Arqueólogos de Portugal e Noruega testaram tecnologia inovadora no estuário do Arade

Património subaquático motiva projeto que junta especialistas e entidades dos dois países. E nem a chuva os desmotivou

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

«A chuva estava a fazer falta, mas a nós não nos dá jeito nenhum», desabafou Cristóvão Fonseca, arqueólogo do Centro de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), num dos dias em que, em conjunto com os colegas do Museu Marítimo da Noruega, a equipa conseguiu, apesar de tudo, mergulhar nas águas do estuário do rio Arade, entre Portimão e Lagoa.

«Estas coisas são preparadas com muita antecedência, por isso, mesmo sabendo que esta semana iria chover, não dava para alterar a programação», acrescentou.
Frode Kvalø, investigador e chefe do departamento de arqueologia do Museu Marítimo da Noruega (Norsk Maritimt Museum), queixou-se do mesmo: «o problema, nestes dias de trabalho, tem sido a falta de visibilidade da água do rio, por causa da chuva, e também o muito vento».

Não é que a chuva, em si, tenha sido tão forte que impeça os trabalhos. Mas, ao chover a montante, na serra, as águas do rio estão turvas e carregadas de sedimentos. E os mergulhadores não veem, literalmente, um palmo à frente do seu nariz…ou das suas máscaras.

E porque não fazer este trabalho no Verão, quando é (ainda) mais raro chover no Algarve? «O estuário do Arade, apesar de todos os avisos e precauções, é uma zona muito movimentada durante o Verão, há sempre embarcações de todos os tipos a circular, o que causa ruído, perturbação e às vezes até é perigoso para nós», explica Cristóvão Fonseca. Depois de meses de seca, quem é que iria imaginar que choveria precisamente nas duas semanas reservadas a esta campanha no rio?

Tudo isso atrasou o trabalho da equipa mista de arqueólogos e outros especialistas portugueses e noruegueses que, durante cerca de duas semanas, estiveram no Arade para esta campanha que se destina, sobretudo, a aprender a utilizar um inovador método de posicionamento subaquático, que irá ser uma grande ajuda para o trabalho dos investigadores.

 

Frode Kvalø, junto a uma das bóias do sistema testado – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Sob as atenções da equipa luso-norueguesa, que inclui seis elementos do CNANS (um dos quais o algarvio Gonçalo Lopes), três do Museu Marítimo da Noruega e outros tantos do Museu Marítimo de Bergen (também naquele país), tem estado um provável naufrágio de um navio do século XIX, um sítio arqueológico já referenciado anteriormente, ao qual foi dado o nome de Arade 23.

Esta é a primeira campanha de mar no âmbito do projeto Water World, operacionalizado em Portugal pelo CNANS, organismo sob a alçada da Direção-Geral do Património Cultural, e tendo como parceiro internacional o Museu Marítimo da Noruega.

Pedro Barros, outro dos arqueólogos do CNANS, explica que o projeto se destina a «colmatar as debilidades» desse organismo do Estado, de forma a capacitá-lo para «dar resposta às necessidades mais prementes do ponto de vista da conservação e da arqueologia».

O financiamento provém do Mecanismo Financeiro EEA Grants, estando a totalidade do projeto, que inclui ações de formação (como esta que decorreu no estuário do Arade), trabalhos de arqueologia, de conservação e ainda divulgação do Património Arqueológico Náutico e Subaquático, orçado em 995 mil euros, a ser usados em quatro anos, até 2024.

Antes de partir de novo para o meio do rio, numa embarcação onde vão também jornalistas e um autarca, o vereador Mário Guerreiro, da Câmara de Lagoa, o arqueólogo Cristóvão Fonseca explica que o sítio Arade 23 foi escolhido por vários motivos: «primeiro, porque não temos ainda muita informação sobre este sítio e gostávamos de investigá-lo de forma mais profunda». Depois porque esse naufrágio está «relativamente mais preservado, numa zona portuária abrigada, com boas condições para o trabalho».

Pedro Barros acrescenta que, «no âmbito do projeto, está previsto fazer-se um número determinado de campanhas subaquáticas. O Arade, à partida, garantia melhores condições que o mar exposto a sul ou a costa oeste».

No estuário, entre os concelhos de Portimão e Lagoa, há ainda «todo o historial, todas as condições logísticas, e o apoio da comunidade local», seja das Câmaras de Portimão (e do seu Museu) e Lagoa, seja do clube de mergulho Portisub, cujas instalações, junto ao Museu, foram o quartel general da equipa mista de investigadores, seja as empresas Subnauta e Capitão Nemo, que forneceram as embarcações de apoio.

