Afinal, o que é a poesia?

A poesia tem essa coisa de poder ser muita coisa, mas, sobretudo, – romper com tudo e querer-se indefinida

A poesia é, segundo o Priberam, a arte de compor ou escrever versos, geralmente com associações harmoniosas de palavras, ritmos e imagens.

Os meus avôs, os dois que já partiram para um sítio que desconheço, eram ambos analfabetos e os maiores poetas que alguma vez conheci. Encontrava, e continuo a encontrar, em cada lembrança que tenho deles, poesia: nas ações, nos seus gestos involuntários, nas palavras, na forma de estar na vida, em todas as memórias que vincaram em mim, e eles nunca souberam ler ou escrever.

A poesia tem essa coisa de poder ser muita coisa, mas, sobretudo, romper com tudo e querer-se indefinida.

Encontro muitas vezes a definição para poesia na liberdade que sai do corpo de cada um. A liberdade para ser exatamente aquilo que cada um quer, acreditar em si, num todo.

Para mim, poesia é também a forma como a minha avó me ensina a fazer um xarope para a tosse com aquilo que a terra dá na altura certa ou as melhores migas (algarvias!) na frigideira de ferro (já) aderente, mesmo sabendo que eu nunca as vou conseguir fazer com o mesmo sabor, cor e forma. Mas a culinária misturada com a voz de quem nos criou, é, talvez, das melhores poesias que podemos ouvir e depois saborear.

Para mim, poesia é também quem queremos e quem nos quer, em volta de uma mesa; o desassossego bom e mau que as coisas nos criam no corpo e na mente, como nascer sabendo que a vida não é para sempre e mesmo assim deixá-la para viver depois, mas também os dias em que entendemos e vivemos – de viver mesmo – o ócio, o não fazer nada, o sentir o vagar que pode haver quando se é humano.

Para não falar que, para mim, a poesia são os amores todos que encontramos durante toda a vida, aqueles que partem, aqueles que ficam, aqueles que se transformam, a nossa família, a que existe antes de nós e a que se constrói. Nós mesmos.

Acredito que Fernando Pessoa se fragmentou porque entendeu que não havia espaço para se ser poesia numa só pessoa. Por isso, criou Ricardo Reis; Alberto Caeiro; Bernardo Soares; Álvaro de Campos, enfim, mais de cinquenta vidas dentro da sua – o que ele fez, não é poesia?

Álvaro de Campos foi pensado e vivido no sul do país, em Tavira.

Deu voz à vida moderna, ao cansaço, à ansiedade, à sensação de estar perdido, mas também ao alívio “de não procurar ter filosofia nenhuma, mas com alma”, que Alberto Caeiro lhe ensinou num dos encontros, tal como o meu avô me ensinou todas as vezes que passava o Verão com ele, que estar à mesa é um ato de calma, para apreciar a comida e a companhia dos outros.

Assim como Álvaro de Campos, eu sei isso tudo, mas, às vezes, o tempo corre pressa, e aí vem a poesia de estar vivo para acompanhar um tempo que não espera por nós.

Quando soube que, na cidade onde Álvaro de Campos pensou sobre tanta coisa, se continuava a celebrar o seu aniversário, e durante um mês e meio todas as associações e gerações de uma cidade se uniam para celebrar isso mesmo, com a poesia que cada um traz em si, percebi que, mesmo depois de morto se pode continuar a ensinar qualquer coisa, tal como os meus avôs – e, sim, é possível um morto ser poema!

E vejam só, A Festa dos Anos de Álvaro de Campos começa exatamente com uma mesa – “A mesa posta com mais copos” –, o que me leva a querer que, se tiver mesmo de definir o que é, afinal, poesia, diria que é uma mesa. Porque seja ela grande, pequena, oval, redonda, quadrada, retangular, simétrica, cheia de falhas, remendada, é exatamente como a poesia – não interessa o que é, mas sim para que serve.

 

Autora: Patrícia Nogueira – Nascida em Tavira e criada entre a serra e o mar.
Licenciou-se em Ciências da Comunicação na Universidade de Lisboa e tem uma Pós-Graduação em Branding e Marketing de Conteúdo, na Escola Superior de Comunicação Social.
O seu caminho tem sido sempre nas palavras. Atualmente, é criadora de conteúdos e copywriter, colaborando com agências de comunicação, e ainda jornalista na plataforma de jornalismo Gerador.
Participa na organização da Festa dos Anos de Álvaro de Campos e, no mesmo âmbito, é a voz do programa “Momentos de Poesia”, na Rádio Gilão.
Criou as noites de Poesia Inquieta e é viajante a tempo inteiro.

 

Autor da ilustração: Vinicius Almada foi admitido nos cursos de Ciências Sociais na Universidade Complutense e de Administração na Universidade Rey Joan Carlos de Madrid, mas decidiu dedicar-se às artes visuais.
Estudou fotografia digital no Instituto del Cine em Madrid e depois especializou-se em After Effects e Mapeamento na Escola d’Informatica y Disseny em Barcelona.
Trabalhou em Granada, Espanha, sob o nome StrbVJ, onde desenvolveu o projeto YuRP: composições visuais baseadas em imagens icônicas da arte pictórica ou escultórica europeia, criadas para acompanhar peças de música pop, eletrônica e experimental em sessões de VJ.
Diretor de fotografia para filmes de curta-metragem, videoarte e documentários.
Em Tavira, onde vive atualmente, criou essas composições em colaboração com o guitarrista Josué Nunes para o espetáculo Dueto para Guitarra Clássica e Composições Visuais.
O seu trabalho tem sido visto no Algarve em vários locais, como o Centro Ciência Viva Tavira, a Casa Álvaro de Campos, a Casa das Artes de Tavira, o Café de Pessoa, o Almariado, a Casa dos Condes de Alcoutim, a Biblioteca Municipal de Olhão, o Consulado do Brasil em Faro, e a partir de Agosto, no Museu Municipal de Faro.
Desde 2016, é responsável pelo design gráfico e de comunicação do evento anual Festa dos Anos de Álvaro de Campos, cujo logotipo desenhou em 2015.

 

 



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