As enigmáticas escolhas do Programa da Orla Costeira Espichel-Odeceixe

Exija-se que o POC-EO nos esclareça a todos sobre quais os fundamentos para tão enigmáticas opções

Embora não pareça, a proposta de novo Programa da Orla Costeira (POC) para o troço Espichel-Odeceixe encontra-se em discussão pública até dia 3 de Setembro. Antes publicitava-se, realizavam-se sessões públicas, editavam-se brochuras ou folhetos que explicavam o que estava em causa. Hoje, temos o portal Participa e os documentos que lá se disponibilizam. Mas isso só não chega. Assuntos desta natureza justificam um maior investimento na sua divulgação.

Mandado elaborar em 2011, após um longo interregno em que andou perdido em combate, eis que reaparece o novo e magno instrumento de ordenamento dos 212 quilómetros de costa entre o Cabo Espichel e Odeceixe. Estamos em Agosto de 2021, 10 anos após o tiro de partida. Os antecedentes, a natureza e a complexidade do que está em causa não aconselhariam a uma apresentação e discussão pública deste instrumento de gestão territorial num mês diferente?

O que está em causa é, tão só, o estabelecimento de um novo regime de uso dos solos para uma área de 476 quilómetros quadrados, algo que necessariamente afeta, direta ou indiretamente, a vida de milhares de pessoas estabelecidas neste território e outras que nele tenham interesse.

É sabido que, aos programas territoriais, não é legalmente permitido estabelecer regimes de uso dos solos. Só aos planos de âmbito municipal. Mas, tal como noutros POC, também neste se insiste em dar nomes diferentes a coisas que resultam exatamente no mesmo. As chamadas “normas específicas” (de conteúdo dispositivo) e o zonamento a que se convencionou chamar Modelo Territorial em lugar de carta de ordenamento, não são afinal outra coisa que não isso mesmo: um regime de uso dos solos.

Além de não se perceber – porque a documentação disponível não o esclarece – quais as razões que levaram a que fossem precisos 10 anos para que esta proposta visse a luz do dia, há outros aspetos que nos parecem mal explicados. Por exemplo: quais são os direitos adquiridos que estão na mira deste POC? Afinal, que licenças urbanísticas quer o Estado revogar, em que locais, porquê e a que preço?

Num contexto de alterações climáticas, de aumento do nível médio das águas do mar e de maior frequência de fenómenos meteorológicos extremos, os Estados, a bem da resiliência territorial, têm a responsabilidade de suscitar as devidas atualizações doutros planos territoriais vigentes cujos normativos não atendam cabalmente a esses aspetos, tornando-os, com base na melhor informação disponível, mais restritivos e criteriosos relativamente a futuros processos de edificação e urbanização em zonas ameaçadas. Caso contrário, não se estará a agir em abono da diminuição da exposição de populações e bens a tais fenómenos meteorológicos mas do seu contrário.

Reconhecidamente, as circunstâncias obrigarão a maiores restrições urbanísticas e até mesmo à eliminação de alguns direitos de edificação legitimamente adquiridos. Então, como perceber que, no POC Espichel-Odeceixe, se excecionem determinados planos vigentes da disciplina restritiva geral, equiparando meros e potenciais direitos a verdadeiros direitos adquiridos, quando não o são?

Vejamos. Na página n.º 127 do Relatório do Programa lê-se que “o POC-EO escolheu não inviabilizar, na Faixa de Proteção Costeira e na Faixa de Proteção Complementar, as operações urbanísticas necessárias para implementação dos Núcleos de Desenvolvimento Turístico e Núcleos Urbanos de Turismo e Lazer previstas no PROTA [Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo]”.

Tendo sido o POC-EO e, pelos vistos, mais ninguém o responsável por tão relevante escolha, exija-se, ao menos, que o POC-EO nos esclareça a todos sobre quais os fundamentos para tão enigmáticas opções.

 

Autor: Nuno Marques é Urbanista, ex-vice-presidente da CCDR/Algarve (2012-2020)

 

 



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