O instante contemporâneo e o tempo lento das artes

O pensamento de Paul Virilio é, quase sempre, reportado aos tempos que o tempo tem, desde o tempo lento da arte e da cultura que nos salva do princípio da realidade

Se o século XX foi o século da conquista do ar e do espaço, o século XXI deveria questionar-se, não apenas acerca das nanotecnologias, mas, também, sobre as nanocronologias, isto é, sobre o tempo infinitesimal, sobre a conquista do infinitamente pequeno do tempo.
Paul Virilio

O filósofo, arquiteto e urbanista Paul Virilio faleceu em 2018, como ele diria, numa verdadeira corrida contra o tempo. Na base das suas reflexões, esteve sempre a triangulação entre velocidade, tecnologia e política. A dromologia é, segundo ele, uma área de estudo interdisciplinar acerca da velocidade e do modo como ela muda a perceção do tempo e do espaço e, portanto, a natureza e interpretação dos fenómenos políticos, sociais, económicos e culturais.

O pensamento de Paul Virilio é, quase sempre, reportado aos tempos que o tempo tem, desde o tempo lento da arte e da cultura que nos salva do princípio da realidade, como diria Nietzsche, até ao tempo instantâneo, infinitamente pequeno do ciberespaço, essa colónia virtual para onde muitos de nós estão a emigrar por via da digitalização da nossa existência.

Vivemos, assim, na era da instantaneidade contemporânea e do infinitamente pequeno numa verdadeira corrida contra o tempo. Com efeito, a aceleração do real e da realidade, em que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder foi delegado nos mestres algoritmos, transporta-nos para um tempo instantâneo, um tempo inabitável, um tempo infra, o tempo da irresponsabilidade.

Com uma agravante, a velocidade das transações assegura a hegemonia da especulação sobre as necessidades reais da economia e a sua rapidez excede claramente o tempo da política, tornando o Estado-administração uma figura cada vez mais reativa e uma variável endógena do sistema corporativo dominante.

Ora, a nossa emigração para essa colónia virtual a que chamamos ciberespaço acaba por favorecer o chamado buraco negro da extraterritorialidade, essa propriedade estrutural do capitalismo multinacional dos grandes conglomerados tecnológicos e digitais, o que, na prática, coloca em causa a soberania e a jurisdição territorial do Estado-nação.

Por outro lado, nesta era da instantaneidade contemporânea, a propaganda e a idolatria do progresso procuram dissimular os acidentes do conhecimento, classificados como meros incidentes, assim como a face escondida da riqueza e do poder, enquanto a sincronização dos sistemas automáticos e a velocidade de propagação dos seus efeitos nos colocam à beira do desastre integral.

Bastaria lembrar, para tal, o risco de acidente potencial contido nas inúmeras bombas à nossa disposição: nuclear, biológica, genética, energética, química, cibernética. E nesta fuga para o sexto continente só nos resta a sincronização das emoções experimentadas na colónia virtual, uma espécie de comunismo dos afetos, uma espécie de nova tirania dos sentimentos.

Porém, e apesar de estarmos a migrar para o ciberespaço, ainda não é o fim da geografia. É certo, a globalização gera um sentimento de claustrofobia da humanidade, a Terra é muito pequena para a revolução das telecomunicações, mas nós também continuamos a viver de muitas e variadas distâncias.

Experimentamos, por vezes, um sentimento de encarceramento. É aqui que entram as artes e a cultura que introduzem distância e duração, tempo longo, em especial, o teatro e a dança, as duas artes do corpo por excelência e duas linhas principais de resistência à virtualização.

Todavia, se pensarmos na arte computacional e digital e nos conteúdos que ela produz, podemos concluir que a tecnologia se prepara para cruzar o caminho da arte e da cultura tornando-as mais exuberantes e mais efémeras, digamos, mais arte pública destinada a ser consumida no espaço público.

Talvez por isso possamos dizer que, no plano cultural, vivemos uma espécie de desconstrução da cultura geral devido à alucinação vertiginosa e à loucura da informação, que nos coloca, qual dilema do prisioneiro, nas teias do imediatismo e do mediatismo, uma espécie de campo de batalha onde o verdadeiro e o falso se confundem e nos roubam a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos. Por isso, siga o nosso conselho e faça da sua vida uma obra de arte, tanto quanto possível.

Em síntese, o instantâneo e o imediato, eis os conceitos do tempo atual e dos nossos modos de vida. Os transportes, as transmissões, as tecnologias, fizeram encolher o mundo em que vivemos, que se tornou plano, e onde estamos constantemente a ser observados. Neste campo imenso de observação e vigilância, emergem os não-lugares, a identidade dá lugar à rastreabilidade, torno-me um estranho, a minha liberdade mede-se por um simples desvio-padrão.

A tudo isto, soma-se a finitude da vida, a iminência de uma bomba – climática, atómica, informática, genética, química – e os acidentes sistémicos que ninguém controla. O risco de uma ciência sem consciência, que não tem em devida conta os seus efeitos externos negativos, é bem real, as pegadas, ecológica, informática, nuclear, genética, química, estão aí para o provar.

Esperemos, por isso, que uma certa arrogância tecnocientífica possa ceder e estar em linha com a dura realidade da justiça ambiental e social ou a falta dela.

Nota Final

Na linha de pensamento de Paul Virilio, a velocidade é uma espécie de língua estrangeira e a Terra é muito pequena para tal velocidade, razão pela qual a economia e a ecologia terão de se respeitar mutuamente.

Não serve dizer que a história se transferiu da Terra para o Céu, que os satélites traçam o futuro, que tudo se propaga através de ondas siderais, quando no dia a dia se sucedem os incidentes e acidentes e o risco de colisão é iminente.

A razão para tal é simples, não respeitamos os tempos que tempo tem, desde o tempo lento da arte e da cultura até ao tempo infinitesimal dos instantes do quotidiano. De acordo com a sua dromologia, para cada velocidade uma realidade.

Em cada velocidade e em cada aceleração uma linha vermelha e o risco iminente de violação dos limites do tempo humano.

No final, cada um de nós é, também, um produto de múltiplas velocidades, cada uma delas abrindo para uma realidade diferente da nossa vida. Já não é mau, se formos bem-aconselhados e respeitarmos os limites de velocidade.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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