Uma história de maus fígados

Cerca de 10% (!!) das crianças portuguesas até aos 12 anos podem sofrer de fígado gordo

Que há em comum entre uma vida sedentária com muita cadeira e sofá e pouco exercício, uma alimentação rica em gordura e açúcar, e a barriga grande daquele Tio que bebe demais e estraga as festas de Natal? Nada mais, nada menos, que uma história de maus fígados.

É do conhecimento geral que o excesso de álcool faz mal ao fígado. Toda a gente ouviu falar de cirroses causadas pelo excesso de consumo de álcool. Mas menos gente sabe que, mesmo em pessoas com um reduzido (ou nulo) consumo de álcool, o fígado pode ficar afetado de uma maneira muito semelhante ao de alguém com um consumo exagerado de álcool. E porquê?

Já antes da pandemia da covid-19, sabíamos que tínhamos outra pandemia em mãos. Os maus estilos de vida nos países industrializados, com vidas sedentárias, muitas vezes agarradas a ecrãs e com pouco ou nenhum exercício físico, associados a dietas deficientes, ricas em açucares e gorduras, levaram a um aumento crescente de perturbações metabólicas, incluindo o chamado síndroma metabólico, que se faz acompanhar de condições graves. Uma dessas condições é o chamado fígado gordo não-alcoólico, isto é, uma acumulação excessiva de gordura no fígado, que ocorre em situações de nulo ou reduzido consumo de álcool.

Convém abrir aqui um parêntesis e dizer que a noção de “reduzido consumo de álcool” pode ter várias definições de acordo com a pessoa que conta a história. Uma garrafa de vinho tinto diariamente para algumas pessoas pode ser uma definição clássica de reduzido consumo de álcool (não é!), daí que o termo “não-alcoólico” possa ter uma conotação dúbia em alguns círculos.

Voltando à nossa história, o que leva o fígado a acumular gordura de forma excessiva? A resposta não é linear, mas inclui a referida “vida malvada”, como diriam os Xutos e Pontapés.

Em condições normais, numa vida ativa, o nosso fígado acumula apenas as reservas de gordura mínimas necessárias para o seu funcionamento diário. As principais células do fígado, chamadas hepatócitos, queimam essa gordura para gerar a energia que aquele órgão necessita.

Quando temos uma alimentação muito rica em gordura e não a queimamos com atividade física, o nosso corpo guarda o excesso num tecido especializado chamado tecido adiposo. Quanto este atinge a capacidade máxima, a gordura começa a acumular-se noutros locais, incluindo o fígado.

Vamos agora juntar a esta mistura uma alimentação rica naqueles doces maravilhosos das montras das pastelarias, em refrigerantes, e muitos outros alimentos ricos em açúcar. Este acrescento extra de açúcar (sacarose, no termo mais científico) leva a um aumento exagerado de gordura no fígado.

E porquê? Porque a sacarose tem na sua composição frutose (exatamente, o açúcar da fruta), que, em excesso, tem consequências muito graves para o nosso organismo. O excesso de frutose é rapidamente armazenado no fígado sob a forma de gordura e pode alterar igualmente a nossa flora intestinal, levando os simpáticos microrganismos que usam o nosso intestino para seu condomínio privado, a produzir toxinas que depois viajam até ao fígado e podem causar mais dano.

O aumento de gordura no fígado citado em cima será maior quanto menos ativos formos, justamente porque não temos como queimar essa fonte de energia.

Temos aqui uma condição chamada esteatose, que, no seu início, é a fase benigna do chamado síndroma do fígado gordo. E nesta fase temos ainda a escolha de melhorar a nossa dieta e aumentar o exercício físico para reverter o processo.

Podemos, claro, pensar que isto tudo dá muito trabalho e continuar a nossa vida menos saudável. O nosso fígado, com muita gordura e ainda por cima a receber toxinas de outros locais, como o intestino, pode ficar inflamado, levando à chamada esteatohepatite, uma condição bem mais severa e ainda sem tratamento eficaz.

Podemos continuar a ignorar o problema, a ter os mesmos (maus) hábitos de vida, e lentamente o nosso fígado pode sofrer uma cirrose. Repare-se, falamos de fígado gordo não-alcoólico, já não é só o Tio que falámos acima que pode ter uma cirrose porque abusa do “copo”. Podemos sofrer de fígado cirrótico sem beber álcool, por estranho que pareça.

Se, mesmo assim, não houver juízo, uma consequência é um hepatocarcinoma (um tumor no fígado), cujo tratamento pode passar pela remoção de parte do fígado ou mesmo por um transplante.

Pois, espero que tenham percebido o problema agora; ainda para mais, métodos de diagnóstico que possam ajudar o médico a identificar o problema numa fase precoce não existem.

Para aqueles ainda mais incrédulos, notem que cerca de 30% da população portuguesa pode sofrer de fígado gordo não-alcoólico (um valor semelhante ao da União Europeia).

Mais preocupante ainda, cerca de 10% (!!) das crianças até aos 12 anos podem sofrer desta condição. Imaginem o que vai acontecer quando chegaram a adultos, se continuarem com um estilo de vida menos saudável.

Imaginem agora: uma pandemia que obriga todos a estarem mais tempo em casa, que tira as crianças das escolas, das suas atividades físicas e desportivas, das brincadeiras com os amigos até ao pôr do sol, e as cola a ecrãs de computador ou televisão o dia todo.

Imaginem que os adultos saem menos de casa e fazem (ainda) menos atividade física. Isto só tende a piorar e a uma epidemia transmissível vai seguir-se uma não-transmissível ainda pior.

Para os curiosos: o projeto Europeu FOIE GRAS, coordenado pelo Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e com vários parceiros internacionais, explora o porquê desta condição, identifica biomarcadores que permitam diagnosticar com mais exatidão a mesma, e desenvolve novos tratamentos.

Para além disso produz conteúdos fantásticos para a sociedade, incluindo duas bandas desenhadas: uma mais recente com o título “Um Fígado Equilibrado é Meio Caminho Andado!” e outra publicada no âmbito dos Jogos Europeus Universitários, que se realizaram em Coimbra em 2018.

Para mais informações sobre o fígado gordo, ver o projeto FOIE GRAS, clicando aqui.

Autor: Paulo J. Oliveira licenciou-se em Bioquímica em 1999 na Universidade de Coimbra, Portugal, onde também obteve o seu doutoramento em Biologia Celular.
Atualmente, é Investigador Principal no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e líder do laboratório MitoXT – Toxicologia e Terapêutica Experimental Mitocondrial.
Para além do seu trabalho de investigação, com mais de 215 publicações revistas por pares, Paulo Oliveira é Professor Assistente Convidado na Universidade de Coimbra, bem como noutras Universidades dentro e fora de Portugal.

 



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