O ciclo turístico e a agricultura familiar algarvia

Estou convencido de que a marca Unesco e a distinção Dieta Mediterrânica seriam, sem dificuldade, o traço de união e o ponto virtuoso de que a região necessita nesta conjuntura tão complexa

Agricultura familiar na serra algarvia – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O Plano Estratégico de Portugal no âmbito da reforma da PAC para o período 2023-2027 está, agora, em consulta pública até 11 de dezembro próximo. Dada a grave conjuntura em que vivemos, é um bom pretexto para uma breve reflexão sobre o futuro da agricultura familiar algarvia.

Vivemos na região do Algarve uma espécie de “dilema do prisioneiro”, ou seja, temos na região um paradoxo turístico a funcionar que pode ser lido desta maneira: uma recuperação acelerada do turismo (período pós-troika) tem um efeito dilatório, não cria as condições para um pensamento radical sobre o futuro da região e, portanto, sobre a diversificação da sua base económica; por outro lado, uma recessão acelerada do turismo (período da pandemia covid 19) não cria as condições favoráveis nem as expetativas positivas para investir na diferenciação da base económica regional.

No limite, temos a região muito condicionada pelo processo de turistificação uma vez que o ciclo turístico progride quase sempre à boleia de uma bolha turístico-imobiliária e, desta vez, com base num modelo de capitalismo low cost, intensivo e uberizado.

 

Agricultura familiar, as questões pendentes

Em 2014 celebrámos o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Nessa altura, numa conferência que proferi sobre a associação íntima entre a promoção da Dieta Mediterrânica e o relançamento da agricultura familiar levantei as seguintes interrogações:

Como é que a apelação “património imaterial da humanidade”, proveniente de uma organização internacional como a UNESCO, pode aproveitar à agricultura familiar e promover as pequenas economias locais da região algarvia?

Como é que as especificações e o plano de salvaguarda desta certificação internacional podem ajudar a modernizar e a promover a agricultura familiar e as pequenas economias da região do Algarve sem as segregar ou excluir?

Que estratégia regional e multilocal podemos desenhar para levar a cabo a “grande aliança” entre educação para a saúde alimentar, o desenvolvimento da agricultura familiar e das pequenas economias locais do interior e a promoção do património imaterial das suas culturas respetivas?

Como proceder, desde já, para evitar que a erosão do padrão alimentar da dieta mediterrânica se acentue, que uma apelação internacional de prestígio seja trocada, com ligeireza, por festivais de culinária mediterrânica, que as economias locais e a agricultura familiar sejam abandonadas à sua sorte e os pequenos aglomerados do interior desertificados, que as culturas locais sejam abastardadas ainda mais dando lugar ao mau gosto e ao kitsch mediterrânico para “turista ver”?

Que responsabilidade é a nossa, cidadãos algarvios, face a esta incumbência de que fomos investidos tão solenemente? O que vamos fazer com os nossos recursos naturais do barrocal e serra, o que vamos dizer aos nossos jovens desempregados acerca do futuro que os aguarda, como vamos reagir aos lamentos das populações abandonadas do interior algarvio, que educação básica sobre saúde, alimentação e cultura queremos transmitir às nossas crianças do ensino primário, que visitação turística queremos, de facto, promover nas nossas aldeias e no interior algarvio, que exigências vamos fazer às autoridades locais e regionais se não tivermos, nós próprios, comunidade política dos interesses públicos e do bem comum, assumido a responsabilidade de o fazer por nossa conta e risco?

 

Agricultura familiar, o que aconteceu entre 2011 e 2020

Entre 2011 e 2014, tivemos a aplicação em Portugal do programa da Troika com as consequências recessivas que são bem conhecidas. Entre 2015 e 2019 tivemos uma legislatura completa de recuperação económica e crescimento do produto interno, com uma melhoria significativa de todos os indicadores económicos e sociais e um destaque especial para as exportações (também agroalimentares) e o turismo.

Isso foi também muito visível no Algarve, no turismo e em alguns subsetores agroalimentares virados para a exportação. Em 2020, devido à pandemia da covid 19 e às suas repercussões socioeconómicas, voltamos à recessão e a observar, mais uma vez, as profundas fragilidades da agricultura algarvia de características familiares.

E é aqui que reencontramos o paroxismo do ciclo turístico nas suas relações com os restantes setores de atividade da região.

Com efeito, é conhecida a forte dependência dos municípios das receitas do imobiliário-turístico, a subordinação do ordenamento e ambiente a este campo de forças onde se joga a gestão/distribuição de mais-valias imobiliárias, a desestruturação do mercado fundiário e do mercado de trabalho regional, a remissão do desenvolvimento rural para um papel secundário, o peso significativo da economia informal como bolsa de terras e de mão obra (cada vez mais estrangeira).

