A cultura é para ser comida pelas vacas? Com o Lavrar o Mar, sim!

Um Teatro de Palha foi construído no vale da Vilarinha. Depois de três semanas intensas de espetáculos, esta escultura efémera voltará ao seu formato de fardos de palha

Giacomo Scalisi, Armindo Branco e Pedro Quintela – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

«Nunca pensei em fazer uma coisa destas, eu já não tenho vida para isto, é chato de fazer…mas está feito! Tenho que trazer o meu pessoal para ver o enredo que tive aqui». É assim que Armindo Vieira Branco, de «71, quase 72 anos», limpando o suor da testa, comenta o seu trabalho de construção do Teatro de Palha, que, a partir de sexta-feira, 1 de Julho, no vale da Vilarinha, ali para os lados da Carrapateira, vai começar a receber um ciclo de espetáculos do «Lavrar o Mar».

Giacomo Scalisi que, com Madalena Victorino, é o responsável pela programação do «Lavrar o Mar», explica que «a melhor coisa que nos aconteceu foi encontrar o senhor Armindo, que é uma máquina. Sem ele, não sei como conseguiríamos construir isto em tão pouco tempo e tão bem».

O projeto do Teatro de Palha – que é, literalmente, um espaço para espetáculos, com palco, bancadas, camarins, receção e bar, construído com fardos de palha – foi concebido pelo arquiteto Pedro Quintela. Mas cada um dos 300 fardos grandes de palha pesa cerca de 300 quilos e à mão não dava para construir a estrutura. Era preciso alguém que soubesse manobrar uma máquina como se fosse fácil fazê-lo. E esse “alguém” acabou por ser o senhor Armindo, que mora lá para os lados do Carrascalinho, mais a norte, mas ainda no mesmo concelho de Aljezur.

Ele e o arquiteto entendem-se às mil maravilhas: «não temos que lhe dizer nada, o arquiteto dá só as indicações e ele faz o resto. Não foi fácil convencê-lo a trabalhar connosco, mas o senhor Armindo acabou por acreditar no projeto», explica Giacomo.

Ao fim de três dias intensos de trabalho, numa quarta-feira à tarde, a estrutura do Teatro de Palha está pronta. Agora, explica Pedro Quintela, apenas faltava colocar à volta uns fardos mais pequenos, mais leves, trabalho que será feito pela equipa do «Lavrar o Mar», com a ajuda de um trator e de muita força de braços.

O senhor Armindo desliga a máquina, salta da cabine para o chão e, com um sorriso, pergunta: «então, isto está feito?». E o que pensa o senhor Armindo desta tarefa? «Tenho feito muito serviço, mas isto nunca tinha feito. Ai agora sou construtor? Não sou!»

Olhando em volta, diz: «a ideia, no fim, está mais ou menos boa, agora, no início, não achava muito boa. Isto até ficou bonito, com um espaço grande». Com um sorriso rasgado, volta-se para Giacomo e Pedro Quintela e atira: «Agora tenho eu que arranjar um evento para fazer uma coisa destas além na charneca, no Rogil».

Orgulhoso da sua obra, Armindo Branco diz que «quando começarem os espetáculos terei que cá vir para ver se merecem o trabalho todo que tive aqui». Olhando para as paredes de fardos de palha, erguidas a prumo mas descrevendo curvas no solo, com um sorriso de satisfação, admite: «isto não está pior demais, está um belo resultado!».

Mas logo esclarece: «se não fosse uma pessoa habituada a lidar com isto, não dava feito. Isto é um trabalho que precisa de muita paciência para lidar com os fardos e a máquina». Paciência e precisão.

