Obrigado, Margarida Tengarrinha

Aos sortudos filhos da liberdade, como eu, é devida a Tengarrinha uma gratidão não inferior à que devemos às nossas mães biológicas

Há quem me conheça por ser, entre outras coisas, um orgulhoso algarvio e portimonense. Sim, amo muito a região e a cidade onde nasci e daqui não tenciono sair. Costumo até dizer que o maior gesto de amor e bairrismo que tive para com este território foi [ainda] não ter migrado, ciente de que a minha ida para Lisboa multiplicaria uma série de circunstâncias que poderiam conferir à minha carreira uma outra escala.

No entanto, tenho plena consciência de que este amor — como tantos outros amores — é sobretudo irracional, está amarrado a memórias que o tempo vai corroendo, a paisagens que o homem vai destruindo e a pessoas que a morte vai roubando.

Ninguém tem culpa da terra onde nasce. É uma lotaria cósmica, muitas vezes perfeita, outras tantas injusta. Apesar de tudo, eu tive sorte. Muita sorte.

As razões que me fazem ter orgulho em ser daqui sempre foram inúmeras, mas, quando encabeçadas por uma pessoa, era sempre alguém dentro do meu núcleo familiar ou de amigos.

Claro que há vários algarvios ilustres, cuja obra respeito e admiro: João de Deus, António Aleixo, Teixeira Gomes, só para nomear alguns. Mas as gerações e os contextos sociais que nos separam nunca foram suficientes para que me identificasse ao ponto de sentir genuíno orgulho em sermos conterrâneos.

Até conhecer a portimonense Margarida Tengarrinha. Primeiro, descomprometido, li uma entrevista sua. Depois vi um vídeo. Depois outro e mais um. Agora um documentário. Em seguida, outra entrevista. Em menos de nada já tinha comprado dois dos seus livros.

E enquanto consumia avidamente a sua história e o seu legado, pensava para mim que Tengarrinha talvez fosse a primeira mulher a caber tão à vontade nesse panteão imaginário dos ilustres algarvios. Foi uma bonita obsessão de Abril cujo ciclo só fechou no dia em que tive a honra de conhecê-la pessoalmente, há precisamente um ano.

Uma mulher que renegou o conforto e o estatuto que a sua posição social lhe oferecia para se colocar ao lado dos mais frágeis; que, na defesa desses ideais antifascistas, viveu na clandestinidade várias décadas, com dolorosas consequências pessoais: primeiro, o afastamento das filhas; depois, o assassinato do seu parceiro e pai das filhas José Dias Coelho, às mãos da PIDE — tragédia que inspirou José Afonso a compor A Morte Saiu À Rua —; e ainda o exílio.

Tengarrinha, também por ser mulher, personificou uma coragem que ainda não tinha visto em nenhum conterrâneo. Abdicou de uma maternidade tranquila, mas assombrada por mordaças, para poder ser mãe de um país livre.

Aos sortudos filhos da liberdade, como eu, é devida a Tengarrinha uma gratidão não inferior à que devemos às nossas mães biológicas. Ela saiu do Algarve, e do país, para que hoje eu possa ficar. Ela foi tantas outras pessoas para que hoje eu possa ser quem sou.

Depois do 25 de Abril, Tengarrinha foi ainda deputada da Assembleia da República, escritora, ilustradora e professora. A sua história inspirou-me e humildou-me. Foi uma espécie de orfandade que deixou de me existir, uma orfandade de referências e dos valores que defendo. Legitimou e reforçou inadvertidamente o orgulho que tenho em ser portimonense. Tal como eu, também ela amava o Algarve e Portimão; também ela não disfarçava a pronúncia (que confessou ser um dos maiores obstáculos da clandestinidade); e também ela, assim que pôde, não mais quis sair daqui.

À passagem dos 50 anos do 25 de Abril, saiba sempre a cidade que a viu nascer, e que hoje goza da liberdade pela qual tanto lutou — uma liberdade tão volátil —, honrar o seu nome, a sua luta e o seu legado.

Onde quer que esteja, o meu maior obrigado, Margarida Tengarrinha.

 

Autor: Dário Guerreiro, mais conhecido pelo seu nome artístico Môce dum Cabréste, é comediante

 

 

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