 

A equipa mista, de noruegueses e portugueses

 

Mas, afinal, que andaram os arqueólogos subaquáticos portugueses e noruegueses a fazer, nas águas do Arade?

O equipamento agora testado, um novo sistema de posicionamento, permite georreferenciar com maior precisão os levantamentos fotogramétricos que são feitos pelos mergulhadores, debaixo de água. É que o normal GPS não penetra nas águas e portanto pouca utilidade tem nestas andanças subaquáticas.

Acompanhando a equipa até ao meio do estuário, frente à Praia Grande de Ferragudo, percebe-se que o sistema é composto por três bóias amarelas que têm, cada uma delas, um GPS e um emissor.

Frode Kvalø explicou ao Sul Informação que as bóias são lançadas à água, ficando o GPS à superfície e o emissor debaixo de água, comunicando entre si e permitindo fazer uma triangulação, mais precisa. Essas bóias estão ligadas aos mergulhadores, que têm um sensor e assim comunicam a sua posição.

Uma das bóias, através de wireless, transmite a informação recolhida a um computador a bordo da embarcação de apoio. As fotografias ou o vídeo feito pelos mergulhadores subaquáticos são, assim, devidamente posicionadas e sincronizadas, registando-se a hora e o local exato onde as imagens foram recolhidas.

Após o processamento fotogramétrico de todos esses dados, as imagens darão origem a um modelo tridimensional do sítio arqueológico subaquático em estudo, numa «imagem global produzida a partir da fotogrametria», com um grau de precisão muito superior ao que até agora tem sido alcançado com outros métodos.

O Museu Marítimo da Noruega adquiriu esse novo sistema recentemente. O método, disse Frode Kvalø, é «muito inovador». «Foi experimentado em Inglaterra, há um ano, e agora estamos a ver se aprendemos a usá-lo. Foi para isso que viemos até ao Algarve».

Em Portugal, o CHAM, o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, que também é parceiro do projeto Water World, já comprou este equipamento, mas ainda não o utilizou. Por isso mesmo, José António Bettencourt, arqueólogo subaquático e investigador do CHAM, participou igualmente dos trabalhos.

Frode Kvalø salienta que se trata de «uma tecnologia importante porque permite fazer um levantamento de forma muito mais eficiente, gastando muito menos tempo e portanto permitindo fazer muito mais trabalho».

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 


Um navio inglês do século XIX?

Os vestígios do naufrágio existentes no sítio arqueológico agora denominado Arade 23 foram descobertos em 2006, durante trabalhos preventivos no âmbito do Estudo de Impacte Ambiental para a construção de uma nova marina na margem esquerda do Arade, em Ferragudo, obra que nunca chegou a avançar.

Foram descobertos «restos do casco de madeira, ainda protegido pelo lastro, constituído por pedras», recorda Cristóvão Fonseca, que participou nesses trabalhos, em entrevista ao Sul Informação.

Tratava-se de um «navio de madeira, com pregadura [pregos e cavilhas] em liga de cobre e teria o casco forrado a chapas de cobre». O arqueólogo salienta que «essa tecnologia só começou a ser usada a partir de finais do século XVIII». Por isso, tudo indica que o navio «será do século XIX».

Pouco se sabe sobre a embarcação. Cristóvão Fonseca diz que há um outro «dado interessante», que é o facto de fazerem «parte da sua carga lingotes de ferro». «Isso pode ajudar-nos a ter mais informação sobre este naufrágio».

O arqueólogo aventa que a embarcação poderia ser inglesa. Uma colher recuperada em 2007, com marca dos finais do século XVIII de um produtor inglês, bem como vidros e garrafas também com a mesma origem inglesa, parecem apontar para essa pista. No entanto, Cristóvão não deixa de ser cauteloso: «o navio tem materiais ingleses, mas não quer dizer que seja inglês».

Também não se sabe o que levou o navio a afundar-se. No século XIX, não havia ainda os atuais molhes a proteger os navios que entravam no estuário do Arade ou o escolhiam para se abrigar, pelo que «uma tempestade, uma volta do vento, um erro de navegação» poderão ter estado na origem do afundamento.

Pedro Barros, também arqueólogo do CNANS, sublinha: «não sabemos sequer se o naufrágio aconteceu à entrada ou à saída» do estuário.

Aliás, o leito do rio Arade é rico em vestígios arqueológicos milenares, desde a Idade do Ferro, precisamente pelas mesmas razões. Má sorte para os navios de antanho, mas excelente para os arqueólogos subaquáticos de hoje.

 

 



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