O interior do Teatro de Palha – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

A ideia de fazer um Teatro de Palha, recorda Giacomo, foi-lhe dada a ele e a Madalena, há dois anos, pela figurista que com eles trabalha pontualmente, que um dia lhes «enviou uma fotografia de um teatro de palha em Espanha», mas com fardos redondos. «Ela disse-nos: encontrei esta imagem, não querem fazer isto aí? Gostámos e, a partir daí, ficou este sonho no ar. Começámos depois a tentar concretizar o sonho, pensámos em quem poderia idealizar o nosso teatro de palha e chegámos ao Pedro. Ele é um arquiteto que tem uma ligação muito forte com a natureza».

Pedro Quintela, salienta Giacomo, não é um arquiteto que trabalhe em qualquer projeto, este «tem que lhe dizer alguma coisa».

«Começou a trabalhar sobre esta forma, passou por diferentes fases até chegar aqui. No fundo, chegámos a uma escultura efémera, que vai estar aqui por cinco semanas, que depois volta a ser comida para as vacas, cumpre o destino dos fardos de palha».

E este Teatro de Palha, uma estrutura quase elíptica com formas orgânicas, sem teto, aberto às estrelas, que se avista na sua totalidade à medida que a estradinha desce da estrada Vila do Bispo/Carrapateira até ao Vale da Vilarinha, é mesmo um escultura efémera. Só por isso, já valeria a pena a visita, mas haverá muito mais motivos de interesse, como veremos mais à frente.

Em entrevista ao Sul Informação, Pedro Quintela explica que é um arquiteto cujo background é «uma escola de arte de Hamburgo. A essência da minha alma artística é arte, não é técnica. Adoro fazer a arquitetura como arte, não como uma regra ou como uma lei. Faço muita arte, muita coisa deste género, mas noutra escala. Só a dimensão da escala é que muda».

 

O Teatro de Palha visto ao fundo – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Recorda o momento em que, estando ele a fazer nudismo numa praia perto de Sagres, Giacomo lhe telefonou a convidar para este projeto.

«Quando houve este convite, estava longe de aceitar um trabalho, estava mesmo saturado da arquitetura formal e das suas burocracias. Mas depois ele falou de uma maneira tão simpática, tão ao género dele, que eu, enquanto falávamos, dei por mim a fazer o desenho já na areia, ou seja, ele estava a fazer o convite e eu, sem querer, estava a ouvir a conversa e a desenhar. Depois, quando acabei o telefonema, olhei para a areia. Espera aí? O que se passa aqui? Foi assim muito instintivo».

Após uma direta sentado ao estirador – Pedro Quintela é um arquiteto à moda antiga, desenha tudo à mão -, enviou o desenho a Giacomo Scalisi, ainda antes de lhe dizer que aceitava o convite. «Quando acordei, tinha mensagens do Giacomo completamente entusiasmado a dizer que era isto mesmo. De repente, dei por mim a fazer o trabalho. Ele conhece-me bem, temos a mesma paixão no que fazemos. A coisa começou a nascer, após ter feito o desenho, uma coisa totalmente sentida».

E o que será este Teatro de Palha? As imagens parciais já têm estado a ser divulgadas nas redes sociais, para aguçar a curiosidade. E as que acompanham esta reportagem ajudam a dar uma ideia. Mas a verdade é que…só lá indo.

Pedro Quintela salienta que muitas pessoas «já estão habituadas a este género de formas vindas de mim, porque só trabalho com formas orgânicas, não há aqui um ângulo reto, mesmo nas minhas casas não há ângulos retos, nem nos cantos sequer, tal como faço muitas metáforas com o corpo humano».

Por isso, explica o arquiteto, «faço questão de as pessoas sentirem as obras, para fluir. As pessoas que entram por esta porta de certeza que não vão sair da mesma maneira, todos estes ângulos, estas sombras incríveis que fazem as curvas redondas, todas estas dimensões mexem com as pessoas, querendo ou não querendo, seja qual for a idade, seja criança ou idoso, seja qual for a cultura. Já tenho essa experiência de longa data e é mágico».

Giacomo Scalisi reforça: «Há uma ideia de círculo que é muito importante, também para pensar um pouco naquilo que são as nossas ligações com a terra, com a natureza. Estamos aqui, não temos teatro, mas montamos um que está em ligação com o que aqui está, que escuta. Estamos no meio de uma natureza que dialoga com ela, e depois tudo isto desaparece».

 

Giacomo Scalisi com o comandante dos Bombeiros e o responsável da Proteção Civil – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Tratando-se de um espaço efémero, construído em palha, as questões de segurança não foram descuradas. Na tarde em que o Sul Informação visitou a obra, quase acabada, Giacomo e o arquiteto estavam a ter uma reunião com o comandante dos Bombeiros de Aljezur e com o responsável pela Proteção Civil Municipal, para definir os últimos pormenores de segurança.

O terreno, que pertence a Valentim, um agricultor que tem colaborado com o Lavrar o Mar desde os espetáculos que tiveram lugar, em 2019, no seu Monte do Paraíso, ali bem perto, está vedado e foi todo limpo. O teatro está construído no centro, longe das casas vizinhas ou das encostas frondosas dos montes que rodeiam o vale.

Mesmo assim, depois da queixa de um vizinho assustado, houve mais exigências de última hora e a estreia do Teatro de Palha, que deveria ter tido lugar no sábado passado, teve de ser adiada para esta sexta-feira.

Quem se lembrar da primeira vez que se falou deste Teatro de Palha, recordar-se-á que estava previsto construí-lo na várzea de Aljezur, junto à vila. Mas acabaram por mudar o projeto para o vale da Vilarinha, para o terreno do senhor Valentim.

«Mudámos para aqui, porque fazia sentido. O Valentim trabalhava connosco, tinha feito alguns projetos com a Madalena e comigo, em particular com a Madalena. No fundo, ele tem as vacas e tem a palha. Fazia sentido que a palha do Valentim fosse usada neste projeto e que ele nos ajudasse a encontrar mais palha junto de outro produtores», conta Giacomo Scalisi.

A ideia da circularidade, dos ciclos da natureza está bem presente até na forma como o material de construção é encarado. «A ideia era não comprar os fardos, porque, no fundo, não vamos comprar-lhos. É um aluguer dos fardos. É uma maneira de eles terem mais uma entrada económica. Os fardos iam ser armazenados, mas assim, ao ser usados no teatro, estão a render-lhes dinheiro». E, ao fim das cinco semanas, os fardos voltarão a ser o que sempre foram: comida para as vacas.

Ao todo, são mais de 900 fardos de palha, 300 grandes e mais de 600 pequenos. «Os pequeninos vêm todos daqui, deste terreno, os grandes vêm de outros sítios aqui à volta, como as Alfambras, Maria Vinagre», acrescenta Giacomo.

 

O Teatro de Palha, lá em baixo, no vale da Vilarinha – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

E será assim que, a partir desta sexta-feira, dia 1 de Julho, o Teatro de Palha irá acolher espetáculos de música, teatro, djs, a exibição de filmes, novo circo, bailes, lições de tango, mas também uma exposição de fotografia. Os espetáculos terão lugar à noite, mas a exposição estará sempre patente nas paredes de palha, podendo ser visitada, assim como a escultura efémera que o próprio teatro é, ao longo do dia. Os espetáculos são pagos, mas a visita é gratuita.

A exposição denomina-se «Ensaio sobre a Osmose Visual» e apresenta uma seleção de 23 fotografias em grande formato que João Mariano fez ao longo dos seis anos de espetáculos do Lavrar o Mar, nos concelhos de Aljezur e de Monchique. «Ele fez uma escolha própria, segundo o seu ponto de vista», diz Giacomo.

«Numa relação de extrema cumplicidade, fui sendo impregnado com os constantes diálogos visuais, a interação com o público, as ubíquas acrobacias, as eloquentes poesias….eu estou lá sempre, a ver , a trabalhar, a absorver, não tão invisível como gosto, mas sempre a tentar criar algo, enquanto autor, que alcance, atinja e possa causar reflexão no recetor», escreve João Mariano, a propósito da sua exposição.

