurador – José António Gonçalves), fez ainda questão de salientar a importância da cooperação com «os três colegas noruegueses»: Morten Reitan e Sarah Fawsitt, do Museu Marítimo da Noruega/Norsk Maritimt Museum, e Ivar Aarrestad, do Riksantikvaren.

«É importantíssima esta troca de experiências entre pessoas da mesma profissão, mas de países diferentes, com conhecimentos e realidades distintas», concluiu o arqueólogo português.

Esta foi a quarta e última campanha de mar no âmbito do projeto Water World – Capacitação e competências para a conservação e gestão do Património Cultural Subaquático, operacionalizado em Portugal pelo CNANS, organismo sob a alçada da quase extinta Direção-Geral do Património Cultural, e tendo como parceiro internacional o Museu Marítimo da Noruega.

Esta última ação de mar do Water World contou com o apoio logístico do Município de Lagos, num enquadramento mais alargado de parceiras que a autarquia pretende estabelecer com o CNANS/DGPC, que contou ainda com os investigadores Alexandre Monteiro e Paulo Costa, do Instituto de Arqueologia e Paleociências (IAP), com quem o município tem um projeto em curso de valorização do património cultural subaquático.

O financiamento provém do Mecanismo Financeiro EEA Grants. O projeto, que incluiu ações de formação, trabalhos de arqueologia, de conservação e ainda divulgação do Património Arqueológico Náutico e Subaquático, está orçado em 995 mil euros, a ser usados em quatro anos, até 2024.

 

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub