Escavações arqueológicas em sepulcros pré-históricos de Monchique terminam com Dia Aberto e descobertas inesperadas

Há ainda muito por fazer, no terreno e sobretudo no laboratório. Há muitas hipóteses para pôr à prova, mas há já também histórias para contar sobre estes nossos antepassados monchiquenses

No último dia de trabalho de campo, abriram-se as escavações no Esgravatadouro a visitantes. Foi o “Dia Aberto”. À direita na imagem, os responsáveis explicam a arquitetura e os achados no designado Túmulo N.º 2 do Buço Preto, que se pode ver no centro da escavação – Foto: Sara Prata

Oito semanas de escavações arqueológicas revelaram arquiteturas inesperadamente contrastantes. No Cerro do Oiro, encontrou-se um enorme sepulcro-templo neolítico, sem paralelo até ao momento no sul português. Já o pequeno túmulo do Buço Preto, no Esgravatadouro, terá sido um dos primeiros a ser construído na Serra de Monchique nesta época.

Nesta sexta-feira, 13 de agosto, quando ligava o motor do carro, por volta das 13:00 horas, o termómetro indicou 42º C. No Esgravatadouro, pensei, não seria de estranhar.

Este local da Serra de Monchique forma uma esplanada a meia-encosta, com uma vista deslumbrante sobre o mar, mas é muito soalheira. Foi, aliás, devido a esta localização que, há seis mil anos, comunidades neolíticas decidiram aqui construir as últimas moradas dos seus entes queridos: pequenos sepulcros erigidos com lajes colocadas na vertical, formando uma espécie de sarcófago, e depois cobertos com uma colina artificial de terra e pedras, para os proteger para a eternidade. Apelidamo-los de cistas.

O seu interesse científico é grande, vem de longa data, e por isso, hoje, no final das escavações, tinha-se decidido abrir os trabalhos ao público. O “Dia Aberto”, assim chamado porque quem quer que aqui quisesse deslocar-se seria acompanhado por um de nós numa visita guiada, personalizada.

Por isso, naquele momento, não pude deixar de sorrir para mim mesmo: esta sexta-feira 13 não fora de azar. Apesar dos 42º C àquela hora, tínhamos tido o prazer de receber uma dezena de pessoas. Umas residem nas proximidades, outras vieram de mais longe, outras ainda estavam em férias na praia, mas decidiram subir à serra para ver as escavações.

Julgo que os nossos visitantes gostaram do que viram e gostaram das nossas explicações. A Ana e o Nuno, um casal lisboeta de férias em Lagos, ficaram surpreendidos pela história que este pequeno túmulo encerra. Diziam que era necessário divulgar amplamente as histórias que o conjunto de sepulcros da envolvente das Caldas têm para contar. Que são histórias inesperadas, porque, para um leigo, um “amontoado de pedras” parece não ser mais do que isso. Que seria interessante haver um painel explicativo e ilustrado junto ao caminho. Que colocar-lhe um Código QR levaria o visitante a conhecer essas histórias, seria uma solução prática e hoje já muito comum.

Ora bem, tratei de explicar que estamos ainda no início. Antes de chegarmos à plena divulgação deste património, há que reunir informação científica — isto é, recuperar os fragmentos de história que estes túmulos contêm —, processá-la, de seguida conceber uma estratégia de comunicação, e só depois, finalmente, trazê-la ao grande público, aos visitantes de Monchique, e especialmente aos monchiquenses, herdeiros diretos deste património.

Uma breve nota: Ana e Nuno não são nomes fictícios; são pessoas reais, daquelas que nos dão os mais importantes feedbacks para aferirmos se estamos no caminho certo. No caso destes nossos trabalhos, quero pensar que estamos.

 

Uma lâmina de sílex pertencente a uma faca ou punhal neolítico, fotografada no momento da sua descoberta durante as escavações no Túmulo N.º 2 do Buço Preto, no Esgravatadouro – Foto: Fabián Cuesta-Gómez

 

Com efeito, todo este esforço que empreendemos resulta de uma louvável iniciativa da Câmara Municipal de Monchique, e que tem vindo a ser tornada pública nas páginas do Sul Informação desde maio último.

A ideia de base com que partimos explica-se rapidamente. O município disponibiliza os meios logísticos que lhes estão ao alcance: alojamento da equipa, transportes, contratação de voos de drone e de levantamentos topográficos…

Um protocolo com a Universidade do Algarve coloca no terreno uma equipa pluridisciplinar e permite também na prática — porque não está previsto nesses moldes — criar informalmente um “campo-escola”, onde alunos de diversos graus do ensino superior em Arqueologia vêm praticar trabalho de campo. Podemos assim contar com voluntários de várias universidades portuguesas, de Espanha e da Suécia.

O sucesso deste “campo-escola” viu-se no desejo expresso de alguns em regressar, o que chegou mesmo a acontecer: alunos que se esforçaram para “repetir”, mas neste caso a experiência de escavar connosco; assim, depois de terminado o seu turno, houve quem voltasse a Monchique uma vez mais e queira regressar.

