Produção vinícola no Algarve na década de 1870 e a brilhante participação na exposição internacional de Londres

As características do vinhos do Algarve foram menosprezadas durante décadas, mas que renasceram nos nossos dias

Portimão (Postal ilustrado)

O Outono carateriza-se, entre muitos outros aspetos, pela prova do vinho novo. Diz a sabedoria popular que, «pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho».

Nas últimas décadas, no Algarve, a vitivinicultura conheceu um grande incremento, quase proporcional aos variadíssimos galardões nacionais e internacionais com que os vinhos regionais têm vindo a ser distinguidos.

Mas será este um sucesso recente? Para os mais distraídos, a resposta surgirá célere e afirmativa. Todavia, a apetência vinícola da região já sobressaía, no país e além-fronteiras, no século XIX, na década de 1870.

O jornal portimonense «Correio do Meio-dia», na sua edição de 26/7/1874, reproduziu um trecho de uma reportagem publicada no «Diário de Notícias», correspondente aos néctares algarvios, presentes na exposição de Londres.

O caso não era para menos, afinal os vinhos do Algarve vinham a receber naquele certame vários «louvores» que levavam o jornal de Portimão a conjeturar que tais apreciações deveriam «levantar o descrédito» associado à vitivinicultura algarvia.

Ao que complementava: «somos dos que acreditamos que uma epocha nova se abre aos vinhos algarvios se os cuidados e empenho dos cavalleiros n’esta questão interessados, souberem fazer bom uso dos créditos que Londres acaba de estabelecer-lhes em seu auxílio».

Para finalizar, escrevia o periódico, «esperamos que a província toda saberá avaliar a importancia d’esta questão para envidar esforços de grande interesse e máxima utilidade para ella».

Inaugurada a 7 de Abril de 1874, a exposição internacional de vinhos de Londres decorreu nos subterrâneos do Royal Albert Hall e foi alvo de uma reportagem no DN, na secção «Folhetim», nos dias 19 e 20 de julho, daquele já longínquo ano.

 

A exposição decorreu nos subterrâneos do Royal Albert Hall (postal ilustrado)

Após tecer duras críticas ao local e organização do certame, Nicolau, autor do folhetim, descreveu a «cella» destinada aos vinhos portugueses, onde estavam presentes os vinhos do Algarve, Alentejo, Estremadura, Beira Alta, e Madeira, tecendo depois considerações acerca da apreciação dos visitantes aos néctares nacionais.

Os vinhos do Algarve, com 14 qualidades, encontravam-se expostos na ala direita da exposição portuguesa. Destes, foram avaliados 12 (dois não reuniam condições), os quais, segundo aquele autor, «têem tido tantos admiradores quantos provadores», particularizando «como vinhos finos e muito delicados, os tintos dos Exmos. Srs. T. Magalhães, R. A. Motta e F. P. Mendes, de Portimão, os de M. M. de Mendonça, de Olhão e os da viúva de A. J. Júdice de Lagôa».

Elegendo porém, o de F. Mendes, de Portimão, como «uma das maravilhas que appareceu e que fez empallidecer e tornar invejosos os melhores provadores estrangeiros que o estudaram». Afinal, possuía «no maior equilíbrio e elegância todas as diversas qualidades que se podem ambicionar para a formação de um vinho fino e delicado».

No género de vinho maduro e doce, sobressaía o da viúva de A. J. Júdice, de Lagoa. Quanto aos vinhos brancos, eram apresentados três tipos, não obstante um deles ficar fora da apreciação, os restantes de M. M. de Mendonça e T. A. da Fonseca, de Olhão foram «muito gabados, com especialidade o do último cavalheiro, que foi causa dos mais bem merecidos elogios».

Afinal, encontrava-se «n’este vinho uma elegância ou finura, que encantava a quantos o bebiam e o fazia comparar com os bons Sauternes por provadores francezes e completamente insuspeitos, pois que eram negociantes de vinhos de França!».

Os vinhos do Algarve destacaram-se sobremaneira na exposição londrina, autênticos «elixires» do Deus Baco.

Mas que vinhos eram estes? Que quantidades eram produzidas? Quais as castas mais cultivadas? As questões podiam suceder-se, contudo e ao contrário do habitual, existem respostas para todas elas.

José de Beires, diligentíssimo governador civil do distrito de Faro, entre 1871 e 1878, legou-nos um conjunto de publicações (Relatórios apresentados à Junta Geral do Distrito) que nos permitem conhecer com detalhe e rigor a realidade algarvia da década de 1870.

Em 1875, descrevia aquele magistrado administrativo sobre a região «as condições especiais do seu solo e clima, que o habilitam a produzir mais e melhor vinho do que nenhum outro districto, quando a terra seja convenientemente explorada e no fabrico do vinho se empreguem os processos mais adequados».

Ora, em 1873 o Algarve produziu cerca de 280 560 decalitros de vinho. O concelho de Olhão constituiu o maior produtor, com 61 448 dal., seguiu-se Faro, que atingiu 55 500 dal. e Lagoa, 42 400 dal. Portimão e Tavira também se destacavam com 38 760 e 32 540 dal. respetivamente. Já Silves e Albufeira quedavam-se por 12 372 e 9 334 dal. cada um.

