Cidade romana de Balsa começa a “falar” com os arqueólogos

No primeiro ano deste projeto que irá continuar até 2021 já houve algumas descobertas que entusiasmaram os arqueólogos

As marcas de destruição deixadas pelas máquinas que riparam os campos da Quinta da Torre d’Aires, na Luz de Tavira, são bem visíveis. Mas as estruturas em pedra, bem preservadas e, em alguns casos, de nobre construção, que foram encontradas a pouco menos de um metro de profundidade, numa sondagem aberta próximo da Ria Formosa, são motivo mais que suficiente para fazer sorrir os arqueólogos que estão desde 19 de Agosto à procura do que ainda resta da «mítica» cidade romana de Balsa.

O sol não tinha nascido há muito tempo e ainda ia baixo quando o repórter do Sul Informação se encontrou com João Pedro Bernardes, ontem, terça-feira. Sorridente, o arqueólogo, investigador e professor da Universidade do Algarve (UAlg) que está a coordenar o projeto “Balsa – em busca das origens do Algarve” – promovido em conjunto pela universidade, pela Direção Regional de Cultura do Algarve, pela Câmara de Tavira e pelo Centro Ciência Viva de Tavira – recebeu o nosso jornal e assumiu o papel de anfitrião e guia.

«A equipa já está um pouco desfalcada, esta semana, alguns elementos já foram embora», justifica, no caminho do portão da Quinta da Torre d’Aires, que está quase sempre fechado, até ao local onde estão a decorrer as escavações.

Numa das sondagens que foi aberta na terra, atarefam-se já cinco pessoas: Vítor Silva Dias, que veio de Coimbra e foi contratado para se aliar a este projeto, e Celso Candeias, da Câmara de Tavira, ambos arqueólogos, bem como três jovens estudantes universitários, que se voluntariaram para ajudar nos trabalhos.

 

João Pedro Bernardes e Celso Candeias (em cima) ouvem as explicações de Vítor Dias /(em baixo) sobre o que já foi encontrado nesta sondagem

 

Os primeiros minutos são aproveitados por João Pedro Bernardes, que nem sempre pode estar em Balsa – «também ando na Boca do Rio» -, para saber dos últimos desenvolvimentos das escavações. E é com entusiasmo que Vítor Dias mostra as estruturas do período do Alto Império que estão cada vez mais à mostra, nomeadamente um cunhal bem conservado e feito de blocos de pedra grandes e trabalhados, que indica a existência de um cruzamento de estradas naquele local.

«O que nós temos aqui são dois níveis, claramente: um já de abandono, que reutiliza materiais de fases anteriores e que é marcado por esta canalização. Os muros mais acima são, igualmente, desse período. Se reparar há pedras que pertenceram a grandes edifícios que estão fora do sítio. Foram reutilizadas», explica João Pedro Bernardes, apontando para os vestígios que se encontram mais próximos da superfície.

Tudo isto, diz, «será, seguramente nos séculos IV ou V, nos finais do período romano, início do pós-romano».

«A parte mais interessante, que corresponde ao período áureo da cidade, que foi até ao século III, principalmente nos séculos I e II, são as estruturas que estão por baixo. Temos a esquina de um grande edifício e havia aqui uma rua. Como se percebe pelo cunhal, não seria uma casita, eram grandes edifícios. Seriam edifícios de habitação, ainda dentro da malha urbana», disse o investigador da UAlg.

«A geofísica diz-nos que esta rua cruza com outra que vai no sentido Sul/Norte. Do lado oposto, deve aparecer algo equivalente», acrescentou. Aliás, começa a ser percetível, no limite norte da área de escavação, a existência de outra esquina de um edifício feito com grande blocos de pedra e aquilo que parece ser outra estrada, ainda que não perfeitamente alinhada com a que já se vislumbra, no lado Sul.

 

 

Este achado é importante porquê? «Por um lado, dá-nos a dimensão das ruas, por outro, a orientação da malha urbana», enquadra João Pedro Bernardes.

«Nos finais do século II, início do III, a cidade começa a entrar em declínio e há partes que são abandonadas. É essa a ideia que dá. Mais tarde, a cidade é reocupada, sobre as ruínas do que existia anteriormente», disse, ao Sul Informação, o arqueólogo. A ocupação dura, apenas, até ao século VII, altura em que a cidade «desaparece».

Os cientistas acreditam que a praça central de Balsa seria no topo da colina, onde existem os edifícios da Quinta da Torre d’Aires. «A ideia que nos dá é que esta seria uma cidade linear, paralela aqui à ria, o que é lógico, que não se estendia muito para Norte. Até porque existe a necrópole Norte, escavada por Estácio da Veiga, a cerca de 300 metros a Noroeste das casas».

Por outro lado, para Nascente, há a ribeira das Antas, onde também há vestígios de outra necrópole, ou cemitério.

