Um ano depois, quem combate a Covid no Algarve não pensa desistir

Faz hoje um ano que foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Algarve

Inês Simões, Médica do CHUA – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

Horas e horas de trabalho, turnos de vários dias, muita “vida” perdida ou posta em pausa, mas, também, «aquela sensação de dever cumprido e orgulho por tudo o que foi feito». As marcas da fadiga acumulada ainda se notam na cara de Inês Simões, mas, depois de um ano a combater esta doença, a mensagem da jovem médica que esteve na linha da frente do combate à Covid-19 é clara: «Estamos para continuar. Não é altura de baixar a guarda».

Também a voz de Rita Leonardo, enfermeira que trabalha na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Faro, denota cansaço. E o cansaço não é apenas – nem sobretudo – físico. É um peso psicológico, de quem lidou de perto com a morte e o sofrimento causados por esta doença. Mas nem por isso há toalhas deitadas ao chão.

Há um ano, a 8 de Março de 2020, a meio da tarde, foi conhecido o primeiro caso de Covid-19 no Algarve, o de uma adolescente de 16 anos, de Portimão.

Desde então, a vida de todos os profissionais de saúde, principalmente dos que estiveram afetos às áreas Covid das duas unidades do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, mudou drasticamente.

«Foi um ano difícil, muito complicado, mas que, se olharmos para trás, passou num instante. Porque foi tudo muito intenso. Mas também foi um ano de grande aprendizagem. Ao início, era tudo novo e nós tivemos de ir aprendendo com os países que acabavam por estar mais à frente, com os erros deles, ir aprendendo com tudo», disse ao Sul Informação Inês Simões, médica que coordenou o hospital de campanha do Portimão Arena.

«Também foi um período em que nos tivemos de unir muito e, às vezes, no dia a dia, as pessoas esquecem-se de trabalhar em equipa. E, nesta situação, se não fosse as pessoas terem-se unido e trabalhado em equipa, uma verdadeira equipa, isto podia ter corrido muito mal. Acho que estas são coisas que agora temos de aproveitar e levar daqui para a frente», acrescentou.

 

Foto: Sul Informação

A enfermeira Rita Leonardo teve um ano especialmente duro, naquela que pode ser considerada a linha avançada do combate à Covid-19, a unidade destinada aos doentes em estado mais preocupante.

«Esta última vaga trouxe um cansaço físico muito superior. Fomos postos muito mais à prova. E o cansaço psicológico também é muito grande. Porque se, por um lado, já era um arrastar de muito tempo nestas condições, por outro eram muitas mais as pessoas que víamos chegar e ao lado das quais estivemos todos os dias, a vê-las a piorar e a piorar, dar-lhes tudo o que podemos e não conseguirmos resgatá-las nem salvá-las», contou ao Sul Informação.

A tudo isto acresce «o peso de não poderem entrar familiares, o que se torna muito penoso para nós. Porque sentimos que eles precisam de ver a família, vemos pessoas a despedir-se da vida sem poder ter ao seu lado os seus familiares».

«Nós tentávamos substituir como podíamos, claro, para as pessoas não morrerem desacompanhadas, dar-lhes os melhores momentos possíveis, mas não é a mesma coisa. São vários pesos que, a nível emocional, foram e são difíceis de gerir», disse.

Também há a parte do cansaço físico, que foi passar «a trabalhar 12 ou mais horas por dia, muitos dias por semana e com uma exigência enorme».

«São dias muitos extenuantes. É difícil transmitir a dureza que é trabalhar todo equipado. Porque nós, quando entramos para dentro da UCI Covid, os nossos doentes estão sempre acompanhados por enfermeiros e outros profissionais de saúde. E isso significa que os profissionais têm de estar totalmente equipados, com fato, luvas, máscara e viseira e não podem ausentar-se nem por um bocadinho para ir beber água ou ir à casa de banho», descreveu.

«Os fatos, obviamente, são desconfortáveis. Todo o equipamento deixa marcas que são visíveis. Fisicamente, também é um acrescento de dificuldade».

 

Cuidados Intensivos Covid no CHUA – Imagem de Arquivo – Foto: Sul Informação

 

Na enfermaria Covid-19, as horas eram ainda mais longas, pelo menos para Inês Simões.

«O meu caso é particular, porque fui para o hospital de campanha do Portimão Arena e, ao início, tínhamos pouca gente. Cheguei a fazer 54 horas de seguida. Foi o meu máximo. De resto, as pessoas estavam a fazer à volta de 24 horas de seguida, numa média de 80 a 96 horas por semana», revelou a médica.

