Alcoutim, uma área crítica da baixa densidade

Alcoutim só será uma marca territorial reconhecida se privilegiar e for exemplar, em todas as circunstâncias, com os seus cidadãos mais desprotegidos, os mais idosos e os mais jovens

No passado dia 19 de maio realizaram-se em Alcoutim mais umas Jornadas do Mundo Rural. Ficam aqui algumas breves reflexões que resumem a intervenção que fiz na ocasião sobre o tema das áreas de baixa densidade.

Um histórico bem conhecido

Há muitas décadas que Alcoutim e o Nordeste Algarvio perdem continuadamente população residente. Se a esse facto adicionarmos o impacto severo e extremo das alterações climáticas podemos afirmar que Alcoutim vive há muito um círculo vicioso de desertificação e despovoamento.

Hoje, o concelho de Alcoutim, com 575 Km2 e 2521 habitantes, tem uma densidade de 4,4hab/Km2, a mais baixa do país (Pordata 2021) e cerca de 2/3 da sua população tem mais de 65 anos.

As causas deste círculo vicioso são bem conhecidas e remontam ao Grande Esquecimento de toda a região interior e fronteiriça que acabou por criar um país dual, desigual e discriminatório, congestionado no litoral e desertificado no interior, cujas consequências estão hoje à vista de todos.

Temos, de um lado, um ciclo longo de desertificação e despovoamento e, de outro, ciclos mais curtos de emergência, mitigação e adaptação, cujos resultados minguados não chegam para inverter as severas restrições daquele ciclo longo.

Em 2023, estamos, verdadeiramente, num impasse. Mais uma vez, todos aguardam a implementação do PT 2030 e do POCPT 2027, e, agora, também, do PRR. Entretanto, o Nordeste Algarvio e o Baixo Guadiana têm cada vez menos população, cada vez mais idosa, solos mais pobres, recursos hídricos muito reduzidos e risco elevado de incêndios florestais, para além de uma representação política quase nula.

De resto, a sub-região é vítima indireta do modelo algarvio de monoindústria turística intensiva, de condições severas em relação ao custo de oportunidade dos investimentos, das baixas economias de rede e aglomeração existentes e de uma administração do território que está manifestamente desajustada à natureza dos seus problemas.

Estratégias de desenvolvimento territorial 2030

Não obstante as dificuldades apontadas, vivemos, agora, uma década extraordinária no que diz respeito ao complexo de programas e medidas de política, bem como, aos meios financeiros envolvidos.

As Grandes Transições desta década – climática, energética, ecológica, alimentar, demográfica, migratória, digital, securitária – pelos impactos que proporcionam levantam uma grande questão, a saber: será que o complexo de programas e medidas de política do PRR, PT 2030, POCTEP e outros programas europeus, pode desencadear uma mudança paradigmática nesta sub-região e, assim, inverter o círculo vicioso em círculo virtuoso de desenvolvimento territorial?

Vejamos sumariamente as estratégias ou abordagens de desenvolvimento territorial que se apresentam:

1) Uma abordagem convencional ou conservadora de natureza meramente burocrático-administrativa: programas operacionais, avisos de concurso, candidaturas que, no final, se esgotam em medidas de emergência, mitigação e adaptação, ou seja, tudo como dantes;

2) Uma abordagem conservacionista a uma área crítica de paisagem protegida: trata-se de negociar um programa especial de conservação no quadro do pacto ecológico europeu para uma região biogeográfica em risco elevado de desertificação e despovoamento;

3) Uma abordagem integrada de desenvolvimento territorial para a sub-região do sotavento algarvio: trata-se de fazer um exercício de programação e planeamento de dez bases programáticas para toda a região do sotavento algarvio no âmbito de um contrato de desenvolvimento territorial;

4) Uma abordagem inteligente de smartificação de todo o território municipal e sub-regional: trata-se de levar tão longe quanto possível a digitalização do concelho de Alcoutim no âmbito de um programa específico de especialização inteligente;

5) Uma abordagem integrada e compreensiva de desenvolvimento territorial, contratualmente estabelecida, em três escalas de intervenção interligadas, o concelho de Alcoutim, o Nordeste Algarvio e o Baixo Guadiana e o sotavento algarvio: trata-se de traçar um complexo de medidas de prevenção (1), de urgência (2), de mitigação e adaptação (3), de especialização inteligente (4), de reforma estrutural (5), de acordo com as bases programáticas inscritas no contrato de desenvolvimento.