O dinamismo em torno deste projeto, previamente aprovado pela Direção Geral do Património Cultural, do Ministério da Cultura, suscitou a curiosidade e o interesse também da Archaeological Association of Algarve, que se juntou ao nosso esforço, apoiando generosamente o município e, dessa forma, o projeto — aliás, no seguimento de muitas outras iniciativas que conhecemos desta associação, e que é de justiça reconhecer publicamente.

Da mesma forma, contamos também com a colaboração da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, onde decorre neste momento um projeto de investigação internacional sobre estas manifestações tumulares pré-históricas à escala europeia, e por essa razão aliás financiado pela União Europeia.

A Universidade do Algarve é a sua parceira portuguesa, e esta parceria irá providenciar-nos o acesso a estudos laboratoriais sobre o património monchiquense. Por isso, a responsável, a Professora Bettina Schulz-Paulsson, esteve connosco nestes últimos dias e dois alunos seus participaram nas escavações durante um mês.

Duas minúsculas contas de colar, de forma discoide e fabricadas em xisto, encontradas na escavação do Cerro do Oiro. O tamanho destas peças, em torno dos 3 mm de diâmetro, ilustra bem a meticulosidade que se exige na escavação de sepulcros pré-históricos – Foto: Fabián Cuesta-Gómez

 

Mas, afinal, o que são estes sítios arqueológicos que justificam toda esta atividade?

Antes de mais, constituem uma autêntica constelação de sepulcros semelhantes arquitetonicamente aos do Esgravatadouro, hoje inventariados em cerca de três dezenas e meia, que se distribui pelos aplanamentos e cerros da envolvente das Caldas de Monchique.

A descoberta dos primeiros destes túmulos ocorreu há mais de oitenta anos, momento em que se iniciou um período fervilhante de escavações que perduraria até meados da década de 1940.

Novos túmulos só viriam a ser descobertos após os incêndios de agosto de 2018, graças ao dinamismo do arqueólogo municipal, o Dr. Fábio Capela, que se colocou no terreno e os conseguiu relocalizar e até descobrir outros inéditos, que tinham passado despercebidos.

Entre estes dois momentos no tempo, os sepulcros pré-históricos de Monchique tiveram um papel importante na literatura internacional sobre as origens do megalitismo, um fenómeno cultural neolítico que se define pela construção de grandes túmulos em pedra (daí o termo): os dólmenes, ou antas em português.

O interesse particular dos nossos túmulos monchiquenses reside, por ironia, nas suas pequenas dimensões. Por exemplo, o túmulo que esteve aberto ao público no Esgravatadouro tem a dimensão suficiente para receber apenas uma pessoa. E com ela, encontrámos muito poucos objetos, todos de fabrico simples: uma pequena faca em sílex e um fragmento de uma ponta de seta de forma trapezoidal, também em sílex, e duas pequenas contas de colar em xisto.

É muito verosímil que, com estas oferendas em pedra, tivessem sido colocados bens perecíveis, que o tempo e a acidez dos solos trataram de decompor. Vasos em madeira, as setas e os arcos a que pertenciam a ponta de sílex, o cabo da faca, peças de carne que servissem de alimento para a outra vida do defunto, flores ou a mortalha que talvez o tivesse envolvido…

Ora, para muitos estudiosos portugueses, espanhóis, britânicos, as grandes construções dolménicas da Europa atlântica de há seis mil anos, de algum modo equivalentes ao que chamaríamos hoje jazigos de família, teriam tido aqui a sua origem. Ou, pelo menos, os dólmenes clássicos teriam tido aqui os seus modelos arquitetónicos.

A origem do megalitismo não é hoje entendida dessa forma tão linear e simplicista, mas o facto é que ainda não conhecemos rigorosamente a idade destes túmulos de Monchique — sabemos que datam do IV milénio a.C., mas faltam-nos elementos de maior precisão — e há uma série de dados que não possuímos e de ilações que não conseguimos ainda produzir porque a sua escavação nos anos 40 decorreu sem o recurso a tecnologias que hoje estão ao nosso dispor. Daí o interesse na sua reescavação.

 

Vista de pormenor do sepulcro do monumento do Cerro do Oiro, onde se podem ver as lajes que o formavam originalmente, algumas das quais tombadas e arrastadas em época incerta, provavelmente por pesquisadores de tesouros – Foto: António F. Carvalho

 

 

Um dos túmulos inéditos, descoberto há três anos, é o do Cerro do Oiro, no extremo poente da extensa necrópole pré-histórica. A escavação foi aqui mais morosa porque todo o conjunto parecia revelar uma arquitetura muito vasta e complexa. E assim era, efetivamente.

Os numerosos blocos de sienito acumulados no topo deste cerro estavam deslocados, dispersos, fragmentados. O nome do sítio sugere que terão aqui havido escavações em busca do vil metal. Se se acrescentar a isso o crescimento milenar de árvores de grande porte, a realização de trabalhos agrícolas, a construção de muros de divisão de propriedade, somos forçados a concluir que tudo terá contribuído para o remeximento superficial de uma imponente estrutura em pedra da Pré-História.