«Em termos pessoais e familiares, todos nós tivemos de abdicar de alguma coisa. Parece que a nossa vida teve de parar, de alguma maneira, e estamos todos mortinhos por recomeçar onde parámos», explicou Inês Simões.

«Inicialmente, foi logo aquela insegurança de não conhecermos muito bem o vírus nem o que era a Covid. Tínhamos aquela angústia de ir trabalhar, para depois voltarmos para junto das nossas famílias. Houve colegas que se afastaram das suas famílias, alguns mandaram os filhos para longe, para se sentirem seguros», recordou, por seu lado, Rita Leonardo.

«Apesar desta última vaga ter sido muito mais penosa, para nós, com uma taxa de ocupação e de mortalidade muito superiores, essa parte de insegurança e de voltarmos para casa já estava um pouco mais sanada e já nos permitiu, de alguma forma, estarmos junto das famílias e não ter mais esse peso», acrescentou a enfermeira do CHUA.

Um peso do qual Rita não se livra é o dos momentos que viveu a tratar dos doentes de Covid que necessitaram de cuidados intensivos.

«Nós recebemos doentes ainda perfeitamente conscientes e orientados e procuramos que eles não sejam entubados. Temos a noção que aqueles que são ligados ao ventilador e entubados são muito difíceis de recuperar, a taxa de mortalidade é elevada», descreveu.

«Um momento que me custou bastante foi uma vez que estávamos a preparar um senhor para o entubar – e, nesta fase, os doentes já têm a noção da gravidade que é quando isso acontece. Estava à cabeceira a dar-lhe a mão, a conversar com ele e a explicar o que ia acontecer e foi a expressão no olhar dele que me marcou. Vim para casa com ela e andei algumas semanas com ela, porque fiquei com a sensação que ele percebeu a gravidade. Mas as palavras que ele me dizia – “vamos conseguir, não vamos, senhora enfermeira?” – e nós a pensarmos na dureza que ia ser.  E a expressão facial dele foi algo que me acompanhou», contou.

«Estamos todos cansados desta situação, muito cansados», desabafou Rita Leonardo.

O ano vivido por estas duas profissionais de saúde e por muitos outros como elas, foi, já se percebeu, extremamente difícil. Mas «ninguém se arrepende».

«Valeu a pena o esforço. Por cada vida que é salva e por cada pessoa que recuperamos, vale a pena. Mesmo os que não recuperamos, fazemos muitas coisas por eles que vale a pena. O cuidar de um doente, mesmo quando ele não sobrevive, há muitas coisas em que nós os ajudamos. E se nós conseguirmos ajudar, recompensa. Tentamos, todos os dias, sair de lá a pensar que fizemos tudo o que pudemos por aquela pessoa e que auxiliámos na medida do possível», acredita Rita Leonardo.

«Acho que temos todos aquela sensação de dever cumprido e orgulho por tudo o que foi feito», concluiu Inês Simões.

 

Vista geral de uma parte do hospital de campanha do CHUA – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Também orgulhosa pelo trabalho dos profissionais do CHUA afirma-se Ana Castro, presidente do Conselho de Administração dos hospitais algarvios.

«Se não fossem estas pessoas, as coisas não teriam corrido da mesma forma. Esta equipa é, realmente, fantástica», afirmou.

E as coisas correram bem, na visão de Ana Castro, apesar dos momentos difíceis.

«Foi um ano duro e de muitos desafios. Tivemos de estar preparados para o que não sabíamos. Ou seja, tivemos sempre de nos preparar para o pior, esperando o melhor», disse ao Sul Informação a presidente do CHUA.

Para esta responsável, «o momento mais marcante foi o da decisão da abertura do hospital de campanha no Portimão Arena. Foi aquele marco em que achámos que isto podia, realmente, vir a complicar-se».

«Mas, apesar de tudo – e apesar das incertezas dos que para lá foram, porque estávamos a trabalhar num sítio completamente diferente, num pavilhão desportivo – o motivar uma equipa, fazer dela uma equipa coesa, fazer com que as pessoas confiassem que íamos dar o nosso melhor, que quem por ali passasse ia ter os melhores cuidados possíveis e que íamos conseguir fazer a diferença na vida destes doentes, acho que foi conseguido», disse.

