Dragagens no Arade podem ser «oportunidade» ou «machadada final» no património subaquático

Consulta pública que suscitou meia centena de participações termina hoje

Arqueologia subaquática no estuário do Arade – Foto: DGPC

«Houve muito tempo para avançar com a investigação arqueológica», mas agora as novas dragagens previstas para o Arade podem tornar-se em mais «uma oportunidade perdida» ou mesmo dar a «machadada final» no riquíssimo património arqueológico subaquático que existe no estuário deste rio algarvio.

Esta é a opinião de diversos especialistas em património e arqueologia subaquática com quem o Sul Informação falou, no âmbito do processo de Avaliação do Impacte Ambiental das obras de Aprofundamento e Alargamento do Canal Navegação do Porto de Portimão, cuja fase de discussão pública se prolongou apenas por 10 dias e termina precisamente esta terça-feira, 11 de Agosto.

Cristóvão Fonseca, investigador do Centro de Humanidades (CHAM – FCSH/NOVA|UAç), unidade de investigação interuniversitária da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, e profundo conhecedor do património subaquático do Arade, em declarações ao nosso jornal, sublinha que o estuário daquele rio «é um dos mais importantes espaços nacionais para a arqueologia náutica e subaquática». Este sempre foi «um dos principais portos do espaço atualmente português ao longo dos séculos, da Idade do Ferro até à contemporaneidade, destacando-se a sua função essencial na articulação da navegação entre o Mediterrâneo e o Atlântico».

Já em 2018, o CHAM tinha alertado diversas entidades – Administração dos Portos de Sines e do Algarve (APS), que promove a obra, bem como Câmara Municipal e o Museu de Portimão – para a necessidade de fazer prospeção e escavações arqueológicas no Arade, «com tempo», devido ao «muito significativo e certo impacte patrimonial negativo na implementação desta obra portuária», que importava «acautelar com a devida antecipação».

Só que, salienta Cristóvão Fonseca, «entretanto nada foi feito». E agora os investigadores deparam-se com a fase de Avaliação do Impacte Ambiental de uma obra que já está em «projeto de execução» e que, como disse ao Sul Informação uma fonte ligada ao processo, «deverá ser lançada antes de Outubro do próximo ano», ou seja, pouco antes das Eleições Autárquicas de 2021.

Para mais, como é referido no Resumo Não Técnico do Estudo de Impacte Ambiental, até se prevê que, em algumas zonas, as obras de dragagem e consolidação possam avançar a par da intervenção arqueológica exigida por lei. É o caso do alargamento da bacia de rotação de 350 para 500 metros, junto ao importante sítio arqueológico designado como Arade B.

 

 

O arqueólogo subaquático Cristóvão Fonseca, que, com José Bettencourt, são responsáveis pelo projeto de investigação denominado “Um complexo portuário milenar no Barlavento Algarvio: a arqueologia do estuário do rio Arade”, que se prolonga até 2022, sublinha que «até à data, não existem antecedentes equiparáveis» com o impacto destas obras no património subaquático, «exceto as primeiras grandes dragagens de 1970», que tanto património importante destruíram.

Por isso, alerta, se as novas dragagens não forem feitas com os devidos cuidados, tal «colocará irreversivelmente em risco este valioso património, pondo em causa a continuidade da investigação que se está a levar a cabo, ou qualquer outra que se pretenda fazer no futuro».

Além do mais, defende, há que avaliar e definir o equipamento que será usado nas dragagens, para evitar a triste repetição dos erros do passado, com os vestígios arqueológicos a serem trucidados pela draga e cuspidos em mil pedaços para um monte de detritos na margem do rio. «Nas áreas mais sensíveis do ponto de vista patrimonial, onde se prevê uma maior probabilidade de ocorrências, as dragagens devem ser espacialmente delimitadas e o equipamento a utilizar deve permitir a deteção de vestígios arqueológicos durante a recolha de dragados».

Será a diferença entre usar «uma draga de sucção ou uma draga de balde», nas zonas mais sensíveis. Só que este segundo método é mais caro e mais moroso.

É que os prazos dos arqueólogos não são os mesmos dos políticos. E Cristóvão Fonseca receia que a pressa em lançar e avançar com a obra possa provocar danos irreversíveis no riquíssimo património subaquático do rio Arade, do qual, após décadas de investigação, só se conhece uma pequena parte.

«Tempo não temos muito. Mas se houver vontade, normalmente vontade política, orçamental e de mobilização de meios, poderá ser feito um bom trabalho recorrendo a equipas com a devida formação». Só as escavações em dois navios já conhecidos, identificados como Geo5 e Arade23, «levará vários meses de trabalho», mesmo tendo «uma equipa só dedicada a cada um deles».

