Rememorar sons e gestos na paisagem, com Eva Poro no Monte Paraíso

O Sul Informação assistiu a uma manhã de ensaios e de criação

«Isto é a entrada do espetáculo, o Senhor Valentim é o guardião deste paraíso», diz Madalena Victorino, fazendo um gesto largo com os braços, para o grupo de dez crianças, atores de Eva Poro #1, o novo espetáculo de «som e movimento na paisagem» do projeto Lavrar o Mar, que se vai apresentar num monte nas faldas da Serra do Espinhaço de Cão, a dois passos da Costa Vicentina, entre os dias 8 e 10 de Fevereiro, ou seja, no próximo fim de semana.

Quem conhece os projetos Lavrar o Mar, sabe que Madalena Victorino ou Giacomo Scalisi, os seus mentores e criadores principais, se esforçam por encontrar locais improváveis para as suas criações. E sabem também que a paisagem e até o ar que se respira fazem parte dos espetáculos, sendo suas verdadeiras personagens. Em Eva Poro, isso é ainda mais verdade.

Para o primeiro grupo de apresentações, entre sexta-feira e domingo próximos, os criadores descobriram o Monte Paraíso, a meia hora de caminhada a pé da aldeia da Vilarinha, um pouco a sul da Bordeira, no concelho de Aljezur. É um monte com três casas, semi arruinadas, batidas pelo vento e com uma vista fabulosa para o vale, também chamado do Paraíso, onde corre uma ribeira.

Naquele monte, nasceu o Senhor Vicente Valentim, de 85 anos, que hoje, com o seu filho, também chamado Valentim, o arrenda à sua proprietária e continua a dar-lhe alguma vida, com a sua manada de vacas, que se abriga nas casas de paredes de taipa a esboroar-se. «Eles são os verdadeiros guardiões deste vale e dos seus animais», explica Nicolau da Costa, um dos cinco co-criadores de Eva Poro. «Fizeram toda a sua vida aqui».

 

O Senhor Valentim, o filho, que tem 55 anos e é homem de poucas palavras e de sorriso tímido no rosto, integra o elenco do espetáculo, estando «presente em quase todas as sequências», não só com as crianças, como com os adultos e até com os animais (duas éguas e nove cães).

Ele é também a pessoa que, no seu trator, transporta muitos dos adereços e outros elementos mais pesados necessários a este Eva Poro, ao longo dos três quilómetros de estradinha de terra que separam a aldeia da Vilarinha do Monte Paraíso. No princípio, o seu contributo seria mais logístico. Mas depois o pai Vicente Valentim disse a Madalena Victorino que o seu filho também gostava de participar. E a coreógrafa aceitou de braços abertos esta ideia, que aliás já fervilhava na sua cabeça.

O Senhor Valentim filho não fala muito. Ao Sul Informação, explicou, com estas exatas palavras, que é a «primeira vez» que participa em algo semelhante e que está ali «para ajudar». Muito compenetrado do seu papel, Valentim ouve com atenção as indicações de Madalena Victorino, durante uma intensa manhã de sábado, em ensaios no Monte Paraíso.

O Senhor Valentim, tal como a personagem de Nicolau, são, segundo explica a coreógrafa ao Sul Informação, «a memória de uma série de gestos de trabalho primordiais que agora se evaporam, deixam de ter função, mas que a dança recupera. São gestos que resistem aos ventos, à intempérie, e que surgem como uma espécie de situação onírica, que tem corpo e som».

 

Há «um sono em que esta terra está, uma melancolia que paira à sua volta». Há «um grupo de homens que não se sabe exatamente de onde vêm, que se encontram com um grupo de crianças e de animais», e «evocam o que está entre o passado e o futuro», sendo «elementos de memória». «Perdem a sua origem e ganham nova respiração, mas por tempo limitado», porque, no fim, «tudo será devolvido ao silêncio e aos animais».

Há «uma égua que desaparece do prado, se evapora, numa metáfora do que já não se consegue recuperar». Mas essa memória é trazida de novo «pela força das crianças, quando elas dormem surge de novo, em covas que são camas feitas na terra, onde as crianças se recolhem para sonhar».

As palavras são de Madalena Victorino, a levantar um pouco do véu deste seu novo espetáculo. Mas não traduzem o deslumbramento para os vários sentidos que será este Eva Poro. A reforçar as cenas, há a música e a voz de Joana Guerra, criadora do espetáculo com Madalena. São composições originais, que entram em diálogo com o relinchar das éguas, o soprar do vento ou o ranger das portas do monte. E que acompanham, entre as notas do violoncelo e a voz, as sequências desta evaporação.