«Mas, quando recebemos os primeiros doentes no Arena, foi o momento de maior stress. Foi marcante, pela incerteza», acrescentou.

Ana Castro salientou, ainda, que o Algarve tentou andar à frente dos acontecimentos e e que foi «bem sucedido».

«Procurámos antecipar cenários, situações, e isso permitiu-nos dar uma resposta a nível nacional: não só aos nossos, mas a outros que precisaram de nós», acredita.

 

Ana Castro – Foto: Nuno Costa | Sul Informação

 

Esta abertura para aceitar doentes de outras regiões foi uma realidade no hospital de campanha para internamentos Covid do Portimão Arena e continua a sê-lo nesta nova fase, em que o CHUA ativou uma valência destinada aos que tiveram sequelas da doença no Centro de Medicina Física e Reabilitação do Sul, em São Brás de Alportel.

Foi, de resto, nesta unidade de saúde que o Sul Informação falou com duas pessoas que estiveram internadas nos cuidados intensivos do CHUA, devido à Covid-19.

Apesar de já andar e se manter por longos períodos em pé, Luís Palaré teve um período, logo após ter vencido a doença, em que dependia de outros para realizar tarefas básicas do dia a dia.

«Quando vim para aqui, quando ia à casa de banho, era acompanhado, para tomar banho também. Só ao fim de uma semana é que consegui ter o mínimo de autonomia, para, por exemplo, tomar banho. Mas, mesmo assim, era sentado, porque não tinha força nem equilíbrio para o fazer de pé», revelou ao nosso jornal.

Tudo começou com «um pequeno sintoma de tosse, de irritação na garganta».

«Fui fazer o teste numa clínica privada no dia 4 de Janeiro e deu positivo. Quatro dias antes tinha feito outro teste, que veio negativo. Na primeira semana de Janeiro, estive em casa, como aconselham, a tomar paracetamol, a hidratar e a controlar a febre. Ao fim de cinco dias, tive diarreia, o que me fez deslocar ao hospital. Pensava que ia lá só para tratar desse sintoma, mas não. Os médicos acharam que eu devia ficar internado na enfermaria», descreveu.

Passados mais alguns dias, Luís foi encaminhado para os cuidados intensivos, onde esteve «cerca de 15 dias». No final, venceu a doença, mas perdeu «nove quilos» no processo e sofreu sequelas físicas e psicológicas.

 

Luís Palaré – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Quase um mês depois de ter tido alta, este cidadão farense ainda sente «muito cansaço. O mínimo de esforço requer uma grande capacidade cardio-respiratória que, neste momento, eu ainda não possuo».

«Ainda hoje estou a sofrer com a doença. Não tenho a mobilidade, nem a capacidade respiratória, nem o equilíbrio que tinha antes. E, em termos psicológicos, também afeta, na medida que temos dificuldades de lidar com certas situações que antes nos eram fáceis», disse Luís Palaré.

Numa fase menos avançada do processo de recuperação, está Ana Paula Cortes.

«Fiquei doente a meio do mês de Janeiro. Já tinha passado o Natal e o Ano Novo e eu estava bem. Só me lembro de estar em casa e ter muita diarreia e não ter forças nas pernas. Vivo com o meu cunhado e com a minha filha e ele levou-me para o hospital de Faro. Não sei quanto tempo fiquei lá, não me consigo recordar», contou ao nosso jornal.

«Sei que estive nos cuidados intensivos, porque me disseram. Mas não sei se estive com o tubo. Disseram-me que eu estive muito mal, isso sei. Mas, graças a Deus, melhorei», acrescentou Ana Paula Cortes.

Apesar de ainda estarem a sofrer as consequências da doença, este já é um caminho para o futuro, tanto para Luís, como para Ana Paula. Afinal, a doença foi vencida e a ajuda para voltar a ter uma vida normal está a ser prestada.

«Neste momento, temos alguma esperança de que não volte a ser necessário aquilo que foi preciso neste primeiro ano. Mas a realidade é que, com a experiência que já temos, dificilmente teremos surpresas», acredita Ana Castro.

«Vamos manter a mesma preparação, a antecipação, ao mesmo tempo que retomamos aquilo que tínhamos pensado para o Centro Hospitalar. Iremos voltar ao trabalho normal, porque temos de melhorar a saúde na região e esse é o nosso empenho: recuperar tudo o que ficou um pouco parado com esta pandemia», concluiu a presidente do Conselho de Administração do CHUA.

 

 

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