A escavação arqueológica, o recurso a fotografia aérea e o levantamento topográfico permitiram, no entanto, perceber um amplo conjunto organizado. Todo o topo do cerro está artificialmente estruturado em diversos espaços interiores, delimitados por vezes com anéis pétreos, adjacentes a outros exteriores, nos quais teriam tido lugar celebrações e rituais hoje impossíveis de recuperar na sua totalidade.

O ponto central do conjunto é uma pequena cista de planta quadrangular formada por quatro lajes na vertical encimadas por outra, na horizontal, que fechava assim este espaço sepulcral com cerca de 1,5 metros de lado. As oferendas que podemos associar, quer ao espaço funerário, quer as que se encontraram nos espaços reservados a rituais e cerimónias, não diferem muito das do Esgravatadouro. Pontas de seta de diversos tipos e facas em pedra, machados em pedra polida, contas de colar em xisto, alguns pequeníssimos fragmentos de cerâmica…

Uma grande diferença entre o Cerro do Oiro e o Esgravatadouro foi, porém, estabelecida de raiz pelas próprias comunidades neolíticas. Ao contrário do Esgravatadouro, naquele cerro houve lugar a um enorme esforço construtivo.

A edificação de todos aqueles espaços exigiu uma mão-de-obra e uma capacidade de coordenação de trabalhos coletivos que não encontramos nas pequenas sepulturas. Transportar lajes para a sepultura e blocos de pedra cerro acima, ao longo de uma íngreme encosta, e carregar com as pedras centenas de quilos de argila para consolidar toda a estrutura, tudo isso nos remete para um contexto social e ideológico diferentes.

E mais: quem seria a personagem, ou personagens, que mereceria tratamento tão diferenciado na morte, que justificaria tal esforço conjunto por parte da sua comunidade? Que personagem justificaria, além da construção da sua morada final, também o arranjo de espaços adjacentes, num local com uma vista impressionante sobre toda a faixa litoral, onde teriam tido lugar celebrações e outros rituais?

Estes aspetos, invisíveis ao primeiro olhar sobre um sítio arqueológico, são no fundo a nossa derradeira demanda enquanto estudiosos do Passado: a reconstituição dos modos de vida, dos quotidianos, das relações sociais, do olhar sobre a morte, enfim da mundivisão das sociedades que nos antecederam.

 

Vista aérea do Cerro do Oiro, notando-se a complexa estrutura pétrea que cobre o topo do cerro e, ao centro, as lajes que formam o espaço sepulcral do monumento – Foto de drone: Filipe Correia

 

Já sabemos, por outros trabalhos no Barlavento, que estamos perante sociedades de agricultores e pastores, e por vezes também de mariscadores e pescadores.

Sabemos que construíram outros sepulcros noutros locais do Algarve. Deduzimos que quem cultuava os seus mortos no Esgravatadouro, no Cerro do Oiro e em todas as outras necrópoles da envolvente das Caldas de Monchique, deveria habitar o sopé da serra, onde os solos e a disponibilidade de água favoreciam a fixação humana naquela época.

Deduzimos também que todo este território por onde se distribuem as necrópoles se constituiria como um vasto espaço sagrado, um santuário na encosta da serra, sobre o mar mas mais perto do céu, onde de algum modo viveriam eternamente os seus ancestrais. As águas termais não deveriam também ter sido indiferentes a esta escolha…

Mas há ainda muito por fazer, no terreno e sobretudo no laboratório. Há muitas hipóteses para pôr à prova, mas há já também histórias para contar sobre estes nossos antepassados monchiquenses.

Estas oito semanas de trabalho de campo já permitiram recuperar um volume enorme de dados, que demorarão ainda um par de anos a processar completamente.

Como responsável pelo processo todo, da elaboração do projeto à sua conclusão, tenho pois a responsabilidade de trazer os seus resultados ao conhecimento do meio científico e do público.

O Município de Monchique terá uma palavra determinante a dizer sobre o que fazer quanto à valorização deste património muito singular do seu território, assim como os organismos de tutela.

Para já, todavia, o reconhecimento do esforço feito nestas oito semanas é devido ao Fabián Cuesta-Gómez, que, no quadro do projeto, dirigiu competentemente e meticulosamente todas as tarefas inerentes a ambas as escavações, ao Fábio Capela, que assegurou o necessário apoio logístico a partir do município, às duas dezenas de estudantes que voluntariamente participaram nestes trabalhos, e, por último, mas não menos importante, ao Presidente da Autarquia, o Dr. Rui André, por ter promovido a elaboração do projeto de investigação e acompanhado, com indisfarçável interesse pessoal, os resultados que foram sendo obtidos.

Está nas mãos de todos nós dar continuidade ao que agora se encetou e garantir que os desejos manifestados por todos aqueles que nos visitaram no Dia Aberto possam ser realizados.

 

Autor: António Faustino Carvalho é professor da Universidade do Algarve, arqueólogo e autor de diversos livros e artigos científicos sobre o Neolítico

 

 

 



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