O trabalho de Madalena com os dez miúdos (são onze, no total, mas no sábado só puderam lá estar dez), não é fácil. Rumi Cid, o mais novinho, de 6 anos, boceja de sono. Phönix Zaffetta só fala alemão e o ensaio é acompanhado a par e passo pelo seu pai, que traduz o que Madalena vai dizendo, saltando de língua para língua. «Nos primeiros dias de ensaios, a Madalena falava Português, Inglês, Alemão, Português, Inglês, Alemão…mas é muito difícil e desgastante», explica Telma Antunes, responsável pela comunicação do Lavrar o Mar.

 

As onze crianças têm entre 6 e 16 anos e nacionalidades muito diversas – portuguesa, alemã, inglesa, francesa, russa, canadiana… Muitos dos que não têm nacionalidade portuguesa já nasceram aqui, entre os montes e as ondas do concelho de Aljezur, e (quase todos) falam português e inglês, entre si. Uns, poucos, andam na escola oficial, mas a maior parte anda nas escolas alternativas que há no concelho – Aljezur International School, Escola das Borboletras e Story Forest School.

«Quis trazer estas crianças, que às vezes vivem desligadas da realidade local, para este projeto», explica Madalena Victorino à reportagem do Sul Informação.

Sasha Guru, de 12 anos, é canadiano de nacionalidade, Ismael Gallet, de 10 anos, é francês. Ambos falam português na perfeição e afirmam que não são propriamente novatos nesta coisa dos espetáculos. Ismael é filho de Remi Gallet, o artista francês que há anos reside em Aljezur e que tem colaborado com o Lavrar o Mar noutros espetáculos. «Eu já tinha feito teatro e circo», garante Sasha. «Para mim, já é para aí o 10º espetáculo em que vou participar, já entrei em muitos com o meu pai», diz Ismael.

Noah Schydlo, que é alemão, diz que também já fez «muitos shows com o circo», a escolinha de circo que há em Aljezur. Mas confessa que este espetáculo Eva Poro dá «muito trabalho a decorar».

 

Depois há os adultos. Nicolau da Costa, que é da Raposeira (Vila do Bispo), apresenta-se como «mariscador, agricultor e apicultor», um verdadeiro homem multi task, que sabe viver do que a natureza ainda dá naquele recanto da Costa Vicentina. É, talvez por isso, uma pessoa de grande sensibilidade e, orgulhosamente, um dos co-criadores deste Eva Poro. Com Madalena, criou, por exemplo, toda a sequência que se passa dentro do estábulo das vacas. «Hoje é a primeira vez que estamos a ensaiar com as crianças». A ele, cabe-lhe também recriar os tais gestos de trabalho que já só são memórias, mas também montar a égua Zaia, a tal que se evapora no prado.

Depois há ainda Nídia Barata, a guardiã dos animais – são dela as duas éguas, Zaia, a égua branca, e Happy, a alazã, bem como os nove cães. É uma verdadeira encantadora de animais, porque, para onde ela vai, vão os cães todos atrás, de forma calma e ordeira, fazendo o seu papel no espetáculo como se tivessem horas e horas de treino.

Nídia vive na Vila do Bispo, onde tem uma quinta com cavalos que aluga para passeios turísticos, mas também outros animais, como uma burra, cães, gatos, galinhas e gansos. «Toda a minha vida vivi com animais», diz. Os seus bichos, explica, «têm uma vida muito natural, nunca são presos». E de tal maneira não estão habituados a estar presos que, na manhã de sábado, quando foi preciso transportar pela primeira vez as éguas até ao Monte do Paraíso, a cerca de 30 quilómetros, a Happy, que nunca tinha entrado no atrelado próprio, só o fez após muita insistência…e um dos cães pôs-se a milhas…

Mas Nídia não se cansa de dizer que este é «um bom desafio». Os cães, garante, «estão perfeitamente adaptados a muita gente e os cavalos também», embora o espetáculo seja «uma quebra da sua rotina».

E assim, na próxima sexta-feira, dia 8 de Fevereiro, às 15h30, tendo como ponto de encontro a aldeia da Vilarinha, irá estrear-se a nova produção Eva Poro. É um «espetáculo de arte comunitária na paisagem que, utilizando as linguagens da música e da dança, investiga sobre os fenómenos do desaparecimento, da evaporação, do fim das coisas. Junta rapazes de mundos escolares muito diferentes com artistas vindos do teatro de objetos, da música, da dança, do grande e fabuloso teatro da vida. São eles, nesta circunstância, os “zangões” que, à revelia dos costumes nas colmeias, trabalharam até ao coração, para esculpir esta vontade de existir no ar».