«Trata-se de uma obra numa área muito grande, com um volume de dragagens muito considerável». Por isso, resume Cristóvão Fonseca, «há vários níveis de preocupação, que começam com os sítios que já conhecemos e que serão afetados direta e irreversivelmente. Fora os que não conhecemos. Há aqui sempre uma dimensão que não conseguimos prever. Mas, por causa das pressas, não podemos deixar que, mais uma vez, se destrua património. Tudo tem que ser devidamente investigado e registado».

O que é certo é que as entidades ligadas ao Património que se pronunciaram nesta fase de discussão pública não querem «voltar a ter “barcos misteriosos”, porque desapareceram com as dragagens e ficaram desfeitos, como aconteceu nos anos 70».

 

Arqueologia subaquática no estuário do Arade – Foto: DGPC

 

Entretanto, o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), tutelado pela Direção-Geral do Património Cultural, fez recentemente alguns mergulhos aos sítios arqueológicos (naufrágios, âncoras, achados isolados, entre outros) que «foram relocalizados e identificados no âmbito dos trabalhos arqueológicos deste projeto».

O resultado desses mergulhos, que contaram com a colaboração da APS – Administração dos Portos de Sines e do Algarve, da OpenWaters e da APA – Agência Portuguesa do Ambiente, foi apresentado depois durante a visita que a Comissão de Avaliação do Estudo de Impacte Ambiental do Aprofundamento e Alargamento do Canal de Navegação do Porto de Portimão fez ao local, nos primeiros dias de Agosto.

Cristóvão Fonseca, que não quer que a arqueologia seja vista como um entrave ao desenvolvimento económico, salienta que a intervenção que prevê dragar 4,63 milhões de metros cúbicos de areias e outros sedimentos, na foz do rio Arade, «até pode ser uma oportunidade para conhecer o património subaquático, para o valorizar e até para criar riqueza, aumentando a oferta de turismo cultural e arqueológico de qualidade».

Uma parte do património, nomeadamente os canhões, cuja conservação fora de água é sempre muito difícil e dispendiosa, pode permanecer no fundo do rio, numa zona que não seja afetada pelas dragagens e pela passagem futura dos navios. «Pode ser criado um circuito de visita subaquática, como existe no Ocean Revival, cá em Portimão. Na Horta [ilha do Faial, Açores], fizemos isso, deixámos in situ, debaixo de água, canhões e âncoras. Se tudo isso estiver integrado num circuito de mergulho, é uma oferta turístico-patrimonial interessante».

No entanto, esta é apenas uma parte do problema. Porque há que definir, com antecedência, o que fazer para guardar e conservar todo o património retirado do fundo do rio.

O Estudo de Impacte Ambiental, que hoje termina o seu curto período de dez dias de discussão pública, aponta duas áreas de maior sensibilidade arqueológica, uma delas, com 12 hectares, situada frente à Praia Grande de Ferragudo e onde já se sabe existirem vestígios importantes. Do fundo do rio, será retirado o dobro do volume dos dragados dos anos 80.

Analisando o mapa que consta do EIA, verifica-se que são identificadas 28 ocorrências patrimoniais, seis delas naufrágios já documentados, que têm de ser escavados antes de as dragas poderem avançar. E há ainda o que não se conhece e que a profunda mobilização do leito do rio pode pôr a descoberto.

 

Recuperação da ânfora completa Dressel 1 em Arade B – Foto: José Bettencourt

 

Fonte ligado ao património disse ao Sul Informação que «esta é uma oportunidade como nunca tivemos na arqueologia subaquática. Há muitos barcos que vão ser retirados de lá, mas há pouco tempo para o fazer, o que cria problemas acrescidos e pode exigir mais investimento, para contratar mais equipas especializadas». E quem pagará tudo isso? «Terá de ser o dono da obra, a APS».

Mas, mesmo que as escavações arqueológicas e o registo de todo o património possam ser feitos com condições e tempo, faltará sempre resolver o problema de onde guardar o espólio salvo das garras das dragas.

«O Museu de Portimão tem das melhores instalações do país para instalação subaquática, até por ter um cais próprio e estar situado à beira rio. Mas não tem instalações nem equipa suficiente para dar resposta a este enorme volume de trabalhos. Nem tem que ter», admite Cristóvão Fonseca. Daí que essa tenha sido sempre uma preocupação dos investigadores do CHAM, que, atempadamente, em ofício enviado às diversas entidades em 2018, chamaram a atenção para o problema.

