Agora pensemos

A democracia é um jogo perigoso. Mas continua a ser, de facto, o melhor que inventámos até hoje

Há coisa de três anos, a propósito das eleições presidenciais de 2021, no extinto blogue e think tank algarvio, Lugar ao Sul, tive oportunidade de escrever um texto intitulado “O protesto dos esquecidos”, que completava um outro, imediatamente anterior, que baptizei “Não tarda, “isso” vai acontecer aqui, ou o caudal ecológico na política”.

Em ambos, a reflexão centrava-se na ascensão do populismo como sintoma e não causa, face ao entretenimento das elites nacionais na gestão dos seus interesses e agendas sectárias, negligenciando os mínimos olímpicos que garantem à vida quotidiana das pessoas a necessária dignidade e esperança num futuro melhor.

A consequência? A quebra da confiança nos processos e instituições democráticas, a par de coisas como a ciência ou os factos, passando a valer, literalmente, tudo.

A partir desse ponto, aqueles que assistem à avaria permanente do elevador social, e se vêem inapelavelmente empurrados para as escadas – ou a resignar-se a não abandonar nunca o rés-do-chão – cedo ou tarde predispõem-se a aceitar a boleia com que um qualquer ascensorista de monta-cargas lhes acene, mesmo que… para lado nenhum.

Pior, os eternos habitantes do piso térreo da sociedade podem mesmo aceitar um dia a proposta, infinitamente mais atrevida, de um qualquer trolha político com uma carrinha de caixa aberta e umas ferramentas reluzentes, de demolição de todo o edifício democrático, para posterior (re)construção, agora ao gosto dos esquecidos.

Que, obviamente, nunca acontecerá, ficando depois todos a viver na rua, expostos às agruras de um Inverno político.

2021 representou, assim, um protesto, que as legislativas de 2022 acabaram por não consubstanciar na mesma medida. Ainda assim, nessas presidenciais, o candidato André Ventura ficou em segundo lugar na maioria dos distritos nacionais (Faro incluído), ainda que o peso relativo dos mesmos, na ponderação nacional, o tivessem remetido para um terceiro lugar na classificação geral.

Nessa altura, o mapa dos melhores resultados de Ventura coincidia, em grande medida, com a geografia das vulnerabilidades do território : desemprego, envelhecimento, precariedade social e dependência, bem como com a distância aos serviços de interesse geral, nomeadamente as actividades, comerciais ou não, sujeitas a obrigações específicas de serviço público e/ou de soberania (serviços de saúde, escolaridade obrigatória, serviços de emprego e formação, habitação social, infantários, cuidados de longa duração, serviços de assistência social, transportes públicos, segurança, justiça, energia, comunicações, etc.). Os serviços mínimos da tal dignidade, se quisermos.

Esta caracterização, ainda que parcial, assenta como uma luva nas disparidades e no défice de coesão territorial de Portugal, naturalmente reflectido na sua população.

Podemos acreditar muito em coincidências. Ou podemos, perante factos que nos suscitam preocupação, tentar encontrar as suas causas, em vez de nos entretermos a maldizer a espuma dos sintomas.

O crescimento do populismo, que nas eleições do passado Domingo se consolidou de forma inequívoca, representa uma comunicação às oligarquias por parte das bases, dos esquecidos, dos que estão nos extremos desfavorecidos das assimetrias, desesperados que estão perante o falhanço de todos os outros canais e o ensurdecedor silêncio em resposta aos seus problemas, a par da total degradação ética do regime.

Foi precisamente isto que emergiu da sombra da abstenção, fazendo tanta gente arrepender-se de a lamentar no passado.

Respondendo ao esvaziamento moral da política, ao distanciamento entre os interesses dos partidos e os interesses das pessoas, com a sensação de que a voz dos cidadãos é ignorada, de que tudo se decide a outro nível, onde se olvidam os desfavorecidos, onde se agrupam os desencantados e os esquecidos pelo sistema que diz não deixar ninguém para trás.

O caudal ecológico é um conceito aplicado à gestão de cursos de água, regra geral perante a perspectiva do seu represamento num determinado ponto, que pretende estimar a percentagem do caudal médio dessa linha de água que deve continuar a fluir livremente, de forma a garantir o abastecimento que salvaguarde a subsistência e protecção de espécies e ecossistemas a jusante. Se quisermos, qual o fio de água que deve passar na torneira para que se possa matar minimamente a sede.

Na política, tardamos a aplicar o mesmo conceito.

Os populismos são difíceis de tratar (inevitavelmente, alguém trará à baila o paradoxo da tolerância, sempre importante nesta reflexão), pois a mistura explosiva das “verdades” que galvanizam as bases com as omissões que as vão tramar no futuro, é difícil de desarmar.

A única forma eficaz é retirar-lhe qualquer fundo de verdade, eliminando qualquer réstia de legitimidade. Ou seja, como boa parte das desculpas, evita-se na origem, mais do que se resolve. Porque, voltamos ao mesmo, têm que ser compreendidos e atacados nas suas causas, e não apenas nos sintomas.

A democracia é um jogo perigoso. Mas continua a ser, de facto, o melhor que inventámos até hoje.

Agora, o status quo é livre de fazer o que faz melhor, desvalorizando tal facto, menorizando os votantes de que discorda. É livre de os apelidar de estúpidos, fascistas, ignorantes, tudo e mais alguma coisa – incluindo sugerir, num espírito profundamente “democrático”, que nem todos deveriam poder votar, quase ao estilo das centúrias eleitorais romanas.

É livre de manter as mesmas práticas e os mesmos protagonistas, na alegre convicção de que o erro mora sempre nos outros, seguindo com o doce optimismo de Pangloss: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.

Ou pode optar por experimentar algo diferente, e escutar.

Caso contrário, maiores e piores surpresas podem estar à espreita.

 

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

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