Em Alcoutim, ensinam-se técnicas de construção antigas para garantir o futuro

Dez aprendizes passaram dez dias em Balurcos com a mão na massa

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

Rui já tem aplicado técnicas de construção tradicionais nas suas casas na aldeia de Balurcos e quer promover o seu uso no concelho de Alcoutim. Bellini, como é chamado por todos, sonha em ter um alojamento em taipa no concelho de Aljezur. José, professor de física e química, quer lançar na sua escola um projeto de construção sustentável, e Francisco, de apenas 13 anos, pensa em fazer uma persiana em cana para instalar no seu quarto.

As motivações são muitas e os objetivos concretos também, mas há algo em comum entre a dez participantes no curso de “Transmissão de Saberes Mestre-aprendiz: Arquitetura Sustentável de Cana e Revestimentos”, organizado pela QRER – Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade e que decorreu até ontem, dia 1 de Agosto, na Aldeia de Balurcos, em Alcoutim: a vontade de construir (e viver) de forma mais sustentável, usando os saberes dos nossos antepassados.

Ao longo de dez dias, os participantes aprenderam a dominar várias técnicas, que podem ser aplicadas quer em interiores, com diversos fins, quer para construir estruturas de raiz.

O curso teve uma componente dupla. Além de técnicas de construção com cana, houve uma parte de revestimentos e rebocos com argilas e argamassas finas.

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Foi precisamente no dia em que a componente da terra foi introduzida que o Sul Informação se fez ao caminho, para assistir in loco a este workshop. O ponto de encontro foi o antigo lavadouro de Balurcos, o local escolhido para aplicar as técnicas que foram sendo ensinadas pelos arquitetos da Cooperativa Voltes, de Barcelona, e pelos seus convidados da escola Origens e da Terra Pura, da mesma região de Espanha.

Afinal, esta foi uma formação em contexto real de trabalho, no âmbito da qual foi recuperado este lavadouro, um edifício público da aldeia alcouteneja, que passará a funcionar como um espaço de convívio, descanso e usufruto da comunidade local.

«Há uma grande expectativa. As pessoas passam ali, veem aquilo e não sabem o que se vai passar… Passam e estão com algum medo do que é nós vamos fazer ali, com medo que descaracterizemos o lavadouro, porque é um edifício histórico. Mas, desde há um dia ou dois para cá, começam a ver que as coisas estão a ficar bonitas. As pessoas querem ir ver e estão a ficar contentes com o resultado», contou Rui Romba, que vive na aldeia e impulsionou a escolha de Balurcos para fazer esta formação.

Apesar de ser, de certa forma, um anfitrião – e dos bons, já que faz todos os dias o almoço para a equipa, à base de produtos locais de elevada qualidade, e com mestria -, prefere ser visto como  «um participante».

«Gostava de impulsionar esta técnica no concelho de Alcoutim. Porque o concelho está um bocadinho carenciado das antigas técnicas de construção, de construção sustentável», explicou.

Rui tem pugnado por recuperar as casas que tem na aldeia usando técnicas tradicionais, até porque se trata de habitações bem antigas. E esta formação só veio ajudar.

 

Rui Romba – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

«Este curso surge na sequência de um outro que fizemos no ano passado, também em Alcoutim, no âmbito do Magallanes_ICC, um projeto em que a QRER está a participar, em parceria e com os apoios das Câmaras de Alcoutim e de Loulé», segundo João Ministro, da ProActiveTur, em representação da QRER.

«O projeto tem o objetivo de atrair, para o interior, jovens com ideias inovadoras, ao nível das indústrias culturais e criativas. E nós desde o início que achamos que havia aqui, na zona de Alcoutim, um potencial à volta da cana. Não é o único potencial, obviamente, mas tentámos puxar pela questão da cana porque foi uma técnica muito utilizada no passado. Sabemos que é uma planta que tem imensas potencialidades, então estamos, no fundo, a incentivar e a sensibilizar jovens e menos jovens, pessoas que queiram aproveitar este conhecimento, para desenvolver projetos», acrescentou.

No primeiro curso, em Novembro do ano passado, trabalhou-se «ao nível da utilização da cana em estruturas arquitetónicas, diferentes estruturas com arcos». No final, «foi construído um túnel que está instalado no Castelo de Alcoutim».

