A arte e a cultura de um território-desejado

Nesses territórios, em estado expectante, existe um produto potencial que precisa de ser muito bem trabalhado

Farol dos Ventos, projeto da Experimenta.paisagem (DR)

Os territórios precisam de ser convertidos em objetos de desejo, em territórios-desejados. Pensemos, por um momento, nas motivações que podem mobilizar a nossa inteligência emocional em direção a um determinado território, fazendo com que ele se converta num objeto de desejo, num território desejado. Façamos algumas incursões a propósito.

Pensemos, por exemplo, no Plano Nacional das Artes e na Rede Portuguesa de Arte Contemporânea e na itinerância das coleções de arte pelos inúmeros centros de arte contemporânea já hoje existentes em Portugal.

Pensemos, por exemplo, no Programa Nacional de Educação Estética e Artística e na itinerância dos artistas plásticos portugueses pelos municípios e escolas do país, dirigindo e orientando a produção de obras de arte pública por jovens artistas das nossas vilas e cidades, sem esquecer, em tempo de alterações climáticas, a especial relação da arte pública com as boas práticas da economia circular.

Pensemos, por exemplo, na associação das Aldeias Históricas de Portugal aos programas de educação estética e artística e na itinerância de um programa nacional de instalações artísticas e culturais que celebrem a beleza natural dessas aldeias.

Pensemos, por exemplo, no programa de bibliotecas escolares e no Plano Nacional de Leitura e na itinerância de muitos escritores portugueses, não só explicando as suas obras literárias, mas, também, descrevendo e revisitando algumas paisagens literárias dos nossos maiores escritores.

Pensemos, por exemplo, no Plano Nacional de Cinema e na itinerância de um programa de divulgação das grandes obras cinematográficas, mas, também, em sessões explicativas sobre a produção de pequenos documentários sobre a arte e a cultura dos territórios.

Pensemos, por exemplo, na Rede Portuguesa de Museus e na organização de visitas guiadas a vestígios arqueológicos e a monumentos nacionais como formas privilegiadas de explicar aos mais novos a história e a cultura portuguesas.

Pensemos, por exemplo, nos Centros de Ciência Viva e nos centros interpretativos e na itinerância que lhes está associada, que os nossos cientistas podem protagonizar, em tudo o que diga respeito aos endemismos locais, às ocorrências geológicas, às boas práticas ambientais e florestais, tendo em vista proteger os habitats e ecossistemas existentes.

Pensemos, por exemplo, na arte sacra e nos inúmeros lugares de culto e peregrinação espalhados pelo país e à itinerância que lhe está associada, seja em celebrações ou visitas guiadas.

Pensemos, por exemplo, nos terroirs portugueses que alimentam o turismo em espaço rural e em algumas marcas Unesco como a dieta mediterrânica e teremos mais um motivo para visitar os territórios do chamado país do interior.

Na sociedade da informação e do conhecimento, onde as redes são o agente principal da riqueza dos territórios, qual é a importância de todas estas referências artísticas e culturais? Socorro-me dos argumentos do Plano Nacional das Artes.

O que seria a vida sem música e literatura, arquitetura e design, cinema e pintura, dança e teatro? Compreendemos as artes como parte da vida e não um mundo paralelo, fora da existência ou num âmbito isolado da cultura. Como afirmou Sophia de Mello Breyner Andersen, na intervenção que fez na Assembleia Constituinte, em 2 de setembro de 1975: «(…) a cultura não é um luxo de privilegiados, mas uma necessidade fundamental de todos os homens e de todas as comunidades. A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar, para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça (…)». Nesse sentido, a estética não está distante da ética nem da política. Recuperaremos, com esta certeza, o propósito e esforço de muitos artistas desde os anos 60 e 70 do século XX: cruzar a arte e a vida, revelá-las como uma unidade. Assim, não valorizaremos apenas o objeto artístico, mas o processo criativo e a atitude livre.

As artes podem ensinar-nos a inestimável lição da gratuidade. A do tempo liberto, sem porquê nem para quê, a do prazer desinteressado diante da beleza. Numa época marcada pelo utilitarismo e pelo desejo de eficiência e produtividade, esta subversão é determinante. É a mesma que podemos valorizar no lúdico, no jogo, na festa. Assim, na sociedade e nas comunidades de aprendizagem, pela proximidade das artes e expressões artísticas, promover-se-á também a educação associada ao prazer, ao jogo e à criatividade. Emocionar-se e divertir-se não podem estar em oposição a aprender e a conhecer. As práticas artísticas podem renovar os processos pedagógicos evitando uma lógica instrumental do uso das artes e a sua domesticação. Desse modo, articulando a educação e a cultura, poderemos potenciar a experiência de um espaço franco, onde se valorize a contemplação, o lúdico, a descoberta, a gratuidade e a liberdade. Uma forma de afirmar a força plástica da vida sem o peso do medo de errar.