 

Para chegar ao Monte Paraíso (e depois para regressar), há que percorrer a pé cerca de três quilómetros de estrada de terra, com lama, água, pedras e uma subida íngreme. Esta caminhada, de ida e volta, já faz parte do espetáculo, onde, mais uma vez, o público (80 pessoas em cada apresentação) é convidado a participar, desta forma física. Por isso, há que levar bom calçado para andar, bem como agasalhos, já que tudo se passa ao ar livre e há muito vento…

Quanto aos animais, lindos, a recomendação é para que o público não tente interagir com eles, nem sequer para fazer uma festinha. São todos mansos e pacíficos, mas devem estar concentrados na sua missão de atores.

E não se esqueça: nos dias 22 a 24 de Fevereiro, e desta vez tendo como ponto de encontro o heliporto de Monchique, terá lugar a segunda fase de apresentações deste Eva Poro #1. Desta vez, o palco será a aldeia abandonada de Barbelote, na encosta norte da serra. Mas o espetáculo será um pouco diferente deste do Monte Paraíso, até porque a paisagem – que é sempre personagem principal nas produções Lavrar o Mar – é diferente.

Entretanto, ao longo desta semana, intensifica-se o trabalho de ensaios, com as crianças, os artistas adultos e os animais. E, tal como o Sul Informação constatou no sábado, ao acompanhar uma manhã intensa de trabalho, mais do que ensaios, trata-se de trabalho de criação. Ou, como dizia Madalena, depois de duas horas a trabalhar com os miúdos: «agora acho que já compreendi: tem que ir com um ritmo mais…». Descobrir que ritmo será esse, fica reservado aos felizes 240 espectadores de Eva Poro.

Os bilhetes, que custam 7 euros, estão, como sempre, à venda na bilheteira online da Bol, bem como nos pontos de venda aderentes (Fnac, Worten, etc) e ainda em Aljezur, na Casa Lavrar o Mar (Rua João Dias Mendes) e em Monchique, na Biblioteca Municipal. Despache-se a comprar os bilhetes, porque costumam esgotar (ou esfumar-se) depressa, graças à legião de fieis que tudo o que o projeto Lavrar o Mar faz arrasta atrás de si.

O Lavrar o Mar, que é um projeto da Cosanostra Cooperativa Cultural, conta com o apoio do 365 Algarve e ainda do CRESC Algarve 2020, dos Municípios de Aljezur e Monchique e da Direção Geral das Artes.

Fotos e vídeo: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

 

FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA

CRIAÇÃO: Madalena Victorino e Joana Guerra
CONCEITO, DRAMATURGIA E COREOGRAFIA: Madalena Victorino
COMPOSIÇÃO MUSICAL: Joana Guerra
CO-CRIAÇÃO: Alix Sarrouy, Miguel Nogueira, Nicolau da Costa, Patrick Murys, Remi Gallet
DIREÇÃO TÉCNICA E DESENHO DE LUZ: Joaquim Madaíl
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL: Emílio Neal Frener, Ismael Gallet, Lias Whitelegg, Noah Schyolo, Otto Forgaard, Pepijn Jones, Petri Pisarenko, Phönix Zaffetta, Rumi Cid, Sasha Guru, Vicente Andrade
GUARDIÃ DOS ANIMAIS: Nídia Barata
ANIMAIS: Zaya e Happy (éguas), Aspa, Pira, Sássá, Tobias, Ariel, Vitória, César, Pulguita e Barão (cães)
PRODUÇÃO: Catarina Sobral
APOIO À PRODUÇÃO: Vasco Almeida e Joana Brandão
FOLHA DA SALA (ILUSTRAÇÃO / DESIGN): Joana Brandão

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS:
Espaço +
Junta de Freguesia da Bordeira
Srª Engenheira Margarida Alves – Proprietária do Monte Paraíso / Carrapateira
Sr. José Martins – Proprietário da Aldeia de Barbelote / Monchique
Pastores: Sr Valentim – pai e Valentim – filho; Sr. Manuel Galinha
Agricultor: Sr. “Choça”
Pais das crianças
Helen Helder – Criação de nuvens comestíveis
Isabel Silva – Costureira
Aljezur International School
Escola das Borboletras
Story Forest School

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