Sociedade em rede e democracia política

Só acederemos aos benefícios da sociedade em rede quando as infraestruturas digitais estiverem distribuídas pelo território

Uma das facetas mais relevantes da transição digital é a emergência das redes, muito diversas – centralizadas, descentralizadas e distribuídas – e a imersão da política nessas redes como consequência da sua progressiva desintermediação institucional, técnica e administrativa.

Se quisermos, assistiremos, de certo modo, à dessacralização da política e sua imersão/transfiguração no universo das redes, mais verticalizadas ou mais autónomas, em linha com as novidades que chegam da sociedade da informação e do conhecimento.

Além disso, nesta sociedade da informação e do conhecimento emergirá uma nova teoria do agir comunicacional, uma nova relação entre o ator e o sistema, onde, em seu próprio benefício, a autolimitação da política servirá para a proteger da sua própria mediania e trivialidade. Assim, se tiver essa clarividência, a política procurará descentralizar uma parte das suas atividades nos territórios em rede, nos atores-rede e na produção de bens comuns obtidos em coprodução e cogestão.

Vejamos algumas características desta nova relação entre o ator e o sistema no seio da sociedade em rede e de uma democracia política mais colaborativa.

Em primeiro lugar, o capitalismo pós-industrial compreendeu muito cedo esta mutação radical da transição digital e transmutou-se, ele próprio, em capitalismo cognitivo e criativo, (Boutang, 2008).

Neste capitalismo cognitivo, os ambientes simulados e virtuais onde, pretensamente, existe mais poder lateral do que vertical, são terrenos onde a produtividade do trabalho já não se mede tanto por hierarquias, cadeias de comando e regulamentos disciplinares, mas, antes, por inteligência partilhada e contribuições criativas para o trabalho coletivo. De certa forma, é um regresso a uma ética do trabalho comunitário e a uma inteligência colaborativa interpares.

Neste sentido, imagine-se, por exemplo, o potencial colaborativo e a inteligência coletiva que habitam as redes de cooperação e extensão empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de inovação social, as redes amigas do ambiente ou os vários territórios-rede da 2ª ruralidade, entre muitas outras.

Em segundo lugar, é no contexto da sociedade da informação e do conhecimento que se fala, também, de um regresso à ética dos bens comuns (Coriat, 2015), não apenas dos comuns materiais, mas, sobretudo, dos comuns do conhecimento, da cultura e da solidariedade social à boleia das tecnologias e plataformas digitais.

Na interação entre a economia do conhecimento e a economia social e solidária e neste regresso aos bens comuns devem ser realçadas as chamadas propriedades emergentes da ética social e colaborativa, por exemplo: a prioridade ao acesso e ao serviço em vez da propriedade e da posse, a prioridade aos valores de uso e à utilidade coletiva, a regulação efetiva dos custos de transação face aos grandes intermediários, a apologia dos sistemas agroalimentares de proximidade e os circuitos curtos, a provisão de serviços ambulatórios e itinerantes aos grupos mais desprotegidos, a promoção dos consumos responsáveis e partilhados e o combate ao desperdício, a apologia dos bens de mérito que asseguram a sustentabilidade dos recursos, que socializam as relações e promovem a eficácia das instituições e das regras, a abertura aos modelos de negócio colaborativo, o financiamento participativo e a economia das plataformas colaborativas como instrumento privilegiado de conhecimento.

Todas estas propriedades emergentes alimentam a democracia política na sua vertente mais colaborativa e associativa.

Em terceiro lugar, esta aceção ampla de plataformas colaborativas e bens comuns abre uma janela de oportunidade para levar à prática a teoria geral dos territórios-rede (Covas e Covas, 2014) onde o ator-rede e a curadoria territorial desempenham um papel principal, muito para lá da simples administração corporativa, municipal ou intermunicipal.

Existem já inegáveis progressos colaborativos e inteligência coletiva muito diversificada em ambientes empresariais modificados e simulados, em espaços comuns de criação artística e inovação social e em territórios-rede do mundo rural, em resultado da organização de comunidades online, redes e plataformas colaborativas e associativas. Todos eles desenvolvem formas de inteligência coletiva territorial, aplicações e funcionalidades muito diversas e curadorias muito criativas que importa aprofundar e monitorizar.

Nota Final

O pluralismo democrático nas suas várias dimensões – representativa, participativa, associativa e colaborativa – será muito valorizado pelos vários acessos, canais e espaços públicos abertos pela sociedade em rede. Todavia, todas estas facilidades da sociedade em rede não se fazem por decreto e sem esforço por parte dos cidadãos.

Em síntese, só acederemos aos benefícios da sociedade em rede quando as infraestruturas digitais estiverem distribuídas pelo território, quando a literacia digital estiver generalizada e permitir o lançamento de muitas plataformas distribuídas interpares, só acederemos mais facilmente à sociedade do conhecimento quando as ciências e as tecnologias, as artes e a cultura derem as mãos e permitirem uma explosão de criatividade no coração das comunidades locais inteligentes, finalmente, só acederemos à democracia política em plenitude quando a representação, a associação e a colaboração abrirem a porta à ética do cuidado e à utilidade social do respeito, numa associação virtuosa entre o governo dos comuns e os bens de mérito amigos do ambiente.

Quando, em 1977, Crozier e Friedberg escreveram o clássico da sociologia das organizações O ator e o sistema acerca das relações de cooperação e os conflitos de poder no âmbito da ação coletiva, não poderiam imaginar como as suas reflexões são, ainda hoje, uma base essencial para entender as relações no interior da sociedade da informação e do conhecimento.

Recomendo uma revisitação de leitura.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

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