As “passinhas do Algarve” na seca de 1875, ou o retrato social e económico da região – Lagoa, Silves e Albufeira

Num período em que predominam dias extremamente quentes, continuamos a recordar o relatório efetuado pelo Governador Civil de Faro, José […]

Num período em que predominam dias extremamente quentes, continuamos a recordar o relatório efetuado pelo Governador Civil de Faro, José de Beires, entre 23 de maio e 10 de junho de 1875, sobre as trágicas consequências de uma longa estiagem, que ameaçou exterminar os algarvios.

Publicado no jornal lacobrigense “Gazeta do Algarve”, o relato constituiu a base para a tomada de medidas pelo governo, de forma a atenuar a fome que acercava os algarvios. Assim, após percorrer os municípios além do Arade até à costa vicentina e reunir-se com os dirigentes locais, o Governador Civil chegou a Lagoa, a 31 de maio.

Lagoa tinha a particularidade, apesar da sua pequena dimensão, de ser o concelho do distrito onde a agricultura era mais intensiva. Segundo o governador, não havia um metro de terra que não estivesse cultivado, abundando as vinhas e o arvoredo, figueiras e amendoeiras.

Todavia, a dilatada estiagem já havia dizimado muitas daquelas árvores, somente as videiras apresentavam produção, ainda que sofrível. Os figueirais encontravam-se despidos de folhas e o parco fruto com indícios de pecar.

Quanto às searas achavam-se com pior aspeto que as vizinhas do concelho de Portimão. Lagoa era até agora o município onde os efeitos nefastos da seca mais se faziam sentir, especialmente em Ferragudo.

Sobre esta freguesia escreveu José de Beires:
“Por serem em geral magros e áridos os seus terrenos, e a sua situação próxima da costa, é a freguezia que se acha em mais deploráveis condições. Arvoredo (figueiras e amendoeiras) é a sua cultura principal, e esse offerece o mais triste aspecto, achando-se já perdido uma parte d’elle. Do mesmo modo as searas, que pela maior parte nem chegaram a formar espiga. Os serôdios também todos perdidos. Vinhas não existem n’esta freguezia”.

 

Melhor situação não tinha Porches:
“A producção de cereaes n’esta freguezia, em annos regulares, é de 70 moios. N’este anno não excede a 3. As oliveiras apresentaram abundante florescência, mas perdeu-se toda sem fructo. As figueiras que existem em terrenos arenosos estão menos prejudicadas; as restantes pouco fructo apresentam, e muitas manifestam próxima morte. As vinhas de areias estão boas. Os serôdios irremediavelmente perdidos”.

Quanto a Estômbar:
“As searas só por excepção produzirão a semente. Os serôdios e arvoredo, como nas outras freguezias. As vinhas soffriveis.”
Idêntico aspeto tinha Lagoa.

A importância do figo e dos cereais (pão) é patente em todas as freguesias, também os vinhedos conheciam profusão no concelho. A reunião realizada neste município teve ainda uma singularidade: a intervenção de uma personalidade da terra, Lino Augusto Júdice da Costa, que elencou mais de dez medidas, que na sua opinião deveriam ser tidas em consideração para atenuar a crise que atemorizava os lagoenses. A peculiaridade e fundamento das propostas levou o governador a garantir que delas daria conhecimento integral ao governo, o que concretizaria.

 

Realizado o diagnóstico em Lagoa, José de Beires dirigiu-se para Silves. Porém, ao contrário da maioria dos concelhos que havia visitado, o governador foi aqui parco na caraterização geral, limitando-se a referir que abrangia uma grande área que se estendia desde a costa até à serra. Vejamos então o que escreveu sobre cada uma das suas freguesias:

S. Marcos – A sua riqueza agricola consiste em montados e searas. Estas offerecem melhor aspecto do que nos annos regulares”.

Em S. Bartolomeu de Messines:
“Predomina a figueira n’esta freguezia, e o seu estado não é dos peiores. Em alguns sitios o arvoredo pouco rebentou, mas n’outros apresenta-se com lançamentos regulares. A producção será de dois terços de uma colheita ordinária”.

Por terras de João de Deus a situação não era dramática, embora com algumas perdas.

Já em Silves:
“A parte d’esta freguezia que confina com as do litoral está no mau estado em que estas se acham, mas no resto que se estende até á serra não ha perdas importantes, e o arvoredo, sua principal riqueza agricola, apresenta soffrivel aspecto”.

