A transgressão digital, o passageiro clandestino e o caçador furtivo

Não podemos permitir que os visados ou as vítimas sejam os mesmos de sempre

A pandemia da covid 19 acelerou a transição digital, o vírus e o hacker informáticos são os nossos passageiros clandestinos, a guerra, entretanto, converteu-os numa espécie de caçadores furtivos, ao mesmo tempo que se alterou substancialmente a posição relativa dos atores em presença devido à crescente desmaterialização da relação entre o ator e o sistema.

Nessas estradas da informação cada vez mais velozes, esses agentes sombrios movem-se à vontade, mais em baixo nos subterrâneos da darknet ou mais em cima na computação em nuvem. Pelo meio, a engenharia informática das plataformas digitais mais variadas, abrem as portas por onde penetra o passageiro clandestino e o caçador furtivo, tirando partido de uma enorme iliteracia digital da população em geral.

É certo, os modelos de negócio digital não estão ainda bem ajustados, a cobertura digital do território não é satisfatória, as dificuldades de acesso e a iliteracia são evidentes, a regulação da atividade digital está em aberto, as questões de privacidade e segurança não estão resolvidas, as cadeias de valor e os assuntos fiscais suscitam muitas dúvidas, a pirataria informática, a guerra cibernética e o ódio das bolhas das redes sociais vieram para ficar.

Entretanto, na transição digital prevalecem a hipervelocidade e o risco sistémico e, assim, os efeitos externos são inevitáveis, em benefício do risco moral, do passageiro clandestino e do caçador furtivo. A transição e a transgressão digitais caminham a par.

À nossa frente estão a 5ª e a 6ª gerações de comunicações móveis. Na história das grandes transformações este é um sinal da última inovação disruptiva. A 1ª inovação disruptiva teve a ver com a máquina a vapor, a mecânica e a ferrovia que nos levaram até à 1ª revolução industrial. A 2ª inovação disruptiva teve a ver com a eletricidade e a produção industrial em massa.

A 3ª inovação disruptiva teve a ver com a eletrónica, os computadores e a internet. A 4ª inovação disruptiva tem a ver com a conectividade, a inteligência artificial e a computação quântica e periférica, ou seja, com a máxima interoperabilidade, interdependência e hipervelocidade e a produção de muitos efeitos colaterais, interações fortuitas e acidentais, com um impacto gigantesco, por exemplo, no funcionamento das cidades do futuro.

Acresce que a economia digital da 4ª inovação disruptiva pode colocar-nos perante uma dolorosa bifurcação, porque o risco existe e os sinais já aí estão. No plano da macropolítica podemos estar perante a iminência de uma guerra fria digital entre os EUA e a CHINA, a julgar pelas sucessivas retaliações em redor da rede 5G.

Essa bifurcação poderia, no limite, conduzir-nos à formação de internet nacionais e, mesmo, a uma espécie de nova geração de acordos de limitação de armas de destruição cibernéticas. Depois das armas nucleares, químicas e biológicas, seria agora a vez das armas cibernéticas e, desta vez, com um enfoque muito em especial nos campos e efeitos de radiação eletromagnética.

Por outro lado, no plano da micropolítica, iremos assistir à formação e proliferação de territórios-plataforma, comunidades inteligentes de âmbito geográfico muito variado e atores-rede administrando uma nova geração de bens e serviços comuns no quadro de redes descentralizadas.

Mas, também, a formação de muitas bolhas mais ou menos tribais nas redes sociais, logo, mais efeitos internos e externos, um risco moral elevado e a emergência de outros tantos passageiros clandestinos e caçadores furtivos.

A economia da transição digital altera profundamente a relação entre o ator e o sistema, mas, também, a natureza dos conflitos no interior das cadeias de valor onde, doravante, os fatores imateriais crescem de importância numa economia mais desmaterializada e de prestação de serviços. Com a guerra e os efeitos das sanções, o risco de colisão é enorme, a crise das cadeias logísticas é evidente e, logo, também, os efeitos colaterais e não intencionais, os comportamentos furtivos de risco moral e passageiro clandestino.

Neste contexto, a economia da transição digital e das cadeias de valor deve acautelar os seguintes aspetos:

– Melhorar a sinergia de processos e procedimentos e reduzir a entropia das cadeias,
– Em aplicação da política de 4R, reduzir a linearidade e melhorar a circularidade,
– Melhorar a regulação entre operadores e reduzir a competição agressiva,
– Reduzir o consumo de combustíveis fósseis e aumentar o de recursos renováveis,
– Melhorar a qualidade da conectividade geral e reduzir as interações fortuitas e furtivas,
– Melhorar via negociação a distribuição dos rendimentos no interior das cadeias de valor,
– Melhorar a gestão do risco pela segurança informática,
– Reduzir a precariedade laboral e melhorar as condições de contratação e regulação.

A economia digital da 5ª e 6ª gerações introduz no sistema económico uma hipervelocidade e elevada conectividade e este sobreaquecimento faz emergir uma nova geração de efeitos externos onde se contam os danos colaterais, as interações fortuitas, os comportamentos furtivos e as descobertas acidentais, ou seja, devemos estar alertas para não permitir que a desmaterialização e a virtualização acabem por ocultar e dissimular uma parte substancial das externalidades criadas, em especial, as negativas, onde se destaca o grupo dos comportamentos furtivos, em particular, o moral hazard ou risco moral, o passageiro clandestino e o caçador furtivo.

Nota Final

No final, se quisermos evitar as transgressões digitais, estes riscos sistémicos e comportamentos furtivos requerem um posto de observação e monitorização permanente e essa é a razão pela qual toda a teoria dos efeitos externos precisa de ser revista, sob pena de a convencional privatização do benefício e socialização do prejuízo se transformar num crime de lesa-pátria recorrente.

Não podemos permitir que os visados ou as vítimas sejam os mesmos de sempre. O consumidor, por via da inflação ou de preços de monopólio ou quase-monopólio, de concertação de preços e abusos de posição dominante.

O contribuinte, por via do planeamento fiscal agressivo, da evasão fiscal ou dos benefícios fiscais das grandes companhias tecnológicas. O trabalhador, por via da desregulação e desregulamentação do trabalho digital e da contratação coletiva.

O cidadão, por via da hipervigilância, da violação da sua privacidade, da pirataria informática e da ação dos algoritmos na conformação dos nossos comportamentos nos chamados mercados biface onde espreitam os snipers digitais. E assim não vale.

 

 

 



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