As bases programáticas de desenvolvimento territorial

O Nordeste Algarvio e o Baixo Guadiana nunca sairão do seu círculo vicioso de desenvolvimento se não forem capazes de aplicar uma massa crítica de medidas, a uma escala apropriada e durante pelo menos uma década e não dispuserem de uma administração dedicada que tenha autonomia contratual para executar no terreno todas essas medidas. Esse complexo de medidas e respetivos meios financeiros pode ser deduzido de um conjunto bem articulado de dez bases programáticas que passo a enunciar:

1) Base nº 1, as sementes perdidas: trata-se de cuidar da biodiversidade, solos (banco de solos), coberto vegetal, sistema agroalimentar local (SAL) e agricultura acompanhada pela comunidade (AAC);

2) Base nº2, o mix energético: a composição de energias renováveis, a formação de comunidades locais de energia, a eficiência energética das habitações;

3) Base nº3, o bosquete multifuncional: a formação do mosaico agrossilvopastoril, a função e o papel da agrocinegética;

4) Base nº4, a mobilidade suave: a criação de serviços ambulatórios de proximidade entre todos os lugares e freguesias do concelho;

5) Base nº5, o envelhecimento ativo: a prioridade a um programa de cuidados continuados, a formação de uma aldeia sénior, um programa de atividades para o envelhecimento ativo, a formação de um banco de voluntariado;

6) Base nº6, microcrédito e financiamento participativo: um programa de apoio a toda a população necessitada do concelho, se quisermos, uma espécie de rendimento mínimo garantido que pode ser assegurado através de operações de financiamento participativo;

7) Base nº 7, serviços de economia circular: um programa de recuperação e tratamento de resíduos, domésticos, agrícolas, florestais, industriais que pode ser usado como fonte de rendimento para a população do concelho e cujas soluções de reutilização podem ser exemplares;

8) Base nº 8, serviços agroturísticos e animação socioambiental: a criação de um banco de alojamento local pode proporcionar mais uma fonte de rendimento à população do concelho e animar as pequenas lojas do comércio e circuitos locais; o turismo acessível deve ser objeto de uma animação especial;

9) Base nº 9, complexo de serviços educativos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos: quintas pedagógicas, educação especial, residências de trabalho voluntário, residências artísticas e de investigação, estadia de nómadas digitais, etc;

10) Base nº10, serviços histórico-patrimoniais e culturais: reinventar os sinais distintivos territoriais do concelho, recriar novos roteiros na região e circuitos de visitação, bem como dois ou três eventos, desenhar uma estratégia de marketing territorial e criar duas ou três marcas para o concelho, a sub-região do Baixo Guadiana e o sotavento algarvio.

Notas Finais

A terminar, quatro breves notas finais. A primeira para sublinhar a missão fundamental, num concelho sénior, de uma loja do cidadão multifreguesias, ou seja, de um balcão único que simplifique as deslocações dos mais idosos e, em todos os casos, que reforce o papel das juntas de freguesia no apoio e interação com a população.

Uma segunda nota para sublinhar que o concelho de Alcoutim só será uma marca territorial reconhecida se privilegiar e for exemplar, em todas as circunstâncias, com os seus cidadãos mais desprotegidos, os mais idosos e os mais jovens; só assim criará uma espécie de geografia sentimental junto de todos aqueles que residem e visitam o concelho.

Uma terceira nota para sublinhar a importância da cooperação territorial com os municípios vizinhos, portugueses e espanhóis, pois todos eles padecem das mesmas maleitas de desertificação e despovoamento; não devemos subestimar este recurso da cooperação, pois ele está bastante acessível e pode ser muito útil politicamente.

Finalmente, uma área de baixa densidade exige uma administração dedicada ou estrutura de missão que seja capaz de agir como ator-rede da sub-região e cumprir no terreno as principais recomendações da economia das redes, a saber, a multiescalaridade das intervenções, a conectividade/interatividade digital, a interoperabilidade das medidas de política, as hiperligações fundamentais entre economia produtiva e economia criativa.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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