Relativamente a Algoz:
“É a freguezia do concelho que se acha em peiores circumstancias. Os olivedos são a sua principal riqueza, e estes nenhum fructo mostram; as figueiras, quando muito produzirão uma quarta parte de uma colheita ordinária; as sementeiras de legumes totalmente perdidas, as vinhas mal rebentadas, e as alfarrobeiras perdem o pouco fructo que mostraram. Ha também grande falta de agua potável; dos dois únicos poços que tem, um está secco, e o outro quasi no mesmo estado”.

Mas melhor sorte não tinha Alcantarilha e Pêra. Em Alcantarilha:
“Idênticas informações, excepto a respeito das vinhas, que estão boas”.

E Pêra:
“Idem, notando-se n’esta freguezia ainda mais miséria do que nas outras”.

Em oposição à área serrana do concelho, onde as colheitas prometiam ser copiosas, no litoral a situação era periclitante, até em termos de abastecimento público, como sucedia em Algoz. A disparidade dos prejuízos entre aquelas duas subregiões foi desde logo notada por José de Beires:

“As freguezias da serra, pelo contrario, pouco ou nada soffrem n’esta crise. E é o que succede em quasi todo o districto. A maneira que se caminha do litoral para a serra, observa-se que os estragos da estiagem vão progressivamente diminuindo”.

 

Percorrido e analisado o termo de Silves, partiu aquele magistrado para Albufeira. Também aqui, em termos de caraterização geral, o governador foi poupado em informações, referindo essencialmente que abundavam terrenos áridos. Quanto à longa estiagem, assumia contornos medonhos.

Sigamos então, pela sua pena, os prejuízos na freguesia de Paderne:
“Cultura principal – figueiras, que se acham em mau estado, havendo já muitas perdidas, e calcula-se que a colheita, se não se perde o pouco figo que apparece, attingirá, quanto muito á quarta parte de uma producção regular. Dos cereaes haverá apenas a semente. Os olivedos perderam toda a flor sem fructo. As amendoeiras pouca novidade mostram, e essa fica, pela maior parte, imperfeita. Só as alfarrobeiras estão soffriveis, quanto à quantidade da producção, que será pouco inferior á do anno precedente, mas de qualidade ruim. Os serôdios totalmente perdidos, e as vinhas pouco lançadas, mas mostrando abundância de cachos, muitos dos quaes se vão esbagoando. Ha grande falta de agua potável”.

Ainda assim, não obstante, os estragos, Paderne era das freguesias menos afetadas no concelho.

Quanto à Guia:
“É a freguezia mais pobre do concelho. O género e estado da agricultura é quasi o mesmo que se dá na freguezia de Paderne. O que tem de melhor é o vinhedo das areias, o que se acha em terreno argilloso lançou mal e mostra pouco fructo”.

Curiosa a classificação da Guia como a mais necessitada do concelho.

Relativamente a Albufeira:
“O mesmo género de cultura das outras freguezias, e maiores estragos nas searas, especialmente nos terrenos de 1.ª qualidade, como são os de Quarteira, e que são considerados uns dos melhores do Algarve. As figueiras, pela maior parte, apresentam-se quasi despidas de folhas.”

Albufeira era juntamente com Lagoa, de todos os concelhos até agora visitados, os mais duramente afetados. Contudo, os albufeirenses não só tinham o seu arvoredo em piores circunstancias como viviam já uma situação social dramática, como anotou o governador civil: “é n’este concelho que a miséria invade já muitas famílias, especialmente nas freguezias ruraes. Informaram os parochos que algumas pessoas estavam reduzidas a tal penúria, que aproveitavam para alimento a semente cozida da alfarroba”.

Tempos extremamente difíceis, onde a muito custo e com alguma imaginação se sobrevivia.

Examinado o concelho de Albufeira, José de Beires continuou a sua árdua jornada por aquele Algarve sequioso, dirigindo-se agora para Loulé, freguesia de Salir.

 

 

(continua)

 

Parte I – As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região

Parte II – As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região – Lagos, Monchique e Portimão

 

Nota 1: As imagens utilizadas são meramente ilustrativas. Correspondem a postais ilustrados, da primeira metade do século XX.
Nota 2: Nas citações do jornal «Gazeta do Algarve», optou-se por manter a grafia e da época.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita, engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, colaborador habitual do Sul Informação

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