Nota ainda para Vila Real e Castro Marim, cuja produção ascendia a 8 916, no primeiro caso e 7 530 dal. no segundo e, Lagos, com 7 500 dal..

Nos restantes municípios, a colheita era diminuta (Loulé 3 300, Vila do Bispo 600, Aljezur 200 e Alcoutim 160 dal.) ou mesmo inexistente, como em Monchique.

 

O Algarve – Excerto da Carta de Vinhos para a Exposição de Londres, 1874 (Biblioteca Nacional de Portugal)

Refira-se que o oídio havia atacado com muita intensidade os vinhedos algarvios, levando ao desânimo os agricultores que decidiram apostar na plantação de figueiras, em detrimento das videiras.

Antes do aparecimento daquela praga, havia muitas vinhas nos concelhos de Loulé, Monchique, Lagos e Aljezur, que só por aqueles anos voltavam a ser plantadas, ainda que paulatinamente.

Por isso e dadas as excelentes condições naturais da região, as autoridades lamentavam, em 1873, que a vinha ocupasse uma área tão diminuta.

Ainda assim, reconheciam que alguns agricultores não haviam abandonado a cultura, criando novos vinhedos (embora apostassem em castas mais produtivas, mas de inferior qualidade), de forma que a superfície dedicada a esta cultura aumentava todos os anos.

O litoral concentrava a maioria das vinhas, na serra elas eram, à exceção de Loulé, inexistentes. Os melhores vinhos concentravam-se nas freguesias da Fuzeta, então concelho de Tavira, de Moncarapacho, Quelfes e Pechão do concelho de Olhão, as quais formavam um centro vinícola importante.

No Barlavento, os concelhos de Lagoa e Portimão também se destacavam, como centro vinícola, «exibindo vinhos finos e generosos», contudo apenas como amostra e «vinhos de meza que poderiam rivalisar com os primeiros do paíz».

Quanto às variedades, eram muitas e diversas, cerca de 31 castas brancas e 26 pretas. As brancas mais comuns eram «assario, mantheúdo, boal, tamarez, e olho de lebre», já as menos frequentes «sabro, perrum, boal de hespanha, moscatel, Crato, diagalves, D. Branca, boal cachudo, gallego, bugarrem, beba, arintho, pau ferro, godilho, mourisco, penso, tenedeira, alminhaca, alvilha, pérola, 7 espigas, valle Barreiros, tamarez, leira, assarião e terrantes».

Por sua vez, compreendiam as castas tintas mais vulgares a «negra molle, pau ferro, alicante pexem, monvedro, tamarez». Depois evidenciavam-se as «bastardo, tintureira, breal, coração de gallo, bastardinho, espadeiro, chapasro, caroncha, arintho, bocalrão, languedor, ferral tâmara, citima, tinta, Crato, trincadeira e argenção».

Um dos grandes problemas do vinho algarvio prendia-se com o processo de vinificação, o que levava à frequente classificação de «altamente defeituosos». Esta resultava do «pessymo systema de fabrico: mal fermentados, não tinham as qualidades de vinho licoroso, nem as de vinho de pasto; muito sujeitos a fermentações anormaes e extemporaneas, só se podiam conservar à força de alcohol addicional».

 

Olhão (Postal ilustrado)

Uma realidade que o agrónomo Alexandre de Sousa Figueiredo, à frente da Estação Agrícola Distrital, criada em 1873, vai tentar mudar. Não só percorre toda a região, em conferências públicas, ensinando aos agricultores o processo de vinificação, as melhores castas a aplicar de acordo com as caraterísticas dos solos, a poda correta, como publica vários trabalhos sobre o tema, e até mesmo um «Jornal dos Agricultores do Algarve», em 1875.

A ação deste técnico, que incidiu particularmente na modernização da cultura da vinha, por considerar que o solo do Algarve era um dos melhores do mundo para o efeito, fez-se sentir nos anos seguintes.

Em 1877, «a cultura de vinha no Algarve vae de anno para anno augmentando consideravelmente», constituindo então a «predilecção» dos agricultores, de tal forma que a Junta Geral do Distrito de Faro tinha «bem fundada esperança de que, n’um futuro não muito remoto, a maior riqueza do Algarve há de provir da produção dos seus vinhos».

Contudo, o vaticínio não se concretizou, pouco depois, por diversos motivos (onde se incluíram as pragas, como a filoxera), os agricultores reduziram a sua aposta na viticultura, e inexoravelmente diminuiu a produção de vinho.

Pese embora esta realidade, as caraterísticas intrínsecas dos vinhos algarvios estavam reveladas e comprovadas pelo sucesso alcançado na exposição internacional de Londres. Caraterísticas menosprezadas durante décadas, mas que renasceram nos nossos dias, promovidas e fomentadas por técnicos especializados à frente das diversas explorações vitivinícolas existentes, um pouco, por toda a região.

Técnicos que honram hoje a memória do agrónomo Alexandre Figueiredo (1837-1908), seu precursor e, quiçá confirmarão um dia o prognóstico, lavrado há mais de 140 anos, da Junta Geral do Distrito: «a maior riqueza do Algarve há de provir da produção dos seus vinhos».

 

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições, respeitou-se a ortografia da época.

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