Pomar de sequeiro tradicional: fundamental ou apenas very typical?

Durante décadas, milhões de euros, provenientes de fundos comunitários, foram aplicados e contribuíram para financiar monoculturas intensivas no Algarve, quer na Agricultura, quer no Turismo

Algarve, por Artur Pastor

Do global. Vivemos tempos cinzentos. O presente afigura-se sombrio e o futuro incerto. Um bichinho microscópico propagou-se à velocidade da luz e, de repente, eis que temos o mundo virado do avesso, relembrando-nos que vivemos numa “Sociedade do Risco”(*Ulrich Beck) em que tudo e todos estão ligados num sistema-mundo, onde o Local afeta, indelevelmente, o Global e vice-versa.

Hoje, os pilares da nossa sociedade – social, cultural, político, ambiental e económico – abanam. É nestes últimos dois que me irei deter.

Do ativismo local. Escrevo, reflito e ajo em conformidade com os valores ético-ambientais que defendo, exercendo a minha cidadania ativa em grupos informais e associações cívicas e ambientalistas. Faço-o não apenas enquanto algarvia que ama e defende a sua terra, mas, também, enquanto cidadã do mundo, que o deseja sustentável para a sua e demais gerações vindouras. É, por tudo isto e muito mais, que abraço a(s) causa(s) do Glocal-Faro.

Do pomar de sequeiro tradicional. Feito este breve preâmbulo, e focando-me na economia do Algarve, estava há dias a ler “O Algarve Económico Durante o Século XVI”, de Joaquim Romero Magalhães, edições Sul, Sol e Sal, quando me detenho numa passagem em que o autor discorre sobre o pomar misto de sequeiro, corria o ano da graça de 1522.

Esta mui antiga prática consistia na produção de várias espécies de árvores de fruto em consociação: “[…] o barrocal e a planície da ourela do mar cobrem-se de uma «sorte de pomar de sequeiro» de oliveiras, figueiras, amendoeiras, alfarrobeiras, que se detém ao encontrar os primeiros xistos da serra […].”

Além de contribuírem para a alimentação das pessoas e animais nas explorações agrícolas da época, estas culturas forneciam produtos para venda, sendo uma importante fonte de rendimento dos agricultores. As referidas espécies, todas elas mediterrânicas, estavam presentes em cerca de 50% do território.

Esta área é também aquela onde se desenvolveram, desde meados do século XX, culturas de regadio, para além de ser também a sub-região onde se localizam os principais centros urbanos e proliferaram, desregrada e selvaticamente, hotéis e aldeamentos turísticos, em particular no Litoral.

Esta competição pelo espaço culminou com a regressão abrupta da área antes ocupada pelo pomar de sequeiro tradicional.

Durante décadas, milhões de euros, provenientes de fundos comunitários, foram aplicados e contribuíram para financiar monoculturas intensivas no Algarve, quer na Agricultura, quer no Turismo. A primeira, assente em citrinos e, mais recentemente, em frutos tropicais insustentáveis, e o segundo, no já há muito estafado binómio “sol & praia”.

Colhemos agora, em pleno pico de uma pandemia global, os amargos frutos desta estratégia repetida ad nauseam, que foi a de colocarmos todos os ovos no mesmo cesto.

Diversificação e planeamento a longo prazo? Zero. União, comunicação, concertação entre produtores, criação de redes locais, fundamentais e estruturantes para a região? Pouco ou nada. Ao que parece, vai finalmente acontecer algo do género, no ano da (des)graça de 2021. Pergunto-me: tivemos mesmo de esperar por uma pandemia e sucessivos confinamentos, que provocaram uma procura crescente por produtos locais frescos, para acelerar este processo?

São estes os frutos da ambição desmesurada de um punhado de senhores latifundiários – e de outros tantos hoteleiros e “patos bravos” – sem mundividência mas com muita “chico-espertice”, bem como das vistas curtas e medidas imediatistas e populares de alguns caciques do poder local, que têm governado mais a pensar nos votos das eleições que se seguem, do que no bem-estar da população e na sustentabilidade da região a longo prazo e, claro, com o devido beneplácito e conivência de CCDRs, inicialmente, e até hoje de APAs e DRAPs.

Do abacatal. Posto isto, e voltando ao presente, importa relembrar que estamos ainda no rescaldo de uma participação pública, da qual fizeram parte várias associações ambientalistas que contestaram uma exploração intensiva de abacates, de 128 hectares, na zona de Barão de S. João, Lagos, contestação essa que o Glocal também subscreveu. A plantação em causa, foi aprovada e é defendida, sem surpresa, pela DRAP Algarve.

Pois pasmem-se, li esta semana, numa rede social, uma publicação do diretor-regional de Agricultura e Pescas do Algarve, em que este enaltecia as características do pomar misto de sequeiro, discorrendo sobre a sua importância na paisagem e economia algarvias, anunciando para breve um projeto nesta esteira. Sim, falamos do mesmo senhor que defende os abacatais intensivos.

É, pois, num contexto de seca severa, de paisagens abastardadas, monoculturais e intensivas, de opções político-económicas contraditórias e em contra-ciclo com a Agenda 2030 e desrespeitosas para com a sustentabilidade ambiental e geracional futuras, que nos propõem agora o regresso de um dos ícones da paisagem cultural algarvia.

Quanto a nós, muitíssimo felizes por ouvir esta música, pois achamos fundamental a preservação do património da paisagem, dos saberes e da cultura regional, preferencialmente se tais desígnios tiverem viabilidade e impacto comercial e financeiro.

Por isso, aguardamos com esperança que não se trate de mais um investimento de cosmética e turismo pitoresco, que não criará raízes profundas nem dará frutos consistentes, só mesmo “para inglês ver”, varejar ali umas amendoeiras ou oliveiras e fazer umas sacadas de alfarroba com os marafados castiços, para desenjoar das férias de “sol e praia”. That would be so very typical.

 

Autora: Raquel Ponte é socióloga e membro do Glocal-Faro
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