Porque o adiamento da estreia trocou as voltas à programação, houve algumas alterações. Assim, na sexta-feira, 1 de Julho, o Teatro de Palha abre as suas portas pela primeira vez às 21h30, com o DJ set de Nelson Makossa, denominado «África em Vinil».

No sábado, dia 2 de Julho, à mesma hora, terá lugar o concerto com a banda «Kriol», «uma viagem pelos sons do Atlântico, principalmente de Cabo Verde, com um psicadelismo tropical que lhes é bastante peculiar».

 

No domingo, dia 3 de Julho, será então a vez da atuação da «Bandalon», que era o concerto previsto para a estreia da semana passada.

Trata-se, no fundo, de um espetáculo que leva o público numa viagem pelos seis anos de «Lavrar o Mar». Como explica Giacomo Scalisi, será «um concerto muito particular do André Duarte, ou seja, o Júnior, que no fundo, trabalhou connosco em diferentes criações. Pedimos ao Júnior para imaginar um concerto a partir das criações artísticas que ele fez para o Lavrar o Mar ao longo destes anos. O Júnior, com um grupo de músicos, escolheu um alinhamento» que será agora apresentado, mas como novas roupagens. Será, sem dúvida, um grande concerto e uma grande festa.

Mas não se pense que a programação ficará por aqui. Em termos de concertos, passarão pelo Teatro de Palha o Carlos Bica Trio (16 de Julho), Bruno Pernadas (9) ou Tango Pirata (17), entre outros. No cinema, haverá, por exemplo, a apresentação do filme «Paraíso», o mais recente de Sérgio Tréfaut (10 de Julho), ou ainda a estreia de «O Trilho dos Pescadores», feito pela portuguesa Lourdes Picareta para o canal alemão ARTE (13). E está ainda programado Novo Circo, com «Une Partie de Soi», de João Paulo Santos (14).

Os bilhetes para todos os espetáculos custam entre 5 e 10 euros e podem ser comprados aqui.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

PROGRAMA

TEATRO DE PALHA – SEMANA 1
1 A 3 JULHO

1 JUL – 21h30
ÁFRICA EM VINIL
Nelson Makossa
Música · DJ Set

2 JUL – 21h30
KRIOL
Concerto

3 JUL – 21h30
BANDALOM
André Duarte
Concerto

TEATRO DE PALHA – SEMANA 2
5 A 10 JULHO

5 JUL – 21h30
EMA
Pablo Larrain
Cinema

6 JUL – 21h30
AMOR FATI
Cláudia Varejão
Cinema

7 JUL – 21h30
GIRL
Lukas Dhont
Cinema

8 JUL – 21h30
MAGUPI LIVE ACT
Márcio Pinto
Música · DJ Set

9 JUL – 21h30
BRUNO PERNADAS
Concerto

10 JUL – 21h30
PARAÍSO
Sérgio Tréfaut
Cinema

TEATRO DE PALHA – SEMANA 3
12 A 17 JULHO

12 JUL – 21h30
GRIGRIS
Cinema

13 JUL – 21h30
O TRILHO DOS PESCADORES
Cinema

14 JUL – 21h30
UNE PARTIE DE SOI + CIR-K
Novo Circo

15 JUL – 21h30
BILLIE
Cinema

16 JUL – 21H30
CARLOS BICA TRIO
Concerto

17 JUL – 19h00
Tiktek Ensemble
Concerto · Ecstatic Dance

17 JUL – 21h30
Tango Pirata + Guillotina Cumbiera
Concerto · Baile | DJ Set

 

Nota importante: a organização pede aos espectadores para levarem uma almofada ou uma pequena manta para se sentarem em cima dos fardos de palha. E conhecendo as noites na Costa Vicentina, convém também levar um agasalho e calçado apropriado para um piso de terra.

 

Foto: Lavrar o Mar

 

 



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