Dieta Mediterrânica e economia criativa

É preciso evitar que, no futuro próximo, a Dieta Mediterrânica apareça travestida de produtos e serviços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação (arquivo)

Na sequência das minhas últimas crónicas sobre os fatores que promovem a economia dos recursos criativos, quero acreditar que a apelação Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da Humanidade, na sua aceção mais abrangente, se afigura como uma contribuição importante para realizar a modernização da economia local e regional algarvia, em especial, a economia do barrocal-serra algarvio.

Este é um desafio de longo alcance e um bem comum inestimável para o país e a região do Algarve. Revisito alguns aspetos do problema que tardam em merecer a nossa melhor atenção.

De um ponto de vista experimental, estou convencido de que a construção de uma rede-piloto de suporte à Dieta Mediterrânica é fundamental para ensaiar este projeto ambicioso de modernização do território.

Essa rede-piloto pode assumir várias geometrias e naturezas: uma micro rede para resgatar uma semente perdida, uma raça autóctone ou um terroir específico com um valor científico e simbólico relevante, uma rede temática para a inventariação e classificação das práticas alimentares e culturais e os estilos de vida mais representativos da Dieta Mediterrânica, por fim, um território-rede para conseguir escala e massa crítica e compor uma nova economia de aglomeração relevante para uma dieta mediterrânica efetiva.

Como também já escrevi no Sul Informação em outras ocasiões (30 de março de 2017 e 13 de setembro de 2018), estou convencido de que uma das zonas mais relevantes para este efeito é aquela que encontramos no cruzamento e na área de influência das estradas nacionais N124, N2 e N270 e que poderia incluir as freguesias de Martin Longo, Cachopo, Barranco do Velho e Querença no alinhamento da N124, o Ameixial e Alportel no alinhamento da N2 e Santa Catarina e Santa Luzia/Barril no alinhamento da N270. No prolongamento destas linhas podíamos ainda acrescentar as aldeias típicas do barrocal como são Alte, Salir e a União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim.

Num plano mais programático, esta rede de suporte poderia abranger e experimentar as seguintes áreas de trabalho:

– O alargamento das áreas de agricultura biológica e agroecológica e respetivos circuitos;

– Uma rede de artes e ofícios tradicionais, mas, também, a generalização das boas práticas de economia circular e a criação de oficinas 4R (redução, reciclagem, reparação e reutilização),

– A promoção das artes do lazer e recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos e terapêuticos para a sociedade sénior, onde se incluem o turismo de natureza, os campos de férias e as residências seniores, mas, também, para a população em idade escolar;

– O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à história local, a literatura oral, a poesia, as paisagens literárias e as artes públicas e da paisagem etc.

A economia criativa pode ajudar o sistema operativo desta nova cadeia de programação. Pensemos, por exemplo, na verticalização da cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspetiva de valorização das economias locais e dos seus ecossistemas mais sensíveis, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.).

A verticalização de uma atividade económica ao longo de uma cadeia de valor deve ser cruzada com uma rede de atividades articuladas horizontalmente, de tal modo que destes cruzamentos e desta malha possamos derivar pequenas economias de aglomeração e, a partir delas, compor um cabaz de produtos e serviços estruturados e integrados que possamos identificar com uma imagem mais contemporânea e cosmopolita da região.

A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria de design de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas sob a forma de “um dia em”:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da Dieta Mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na Ria Formosa: a observação de peixes e aves na Ria Formosa, os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a natureza e a vida selvagem da ria e atividades culturais e recreativas a pretexto da ria;

– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da Dieta Mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da Dieta Mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da Dieta Mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, como já referi, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espetáculos noturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc.

Se pensarmos nas múltiplas associações técnicas, tecnológicas e culturais entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distribuição, o marketing territorial e o design e a comunicação teremos um campo imenso de possibilidades para os produtos e serviços estruturados em redor da cabra algarvia, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, produtos da floresta etc., para já não falar do universo das sementes perdidas, sobretudo na área hortofrutícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

 

Notas Finais

A economia da região algarvia depende, como sabemos, da estratégia seguida e prosseguida pela indústria do turismo/lazer, em sentido amplo. As condições de funcionamento em baixa densidade, a maioria do território da região, só são possíveis se o turismo/lazer, ele próprio, polinuclear e reticular o seu crescimento pelo interior da região algarvia.

Deve fazer isto por razões de racionalidade económica e não por meras razões de circunstância ou oportunidade, dado que estou convencido de que o futuro da indústria do turismo/lazer depende, também, da diversificação e consistência que for capaz de imprimir ao contínuo campina-barrocal-serra.

Se os atores principais desta economia vertical não estiverem à altura das suas responsabilidades, a indústria do turismo/lazer continuará, muito provavelmente, a desequilibrar toda a região e a inviabilizar os programas de índole local, rural e sub-regional, supostamente desenvolvimentistas, mas cada vez mais assistencialistas.

Aqui chegados, faz sentido a pergunta: será a Dieta Mediterrânica um foco e um feixe de medidas de política suficientemente musculadas e capazes de contrariar os riscos de vária ordem que já hoje afetam o interior algarvio?

Em primeiro lugar, é fundamental identificar os pontos da rede e realizar uma pré-qualificação dos atores disponíveis para este efeito; as juntas de freguesia podem ser, em primeira instância, um ponto de partida com interesse, mas outras estruturas associativas já existentes podem funcionar como os animadores dos pontos da rede; outro ponto da rede com muito interesse, em matéria de capital social, são todas as iniciativas que podem envolver os jovens saídos das escolas secundárias, escolas técnicas profissionais e superiores da região.

Em segundo lugar, os valores culturais, patrimoniais e paisagísticos são um bem público inestimável cuja vulnerabilidade importa contrariar a todo o custo; hoje em dia são inúmeras as feridas a céu aberto nos ecossistemas agro rurais da região do Algarve, ora a rede de suporte da Dieta Mediterrânica pode dizer-nos, em matéria de arquitetura paisagista e engenharia biofísica, qual é o estado da arte e o ponto de partida nesta matéria.

Em terceiro lugar, é preciso acautelar uma abordagem meramente produtivista e economicista da dieta mediterrânica que pode ter efeitos contraproducentes e impactos negativos sobre os modos de produção familiar e artesanal; importa relembrar, mais uma vez, que a Dieta Mediterrânica é uma apelação internacional que não se resume a ser uma cultura alimentar da escassez e da natureza hostil, ela é, também, um estilo de vida e uma antropologia do quotidiano.

Finalmente, e no que diz respeito à imagem de marca do território, é preciso evitar que, no futuro próximo, a Dieta Mediterrânica apareça travestida de produtos e serviços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos. Se a imagem de marca da Dieta Mediterrânica for confundida com uma sucessão de eventos mais ou menos turistificados, então o risco de uma dieta kitsch e oportunística espreitará a todo o momento.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



Comentários

pub