«As próprias necrópoles permitem-nos definir os limites da cidade quer para poente, quer para Norte. Em 2017 já escavámos algumas sepulturas a poente das casas. Provavelmente, seria a necrópole Norte, que foi escavada por Estácio da Veiga, que se estendia até à Ria», segundo o investigador algarvio.

A Nascente, perto da ribeira das Antas, uma estrutura semelhante «foi escavada, ainda no século XIX, por Teixeira de Aragão. Mais tarde, Abel Viana também escavou ali, já no século XX. É uma necrópole que não é tão importante como a do Norte e que tem sepulturas mais tardias, ao contrário da do Norte, que tem sepulturas dos séculos I e II».

 

Estudantes que estão a participar nas escavações

 

Estas cerca de três semanas de trabalho de campo já permitiram chegar a algumas conclusões.

«A primeira conclusão a que chegámos é que esta é uma cidade que não será tão grande quanto se pensava. Tem havido uma grande confusão entre o que era a área urbana e as villae que a circundam. Ou seja, tem sido tomadas como área urbana, quando não o são», assegura João Pedro Bernardes.

«Também podemos tirar conclusões no que toca aos níveis de destruição de Balsa. Como já suspeitávamos, na parte Norte, que é aquela que não tem tanta potência estratigráfica [espessura], o que havia foi quase tudo destruído. Mas há uma faixa paralela à ria que ainda se mantém relativamente bem preservada, como podemos ver nesta sondagem», acrescenta.

Celso Candeias, arqueólogo da Câmara de Tavira, também salienta as duas realidades encontradas no terreno. «Um dos objetivos principais deste ano foi mesmo perceber o grau de destruição real. Porque sempre se disse que Balsa já tinha sido toda destruída», disse.

«Fizemos uma sondagem mais a Norte, na ideia de apanhar uma dupla abside que foi detetada pela geofísica. Mas percebemos que estava muito destruído. O ripper foi até ao substrato geológico e todos os vestígios arqueológicos que estavam por cima foram à vida. Ficou apenas uma fiada de pedras. Isso indica-nos que, nesta parte Norte, não valerá a pena investir muito, pois deverá restar pouca coisa», acredita.

«Na outra sondagem, o que estamos a tentar encontrar, no fundo, são estas quatro estradas que aqui surgem na geofísica», acrescenta.

 

Celso Candeias

 

Já Vítor Dias, que participou nos trabalhos que foram realizados em 2017, encomendados pelo proprietário da Quinta da Torre d’Aires, não esconde as suas expetativas, em relação ao futuro.

«Eu sou um pouco suspeito para falar, mas, para nós, só o facto de haver estruturas já é entusiasmante. Quando vimos a ação do ripper e a afetação mecânica, ficamos desiludidos, como é óbvio. Mas ainda há cá coisas preservadas, o que é sempre bom», afirma o arqueólogo.

Apesar de estarem a tentar descobrir os segredos do passado, os arqueólogos envolvidos neste projeto da UAlg, da DRCAlg, da Câmara de Tavira e do CCV de Tavira já pensam no futuro.

«O grande objetivo deste projeto de três anos é descobrir a real extensão de Balsa. E nós queremos que, pelo menos a parte da Quinta da Torre de Aires e os limites Norte e Poente, fiquem definidos. Mas, no futuro, seria interessante conseguir um acordo com os proprietários vizinhos, de modo a ver o que há a Nascente e até onde a cidade se pode estender».

Nos próximos anos, os responsáveis pelo projeto querem «alargar as prospeções geofísicas, porque isso nos permite radiografar o subsolo» e, a partir daí e de acordo com os resultados, «perceber um pouco mais de como seria a malha urbana e de quais é que seriam os limites da cidade».

 

 

Também a eventual musealização do que for descoberto, que é outro dos objetivos do projeto, está já a ser pensada. Mas, nesta campanha, não foram, em princípio, achados artefactos muito valiosos.

«Ainda teremos de limpar o que encontrámos e de ver. Mas, pelo que fomos vendo ao retirar da terra, não teremos propriamente coisas de elevado valor museológico. Terão de ser lavados e colados os que se prestarem a isso, mas penso que não haverá muitas coisas para expor. Apareceram uma ou duas moedas, mas pequenas, não daquelas mais antigas e ainda terão de ir para o laboratório, para ver se é possível ler», revela Celso Candeias.

De resto, há alguns achados interessantes, nomeadamente um fragmento de cerâmica terra sigillata, onde ainda é perfeitamente percetível o selo do artesão que criou a peça, o que poderá ajudar a datar o vestígio encontrado.

 

Ana Paula Martins, presidente da Câmara de Tavira, Adriana Nogueira, diretora regional de Cultura, João Pedro Bernardes e o Paulo Águas, reitor da Ualg

 

Ontem, terça-feira, também foi dia para receber os responsáveis pelas quatro entidades que estão juntas neste projeto arqueológico, bem como alguns convidados. No final, não restaram dúvidas que os esforços para perceber o que foi, realmente, «a mítica Balsa», como a apelidou Ana Paula Martins, presidente interina da Câmara de Tavira, vão continuar.

 

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação

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