Do texto para a vida, da vida para o texto, literariamente

Mais um livro de autora portuguesa lido e analisado na rubrica “Pelo Mundos dos Livros”

Leme, de Madalena Sá Fernandes, é um livro aparentemente simples. A família — o núcleo desta história — não é um reduto de simplicidade, mas sim um espaço complexo para a construção de individualidades, no qual as pessoas, forçadas a conviver, aprendem a coexistir.

Escrito na primeira pessoa, adota um tom confessional e utiliza uma linguagem desprovida de artifícios, direta, promovendo a clareza, a transparência, para que as experiências vividas se destaquem, em vez da escrita. Nota-se crueza estilística, permeada por reflexões que buscam apaziguamento. Pela sua forma, estrutura e foco, Leme aproxima-se mais do género literário da novela do que do romance.

Nesta autoficção, Madalena Sá Fernandes narra a história claustrofóbica entre uma criança e, depois, uma jovem e o seu padrasto, Paulo, personagem de contradições dilacerantes: homem de rigidez mental e comportamental, violento até, mas também capaz de gestos bondosos. Um vilão que não é só mau, «um filho de puta que lembramos em lágrimas». O ódio pode existir nesta história, mas também a tolerância e a cumplicidade.

Concentrando-se num tema específico, Leme é registo de memórias e exposição visceral da relação entre duas pessoas. Paulo é omnipresente. Ocupa a mente, o espaço e o tempo da protagonista, da meninice à adolescência, até ao respirar de jovem mulher. Nem mesmo a sua morte traz verdadeiro apaziguamento, pois no mundo virtual que a protagonista também habita, as pessoas desaparecidas transmutam-se em fantasmas persistentes.

A história, essencialmente familiar, apresenta figuras parentais distantes. A presença narrativa do pai é vaga, tal como a da mãe. Os pais protegem, mas os filhos não compreendem. A protagonista, mesmo de forma inconsciente, questiona e critica a permanência da mãe numa relação abusiva, controlada, a sua incapacidade de romper com o ambiente tóxico.

Porquê aceitar uma figura intrusiva que, quiçá, por falta de legitimidade, compensa através de uma presença opressiva? Porquanto os momentos bons também existem. Paulo nunca é totalmente demonizado. É criativo, artista, preocupa-se. Enquanto personagem ficcional tem espessura. Se fosse um vilão pleno, estaríamos perante um conto infantil e, na realidade, ninguém é verdadeiramente mau, nem bom.

Nesta história há um desenlace, um fim. O diagnóstico de bipolaridade de Paulo explica, em parte, os seus comportamentos, mas não torna menos real a sua capacidade de obliterar todos os outros ao seu redor. A cicatriz permanece.

Entre a realidade autobiográfica e a ficção — dado o caráter ambíguo do pacto ficcional —, Madalena Sá Fernandes compõe uma escrita de forte carga imagética, delineando sofrimentos e experiências, «uma desistência da ficção», conforme as suas próprias palavras.

Esta foi uma história que se impôs à autora, exigindo ser contada numa forma quase terapêutica, do texto para a vida, consolidando emoções e sentimentos da vida vivida no território literário. Um ato corajoso, porém, ainda assim, intimista, sem exuberância, sem recursos estilísticos que desviem a atenção do próprio devir da narrativa.

 

Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária

 

 

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub