Arqueologia: As telhas que cobriram a vida e a morte na Cacela islâmica

Último ano de projeto arqueológico em Cacela Velha permitiu confirmar a localização da necrópole islâmica da então povoação almóada de Qastalla Darrague

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

Ali, a morte e a vida sobrepõem-se, com vista privilegiada sobre a Ria Formosa. Onde um dia viveu um povo, outro decidiu enterrar os seus mortos. São os segredos destas duas comunidades que continuam a ser desvendados nas escavações arqueológicas do projeto “Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança”, cuja mais recente campanha no terreno decorreu de 20 de Junho a 15 de Julho, junto a esta aldeia do concelho de Vila Real de Santo António.

Depois de dois anos em que os investigadores apostaram forte no trabalho de laboratório, por causa da Covid-19, alunos de licenciatura e de mestrado, doutorandos e experimentados arqueólogos voltaram a unir esforços em mais uma edição do Campo Escola de Arqueologia, que contou com elementos não só da Universidade do Algarve, mas também da Simon Fraser University, do Canadá, e, no caso dos doutorandos, da Universidade de Coimbra.

«Este é o último ano do projeto “Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança”. Como os trabalhos de campo estiveram interrompidos em 2020 e 2021, foi um ano para encerrar os setores abertos e tentar responder às questões levantadas nas campanhas anteriores», explicaram ao Sul Informação Maria João Valente, professora e investigadora da Universidade do Algarve, e Cristina Tété Garcia, da Direção Regional de Cultura do Algarve, que coordenam este projeto em conjunto com Hugo Cardoso, docente da Simon Fraser University.

«Os principais objetivos foram, assim, terminar de escavar as áreas já iniciadas em 2018 e 2019 no sítio do Poço Antigo, onde temos o bairro islâmico, de origem almóada, datado do século XII e que esteve em uso até meados do século XIII, bem como a necrópole cristã, cujo início está datado de meados do século XIII», acrescentam.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Apesar da campanha de 2022, como se perceberá, ter sido, de alguma forma, marcada por telhas, foi de toldos e chapéus que se valeram os elementos da equipa de arqueologia, para se proteger do sol.

No dia em que o Sul Informação visitou o campo arqueológico de Cacela Velha, o calor começou a fazer-se sentir desde bem cedo.

Cerca das 8h30, alunos da Simon Fraser University atarefavam-se a instalar um toldo na zona onde iriam trabalhar ao longo desse dia, em busca de vestígios do Bairro Almóada do Poço Antigo, da antiga Qastalla Darrague, o nome islâmico de Cacela, e da Necrópole Medieval da Ermida de Nossa Senhora dos Mártires de Cacela, que existiram, em épocas diferentes e há vários séculos, na zona a leste da aldeia de Cacela, já fora das muralhas.

Como acontece desde 2018, ano em que as escavações arqueológicas regressaram a Cacela Velha, foi neste local que se concentrou o grosso dos trabalhos.

Depois de nos primeiros anos as principais descobertas terem estado relacionadas com a necrópole cristã – mais recente e, como tal, “mais à superfície”-, em 2022 muitos dos achados estão ligados ao antigo bairro islâmico sobre o qual foi construído este cemitério medieval.

Do solo “despontam” muros de pedra e ruas em esquadria, com vestígios de infraestruturas de drenagem, sinal de que este foi um bairro bem planeado e, acima de tudo, construído com mestria.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

«Estas escavações de 2018–2022 reforçaram a ideia de que na zona do Poço Antigo se desenvolveu um bairro islâmico muito bem organizado do ponto de vista urbanístico e arquitetónico, mais do que já havíamos observado a partir dos trabalhos de 1998–2001», enquadraram Maria João Valente e Cristina Tété Garcia.

Numa das casas cujos escombros as escavações desvendaram, mãos e pincéis pacientes vão trazendo à luz do dia várias telhas, ainda bem preservadas, provenientes «de um telhado que ruiu».

A explicação é interrompida por uma descoberta feita por um aluno canadiano, a de uma concha de vieira, recebida com particular entusiasmo por Maria João Valente, que é especialista em arqueozoologia.

A investigadora ainda teria de esperar para que a grande concha de vieira fosse cuidadosamente desenterrada, mas não escondeu um sorriso rasgado de satisfação quando recebeu uma espécie de prémio de consolação: os vestígios de outros bivalves que já haviam sido recuperados.

O entusiasmo de Maria João Valente é extensível a outro dos achados desta campanha, o de uma lareira ainda com cinzas, fragmentos de utensílios e vestígios do que era confecionado naquele local.

«Os materiais encontrados, em especial os recipientes cerâmicos, demonstram bem as ligações de Cacela com outras cidades do al-Andalus. Ali habitavam gentes que se dedicavam à pastorícia, em especial ovelhas e cabras, agricultura, pesca e marisqueio, uma vez que existe muita conquilha e ostra», explica.

«Sabemos também que a necrópole cristã que se instalou no mesmo local foi fundada muito cedo, imediatamente a seguir à conquista de Cacela pelas tropas da Ordem de Santiago, que se estima ter ocorrido cerca de 1240. As datações dos esqueletos dessa necrópole apontam para a segunda metade do século XIII, ou seja, poucos anos após a conquista», disse a arqueóloga.

 

Maria João Valente com a pilha de conchas – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

A datação dos esqueletos, aliados aos vestígios da povoação almóada, indicam que «o abandono do bairro islâmico deve ter acontecido antes da conquista, o que não é de estranhar, se tivermos em conta que toda zona do Médio e Baixo Guadiana e terras envolventes estaria sobre enorme pressão por parte das tropas cristãs».

«Esta pressão, desenvolvida conjuntamente pelos reinos de Portugal e Castela, aumenta na década de 1230, com a conquista de praças no Sul — Moura e Serpa são conquistadas em 1232, enquanto Mértola e Ayamonte capitulam em 1238. É provável que as comunidades islâmicas, pelo menos algumas delas, tenham abandonado as suas residências e migrado para outras áreas onde o domínio islâmico era mais robusto, na atual Andaluzia ou no Norte de África», acreditam as coordenadoras do projeto.

Ainda assim, «Cacela era um importante porto, com uma localização muito apetecível do ponto de vista económico, militar e político», pelo que «ali terá ficado um contingente militar almóada, enquanto a maioria da população a abandonou».

Feitas as contas a cinco anos de projeto, «da necrópole cristã, temos agora 85 sepulturas, quando em 2001 tínhamos 56. Os corpos estão orientados para nascente, na direção do nascer do Sol, associado a Cristo, depostos em posição de decúbito dorsal [barriga para cima], com os braços normalmente cruzados sobre o peito ou abdómen».

«Trata-se de uma necrópole muito densa que destruiu algumas áreas do bairro islâmico aquando da sua implantação. Essas sepulturas são modestas, de pessoas comuns: a aristocracia não era ali enterrada. A mortalidade infantil era elevada e existem muitas crianças lá sepultadas», explicam Cristina Tété Garcia e Maria João Valente.

«Os esqueletos exumados demonstram que alguns indivíduos adultos seriam relativamente altos e que morreram em fase ainda precoce. A vida nos arredores de Cacela após a conquista não seria fácil. Um dos nossos vetores de estudo é, aliás, focado nisto: a qualidade da vida em Cacela na Idade Média a partir das suas (agora duas) necrópoles», avançam.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Esta referência a um segundo cemitério antigo tem a ver com outra das grandes descobertas feitas nas escavações deste ano – e, lá está, com telhas.

Este ano, os coordenadores do projeto também planearam escavações «numa área onde sabíamos existir uma outra necrópole, inédita, cuja cronologia (romano tardio ou islâmica) era ainda incerta».

«Sabíamos da probabilidade de existência de uma nova necrópole, que se confirmou nesta campanha de 2022. Foi aberta uma sondagem arqueológica e numa pequena área foram identificadas várias sepulturas, indicando uma densidade elevada de enterramentos», reforçam as investigadoras.

Ao longo de cerca de um mês, foi possível «escavar três sepulturas e todas revelaram enterramentos de tipo islâmico: orientação do corpo para nascente, ou seja, na direção de Meca, com corpo colocado na lateral e não em posição dorsal, como é costume nos enterramentos cristãos».

«Trata-se de deposições em fossas simples, sem materiais associados, com cobertura de telhas de canudo ou pedras. Estes são enterramentos muito típicos no al-Andalus e, mais concretamente, no território português ao longo de toda a ocupação islâmica. Uma das sepulturas tem a cobertura parcialmente feita com materiais que estimamos ser mais antigos, de cronologia romana, algo usual em necrópoles de fundação mais antiga», explicam.

«Não há dúvida de que se trata da necrópole islâmica da antiga Qastalla Darrague (Cacela), mas a sua fundação pode anteceder o período islâmico, talvez remontando à época romana. Tal não seria de estranhar pois nas imediações de Cacela são conhecidos vários sítios com vestígios de ocupação romana», acreditam.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Apesar deste ser o último ano do projeto “Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança”, isso não significa que o trabalho pare por aqui. Poderá, inclusivamente, haver um novo Campo Escola.

«Estamos ainda a estudar as opções possíveis. A nossa ideia, antes de iniciarmos esta campanha, era dedicarmos 2023 ao estudo de todas as informações e materiais que temos deste projeto. Há de facto muito a fazer no que se refere ao estudo dos enterramentos humanos da necrópole cristã, bem como das cerâmicas, faunas e outros materiais do bairro islâmico», explicam as arqueólogas.

Por outro lado, também há vontade de lançar «um processo de restauro e consolidação das estruturas do bairro para sua salvaguarda e fruição», algo que está «associado ao levantamento digital exaustivo de toda a parte histórica de Cacela, que já começámos a fazer, com recurso a um financiamento da Direção-Geral do Património Cultural».

Por outro lado, é «essencial preparar um programa mais robusto de divulgação do conhecimento à comunidade em geral e junto da academia e meios científicos em particular».

No entanto, «a descoberta da nova necrópole abre uma série de questões que estamos com muita vontade de responder e isso só se fará com mais informações resultantes de novas intervenções arqueológicas».

À luz deste achado, «o potencial de informação sobre a dinâmica populacional durante a Idade Média nesta região é agora muito maior».

Isto leva a equipa de investigação a fazer várias perguntas: «Até que ponto há abandonos e permanências? Quais as diferenças no modo de vida (alimentação, higiene, saúde) entre populações islâmicas e cristãs? Há laços de parentesco entre ambas? Qual a relação das populações medievais com o meio envolvente?»

«Existe vontade de voltar ao terreno já em 2023, mas o passo mais correto será pensar a conservação e restauro deste importante conjunto histórico e arqueológico, para sua posterior divulgação junto da comunidade. Nesse caso, voltaremos ao campo, esperamos que com uma intervenção mais robusta, em 2024», revelam.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Também a pensar no futuro, foi já elaborado um projeto para a preservação e fruição de toda a zona histórica de Cacela Velha, «que pode ser adaptado às candidaturas a financiamento que forem abrindo, nomeadamente às da União Europeia».

No campo científico, os responsáveis pelo projeto pretendem «concorrer aos financiamentos da Fundação para a Ciência e Tecnologia e a outros programas focados na investigação».

«Em todos estes projetos e planos contamos, desde já, com os parceiros atuais. O Município de Vila Real de Santo António, por exemplo, é absolutamente essencial no apoio logístico, nomeadamente nas estadias e alimentação dos participantes nos trabalhos de campo, bem como na preparação das intervenções (desmatação, coberturas do sol, topografia, conservação e restauro, etc)», exemplificam.

A  autarquia também dará um apoio «fundamental» para o programa de divulgação que está a ser preparado, «em particular ao nível de uma exposição e catálogo de apresentação da história de Cacela Velha ao público».

Maria João Valente e Cristina Tété Garcia dizem que, após se terem reunido com Álvaro Araújo, presidente da Câmara de VRSA, ficaram « com a certeza do seu empenho. Esperamos que se possa concretizar e que a população possa conhecer melhor o seu passado».

A Universidade do Algarve e o CEAACP – Centro de Estudos de Arte, Arqueologia e Ciências do Património, «que têm sido o motor do projeto científico, mediante a intervenção dos seus investigadores e estudantes», a Direção Regional de Cultura do Algarve, que «tem tido a seu cargo a componente mais ligada à gestão patrimonial e foi o motor na preparação de uma candidatura internacional», e a Simon Fraser University do Canadá, «parceiro essencial do campo-escola da Universidade do Algarve, onde associamos a antropologia à arqueologia», também vão manter a sua ligação a projetos futuros.

As coordenadoras das escavações arqueológicas de Cacela Velha fizeram ainda questão de salientar «a excelente cooperação com a Guarda Nacional Republicana, que tem prestado apoio logístico aos trabalhos de campo e tem mantido uma vigilância mais apertada dos sítios arqueológicos».

«O futuro passa pela concretização destas ações, através de financiamento plurianual, e consolidação e alargamento das parcerias. Queremos continuar a desenvolver um projeto científico-patrimonial que seja também um importante fator de desenvolvimento local sustentável, que traga mais valias para a população», concluem.

 

Fotos: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

 

 



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