Fonte ligada ao Património sublinha, que, não tendo o Museu de Portimão «condições nem capacidade para guardar, tratar e conservar» o espólio a retirar das águas do Arade, nomeadamente as frágeis madeiras de barcos que podem até ser milenares, «deve haver uma estratégia conjunta entre as entidades, sempre envolvendo, como principal financiador, a Administração dos Portos». Câmaras de Portimão e de Lagoa, Museu de Portimão são também entidades que devem estar envolvidas no processo.

Isilda Gomes, presidente da Câmara Municipal de Portimão e desde sempre grande defensora do projeto de alargamento das bacias de manobras e do canal do porto, sublinha que as dragagens são «estruturantes para Portimão e para o seu porto, que é o único no Sul de Portugal a poder receber navios de cruzeiro».

Quanto às questões do património, a autarca diz que «os achados arqueológicos têm de ser preservados, seja aqui, seja em Lisboa». «São questões que temos de falar com a senhora ministra da Cultura, porque este património não é só de Portimão, é de dimensão nacional».

Isilda Gomes admite mesmo que possa ser pensada uma nova estrutura museológica para acolher e conservar o espólio que vier a ser retirado do Arade. «Se é de facto necessário haver outras instalações, porque o nosso Museu não tem espaço, então teremos de definir, entre todos, como vamos encontrar os meios para se poder implementar essa nova estrutura».

 

 

Luís Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Lagoa, sublinha que a autarquia tem «um projeto museográfico em desenvolvimento, para potenciar e valorizar a longa história e relação que o nosso concelho tem com o rio».

O autarca lagoense salienta que «o investimento no porto de cruzeiros é importante, para estes dois municípios vizinhos e para todo o Algarve», mas há que acautelar os interesses de Lagoa, assim como garantir a preservação do património arqueológico, «grande parte dele até situado numa zona do rio que pertence ao nosso concelho».

Luís Encarnação manifestou mesmo a «total disponibilidade» do município de Lagoa para acolher uma eventual futura estrutura que permita guardar, tratar, conservar e valorizar o espólio arqueológico que venha a ser retirado do rio.

«Nunca a Administração dos Portos de Sines e do Algarve nos contactou no âmbito deste projeto, apesar de, por diversas vezes, termos manifestado o nosso interesse em participar, de forma prévia, na discussão. Por isso, agora afirmamos publicamente, para que não haja equívocos, que estamos disponíveis para encontrar uma solução».

José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão e membro da SMUCRI-Secção dos Museus , da Conservação e Restauro e do Património Imaterial, do Conselho Nacional de Cultura, faz questão de salientar que «o Município  de Portimão e o seu  Museu têm tido, como é reconhecido em termos locais, nacionais e europeus, um papel relevante ao longo de mais 30 anos, no apoio logístico e humano, na conservação, estudo,  valorização e divulgação  museológica  de todo um espólio arqueológico subaquático, proveniente da sua envolvente flúvio-marítima».

Mas, pela sua dimensão, esta nova campanha de dragagens será «certamente  um enorme e estruturante desafio, que a todos obriga e obviamente , não poderá ser assumido apenas por uma única entidade,  mas antes  partilhado pelas diferentes administrações a nível nacional, regional e municipal, tendo em conta espaços, recursos  humanos e  equipamentos adequados para o tratamento de  materiais provenientes do mar  e um futuro e desejável retorno cultural, patrimonial e museológico para a região, para as suas comunidades e os seus visitantes», acrescentou, em declarações ao Sul Informação.

Gameiro defende que se está «na presença  de uma oportunidade única e imperdível para, eventualmente em novos moldes ( através de uma opção  museu e parque subaquático visitável) ,  salvaguardar , valorizar e reforçar mais uma vez , uma oferta patrimonial de grande singularidade  histórica, aumentando as variáveis temáticas da oferta cultural e turística do Algarve».

Daí que, na sua opinião, «uma  articulação de meios, vontades e responsabilidades será a única solução».

A consulta pública do projeto de «Aprofundamento e alargamento do atual canal de navegação, tendo em vista a receção de navios de cruzeiro com comprimento até 334 metros» já recebeu, até à hora em que este artigo foi publicado, 50 participações de entidades públicas e pessoas individuais. Hoje é o último dia deste curto período de consulta pública, mas a elevada participação confirma o interesse que as projetadas novas dragagens do Arade está a suscitar.

O problema que se coloca, como salientou uma fonte ligada ao Património, é qual será o calendário que vai prevalecer: se o calendário político, motivado pelas Eleições Autárquicas de 2021, se o calendário das obras portuárias que têm que avançar a todo o custo, ou se o calendário da defesa de um património subaquático, que se sabe ser riquíssimo e que é único, no contexto europeu». O ideal será conciliar tudo isso. «Esperemos não ter dragas a funcionar antes das eleições do próximo ano», conclui a mesma fonte.

 

 

 

 

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