«Neste segundo curso, estamos a ensinar técnicas muito concretas de utilização das canas em tetos falsos, paredes, estores, persianas. E, também, com misturas de argilas. Mais uma vez, é transmitir técnicas e ensinamentos à volta destes materiais, para que possam surgir daqui projetos que façam aproveitamento destes conhecimentos e que possam dar sequência ao que aqui se aprendeu», ilustrou João Ministro.

 

João Ministro – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

«A formação que estamos a ministrar pretende dar a conhecer técnicas distintas de construção usando a cana, com o objetivo de recuperar a arquitetura tradicional que existia em toda a península», resumiu, por seu lado, Marta Arnal, arquiteta catalã da Cooperativa Voltes.

«Na Catalunha, no Sul de Espanha e em algumas zonas do Norte, sempre se trabalhou muito com a cana e a nossa cooperativa, sendo de arquitetos, quer reivindicar esse tipo de construção, tendo em conta que usa um material natural, que se encontra em todo o território», enquadrou.

«Aqui em Portugal, particularmente nesta zona do Algarve, existe muita cana e antes construía-se muito com ela».

Na manhã de dia 29 de Julho, bem cedo, os aprendizes juntaram-se no lavadouro, para a primeira aula prática de utilização de argila sobre estruturas de cana, que já tinham sido criadas nos dias anteriores.

«O que temos feito durante a oficina é trabalhar todo o processo, desde a recolha à transformação do material. Fomos ao rio recolher a cana, que depois foi limpa, preparada e transformada num material de construção», descreveu Marta Arnal.

A arquiteta catalã explicou que este «é um processo manual, muito artesanal. Temos trabalhado com o grupo, ensinado a usar distintas ferramentas, para que, no final, saibam aplicar o elemento cana como material de construção, usando diferentes técnicas, de modo a recuperar o antigo lavadouro aqui de Balurcos».

 

Marta Arnal – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Este, afinal, é um recurso que é muito abundante. «Para além disso, trata-se de uma espécie invasora, cujo o crescimento, se não for controlado, não permite que as outras plantas se desenvolvam».

«Para nós, é importante introduzir este material, sobretudo na construção mais sustentável, como elemento para fazer paredes interiores e revestimento de tetos, por exemplo. É sobretudo usado no interior das casas, porque não pode estar muito tempo exposto ao sol e à chuva», disse a formadora.

«Permite-nos fazer estruturas ligeiras, com poucas ferramentas e com trabalho manual. Mas é algo que qualquer pessoa pode usar na sua casa. Para fazer tabiques ou paredes interiores mais finas, para criar novas divisórias, este pode ser um bom recurso», explicou.

Também pode ser usada «para isolamento, mas, neste caso, mais como estrutura base para combinar com outros materiais que te garantem essa parte de isolamento do ruído, do calor. Também pode ser um suporte onde aplicar o gesso, a cal ou o barro. Também se usa muito nos tetos, mais com um efeito decorativo, mas que também dá um pouco de conforto sonoro».

 

Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Esta versatilidade da cana como material de construção, aliada à facilidade em arranjar o material, casam na perfeição com os planos de José Vale, que participou no curso juntamente com o seu filho Francisco.

«Tenho um interesse pessoal por esta área de conhecimento, mas também estou cá por razões profissionais. Eu sou professor no Agrupamento Paula Nogueira, em Olhão, e estou a tentar implementar na escola um projeto de construção sustentável», contou ao Sul Informação.

«Vamos tentar construir na escola, não uma casa, mas uma sala de aula usando estas técnicas de construção e de isolamento. Ainda estamos a começar. Já houve algumas atividades. Mas esperamos avançar mais com o projeto no próximo ano letivo», reforçou.

Francisco, o mais novo dos aprendizes, gostou do curso e conta a sua experiência:  «Já aprendi várias técnicas de construção, como fazer uma janela, um persiana e outras».

«A que mais gostei até agora foi a da persiana. Talvez faça uma para meter no meu quarto», disse.

 

José e Francisco Vale – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

O outro Francisco do grupo, neste caso uns anos mais velho e com o apelido Bellini, é “repetente”, uma vez que também participou na formação do ano passado.

«Tem sido muito bom. Em Novembro, o workshop foi só com canas e aprendemos a fazer os arcos e estrutura em cana. Desta vez, é uma aplicação numa área mais construtiva, mais prática. Da outra vez, fizemos um túnel dentro do Festival do Contrabando, incluído na programação, que é uma estrutura estética. Desta vez, é uma estrutura funcional, e juntamente com a terra, cria ali um isolamento térmico e acústico. É uma técnica mais aplicável, especialmente para mim, para o alojamento que quero ter, para o turismo que quero desenvolver ali na zona de Aljezur», revelou ao nosso jornal.