Acrescem, ainda, a pressão crescente dos mercados de exportação, a alteração dos canais de distribuição e retalho (contratos leoninos), o esmagamento dos preços e das margens, a mudança dos hábitos alimentares e consumo e as crescentes exigências tecnológicas e financeiras.

No final, encontramos um modelo de funcionamento da agricultura familiar algarvia cujas características são sobejamente conhecidas:

– O excesso de patrimonialismo fundiário e o mercado especulativo imobiliário alimentam-se mutuamente,

– A debilidade do associativismo socioeconómico e cooperativo é crónica e continua por resolver,

– A fragilidade do interprofissionalismo e do associativismo socioprofissional é, por demais, evidente,

– A falta de uma elite de dirigentes associativos e líderes regionais é evidente,

– A falta de um mercado regulado da terra e do arrendamento é, também, evidente,

– As falhas em matéria de extensão rural, por parte da administração, da academia e das associações locais saltam à vista,

– As faltas de capital de risco e de um regime de garantias adequado são evidentes,

– A falta de uma política integrada de desenvolvimento rural de base regional é notória.

Estes círculos viciosos e estas falhas institucionais determinaram uma agricultura familiar algarvia (AFA) a quatro velocidades:

– Uma AFA de subsistência, em mercados de proximidade e economia informal e com uma capitalização quase nula;

– Uma AFA periurbana e pluriativa ligada a organizações de produtores, cooperativas e intermediários locais, com um pequeno grau de capitalização;

– Uma AFA com ligações contratuais às grandes e médias superfícies comerciais e já com alguns canais de exportação, com um grau de capitalização apreciável;

– A este conjunto de agriculturas familiares mais convencionais poderíamos juntar um conjunto mais pequeno e menos expressivo de agriculturas menos convencionais, mas que num futuro próximo ganharão outro relevo e importância; estamos a falar das pequenas agriculturas biológicas e ecológicas, das agriculturas de nicho, das agriculturas sociais, comunitárias e urbanas.

Em síntese, a agricultura algarvia padeceu e padece ainda, em dose variável, daqueles que são os seis problemas clássicos do desenvolvimento agroindustrial: a acessibilidade ao fator terra (a regulação do mercado fundiário), a capitalização das explorações (mais e melhor estrutura societária), a integração vertical (mais e melhor contratualização), a cooperação (mais e melhor associativismo), a profissionalização da gestão (mais conhecimento e mais rejuvenescimento) e a regulação sectorial (mais comunicação e transparência entre os vários segmentos de mercado).

 

Notas Finais

No plano da administração regional o Algarve sofre de uma falha grave no seu “sistema coordenativo”, uma vez que não tem autonomia política própria e está ocupado com o seu próprio universo burocrático e corporativo: o modelo Protal em matéria de ordenamento, o modelo Proder em volta dos Grupos de Ação Local, o modelo de planeamento e administração próprio da Direção Regional de Agricultura, o modelo autárquico e intermunicipal em redor da sua organização representativa, o modelo coordenativo específico da CCDR-ALG no quadro do seu programa regional.

O único subsistema que prima pela ausência é, afinal, o modelo socioprofissional da agricultura familiar em redor da sua organização regional que pura e simplesmente não existe.

Talvez a conjuntura atual seja mais uma ocasião para refletir sobre a relação ambígua, para não dizer perversa, entre turismo low cost, agricultura familiar pluriativa e intermediação comercial de ocasião. Insisto neste ponto. Há uma relação virtuosa entre turismo, ambiente e agricultura familiar cujo ponto de equilíbrio precisa urgentemente de ser encontrado, até por uma razão adicional, a água é, simultaneamente, o recurso e a restrição destas três atividades.

A agricultura e o agroalimentar têm, ainda, muito espaço para subir na escala de valor da economia regional desde que as perguntas que formulei inicialmente em redor da dieta mediterrânica e do património natural e cultural da região sejam respondidas adequadamente e que acabemos com o labirinto técnico-burocrático dos vários programas de medidas, convertendo o programa operacional regional na única plataforma de candidaturas e investimentos regionais, no preciso momento em que é absolutamente imprescindível gerir criteriosamente os dinheiros dos vários programas de apoio.

Há uma razão de fundo que explica esta série de incongruências no “modelo coordenativo regional”, a saber, a falta de produção própria em matéria de pensamento estratégico regional, pois todo o nosso pensamento territorial gira em redor do Estado central e do Estado local e dos respetivos aparelhos político-administrativos.

Quem sabe, talvez a eleição indireta do presidente das CCDR seja o princípio de um pensamento mais autoreferencial e capaz de pensar a auto governação regional para lá das polémicas mais ou menos estéreis em redor da regionalização e do regionalismo.

Quanto ao resto, estou convencido de que a marca Unesco e a distinção Dieta Mediterrânica seriam, sem dificuldade, o traço de união e o ponto virtuoso de que a região necessita nesta conjuntura tão complexa. E porque não criar, desde logo, uma associação regional de agricultura e desenvolvimento rural digna desse nome?

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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