Há múltiplas linguagens e diversos modos de expressão pessoal e compreensão do mundo, que devemos ajudar a desenvolver. Racionalizámos em demasia a educação, não promovendo suficientemente a formação dos afetos, a relação com o corpo, a valorização da autonomia, a capacitação para assumir os desafios e os falhanços, o prazer de aprender, de interpretar e intervir no mundo. É preciso educar e formar para as diversas linguagens, inteligências e modos de comunicar. Nem todos se enquadram na linguagem da racionalidade lógico-verbal. Esses sentem-se excluídos – e poderão encontrar nas expressões artísticas o seu meio e o seu elemento, um caminho para a sua realização pessoal e participação no bem comum.

Numa sociedade que enfrenta desafios decorrentes da globalização e do acelerado desenvolvimento tecnológico, onde a inteligência artificial tem já um papel decisivo, as competências emocionais, sociais, criativas e críticas que as artes proporcionam poderão ser um instrumento essencial de adaptação a esse mundo que virá.

A intimidade com as artes, na sua diversidade, permite a formação dessas competências, aparentemente afastadas. A educação da sensibilidade estética e do pensamento crítico e criativo permitirá, assim, uma maior autonomia pessoal. Uma relação permanente com as artes e o património de diferentes culturas, ensina, também, a respeitar a experiência do outro, a ser mais recetivo à sua cultura, à sua interpretação do mundo, promovendo a partilha, a argumentação, o conhecimento de critérios de juízo de gosto e da sua evolução histórica.

O conhecimento do património e das artes, permite-nos uma consciência histórica e inscreve-nos como parte de uma tarefa infinita que recebemos como herança e que devemos renovar para o futuro. Fazemos parte de uma comunidade e de um esforço comum que nos antecede e nos ultrapassa. Desse modo, a promoção de uma educação que valorize o património e as artes reforçará o sentimento de pertença dos cidadãos e ajudará na reconstrução de comunidades historicamente enraizadas, conscientes das múltiplas influências culturais de que somos devedores.

O que aqui fica dito, a propósito do Plano Nacional das Artes, é, igualmente, válido para o Plano Nacional de Leitura, o Plano Nacional de Cinema, o Programa de Educação Estética e Artística, o Programa de Bibliotecas Escolares, a Rede Portuguesa de Museus e a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea. Todos estes instrumentos de programação e planeamento podem estar ligados ao território e à sua dilatação, seja por via da itinerância das coleções de arte, das visitas guiadas, dos percursos de natureza e das paisagens literárias, das residências artísticas e das artes de rua, da arte sacra e dos lugares de culto e peregrinação, dos museus e dos vestígios arqueológicos, dos centros de ciência viva e dos endemismos locais, entre muitos outros sinais distintivos territoriais.

Tal como se refere na Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, trata-se de “aproximar as diferentes comunidades do território nacional à arte e cultura contemporâneas, contribuindo para o aumento dos públicos e a sua fidelização, de promover a mobilidade dos artistas, curadores e demais atores do meio das artes contemporâneas, de promover programas de apoio à programação em rede e fomentar dinâmicas de inter-relacionamento das práticas artísticas e de investigação nestas áreas, de estimular projetos pluridisciplinares nacionais e internacionais, nomeadamente através de exposições, performances, seminários e conferências, de incentivar programações culturais que possam ser coproduzidas em rede e em itinerância”.

 

Notas Finais

Património, paisagem, ciências e tecnologia, artes e cultura, ainda não fomos capazes de mobilizar estes três conjuntos de recursos em modo ordenado e com uma intensidade-rede suficiente.

Eles formam uma cadeia de valor de uma riqueza inestimável que jaz adormecida em muito territórios que continuam, digamos, em lista de espera. Nesses territórios, em estado expectante, existe um produto potencial que precisa de ser muito bem trabalhado.

A arte e a cultura, como a ciência e tecnologia, podem rasgar esse horizonte de possibilidades e abrir ao mundo o nosso pequeno mundo de alcance tão limitado.

Às vezes chegamos lá por via do absurdo e do disparate, da sorte ou do acaso, mas a arte participativa, a democracia cultural e o compromisso comunitário podem orientar a nossa atenção e a nossa energia na boa direção, ou seja, para a valorização da cadeia de valor do território e para a transformação do seu produto potencial em bens e serviços, materiais e imateriais, que dilatam a economia do território, mas, também, o nosso horizonte de vida e a cidadania quotidiana.

E porque não olhar para o território como se fosse uma obra de arte sempre inacabada, tal como nós próprios?

Neste início do ano de 2022, faço um convite em matéria de arte e cultura dos territórios. Visite três iniciativas que são dignas de registo: a Experimenta-paisagem, sobre a produção de arte pública e a comunicação de valores paisagísticos, a Artemrede e a sua programação artística e cultural, finalmente, a Spira e os seus roteiros e visitas guiadas sobre património natural e cultural.

Desejo a todos um Bom Ano de 2022.

 

 

 
 



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