«Todo o nosso projeto do alojamento já é pensado em taipa, em terra, com as paredes de 50 centímetros. Mas com a parte das canas e da terra eu posso fazer, não a construção em si, mas sim pequenas áreas de sombreamento, áreas de convívio, infraestruturas de sombra, basicamente. Tudo o que é paisagístico», acrescentou.

Para Francisco Bellini, a componente ligada à construção com terra deste curso terá, desta forma, sido particularmente útil.

E ela foi possível graças à cooperação que já existe na Catalunha, nesta área.

 

Francisco Bellini – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

«Somos três entidades: a cooperativa Voltes, onde trabalhamos a arquitetura em geral, mas muito a arquitetura tradicional. Também estão cá pessoas da escola de bioconstrução Origens, sediada em Girona, uma entidade que promove oficinas de construção natural. E também temos o Oriol Balliu, que trabalha com a Pura Terra, é autoconstrutor [ecológico] e dá formação sobre todo o tipo de construção com terra, aplicação de cal e outras técnicas», elencou Marta Arnal.

«Nós temos uma rede no Norte da Catalunha, na zona de Girona, e é por isso que nos conhecemos. Somos diferentes arquitetos e construtores que trabalhamos na bioconstrução, mais sustentável. Faz já oito anos que nos juntámos para ter uma rede de contactos e de apoio e poder fazer formações conjuntas e trabalhar juntos em obras», referiu.

Segundo explicou ao Sul Informação Oriol Balliu, o seu objetivo e o dos formadores da escola Origens foi «ensinar ao grupo técnicas de construção com terra, para valorizar este material que temos sempre debaixo dos pés».

«Este é o melhor material de construção que existe no mundo e de longe.  Começo sempre as minhas formações dizendo isto: a terra é o material mais universal, mais ecológico, mais reciclável, mais fácil de usar e que está em todo o lado. Nem toda a terra é boa, mas muita é», defendeu.

«Aqui, estamos a ensinar rebocos sobre entrelaçados. A terra pode-se usar de muitas formas, entre as quais como estrutura, para fazer muros maciços. Mas, quando a terra não tem areia, pedras e estrutura própria, usa-se a terra como enchimento de entrelaçados vegetais. Neste caso, estamos a usar a cana», disse.

 

Oriol Balliu – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

E há muitas vantagens em usar este material. Por um lado, é «de extração e transformação local, não tem energia associada, é reciclável e reaproveitável, nada se perde». Por outro, «é um material que transpira, regula a humidade interior, é muito bom ao nível acústico e tem inércia térmica, pelo que custa a aquecer ou a arrefecer», rematou o formador catalão.

Apesar de dez dias não serem muito tempo, Marta Arnal garantiu que tudo correu muito bem.

«O grupo está a entrar aos poucos no processo. Alguns já conheciam o mundo da bioconstrução, mas para os outros é uma maneira de lá entrar. É uma boa equipa, estão a trabalhar muito», elogiou.

«Para além disso, ao aprender uma técnica, ao reabilitar um espaço, ganhas conhecimento, tens formação, mas também experimentas o que é estar numa obra e vês o resultado. Penso que esta fórmula de ter um grupo de gente durante algum tempo a aprender e a construir um espaço é muito potente. Porque dá mais vontade e motivação às pessoas», concluiu.

Já João Ministro espera que, «no final disto tudo, haja pessoas que continuem a trabalhar nisto e, obviamente, alguém que aproveite o facto desta região ser muito rica em cana e que se possa instalar neste território. Porque, no fundo, no final deste processo, tudo o que nós queremos é fixar gente no concelho, para tirar proveito daquilo que são os recursos naturais, de uma forma sustentável».

Este é um projeto gerido pela Cooperativa QRER e cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) no âmbito do programa Interreg V A España–Portugal (POCTEP) 2014-2020,contando igualmente com o cofinanciamento da Câmara Municipal de Loulé e da Câmara Municipal de Alcoutim e com o apoio da União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim, da Junta de Freguesia de Alte e da Escola Profissional Cândido Guerreiro, de Alte.

 

Fotos: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

 

 



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