Filipe Caldas de Vasconcellos pegou na quinta que está nas mãos da sua família desde 1810 e tornou-a numa produtora de vinhos marcadamente algarvios, entre a tradição das castas e a inovação das experiências e dos resultados.
O Morgado do Quintão, criado pelo 1º Conde de Silves, seu antepassado, situa-se num concelho de grandes tradições vínicas, o de Lagoa, com vista para a serra de Monchique, lá ao fundo, mas sob a influência do ar salgado do Oceano Atlântico, que fica ali a escassos cinco quilómetros. Tudo isso, juntando aos solos arenosos e à aposta nas castas algarvias – negra-mole e crato – dá origem a vinhos que refletem a frescura e a salinidade atlântica do seu terroir.
Filipe pegou na tradição do Morgado do Quintão – a vinha com 40 anos, com cepas da casta negra-mole, bem como a vinha com 80 anos, plantada no chão, de crato branco – e, com a ajuda da enóloga Joana Maçanita, tem passado os anos mais recentes a criar vinhos diferentes, que começam a conquistar os mercados mais exigentes.
Na semana passada, Filipe e Joana foram os anfitriões de um grupo restrito de jornalistas, onde o Sul Informação se integrava, para dar a conhecer o Morgado do Quintão, que se está a afirmar como um dos produtores pioneiros da revitalização da tradição vitivinícola do Algarve.
Num passeio pela vinha, ainda de manhã, com o calor já a apertar, Filipe desafia: «Se conseguirem encontrar outra vinha com 40 anos ou com cerca de 80, como as nossas, aqui no Algarve…». É que, desde a década de 60 do século passado, os terrenos de vinha na região sofreram a concorrência do turismo e da imobiliária – muitos transformaram-se em aldeamentos turísticos, outros em campos de golfe, outros ainda foram destruídos para deles retirar a preciosa areia para a construção. Daí que uma quinta algarvia onde as vinhas têm 80 ou 40 anos seja uma raridade.
Raridade é também a própria casta. Joana Maçanita explica que «vocês nunca vão provar um vinho de negra mole de outro sítio que não seja daqui, da região do Algarve, porque ela não existe em mais sítio nenhum. Temos aqui uma coisa muito especial!».
A enóloga acrescenta que se está «a falar de menos 0,1% do encepamento do Algarve, ou seja, menos de 0,1% das vinhas do Algarve são negra mole. Estamos a falar de uma casta que está praticamente acabada. E nós queremos mantê-la».
No Morgado do Quintão, que tem um total de 60 hectares, há atualmente sete hectares de negra mole, mais seis de crato branco e outras castas, como castelão. Na vinha velha de crato, «o nosso viticultor, quando aqui chegou, disse que ia arrancá-la. Mas eu disse para ele não tocar nesta vinha», conta Joana Maçanita.
Filipe Caldas de Vasconcellos aponta para as cepas da vinha velha, ainda desorganizadas, algumas mortas, a admite que «é uma vinha pouco produtiva». Mas garante que o que se perde em produtividade, ganha-se em qualidade. Como se irá ver daí a pouco, na prova de vinhos.
«Quando nos perguntam se vamos fazer alguma coisa nova, queremos tentar ir buscar algumas outras castas que, praticamente, não existem no Algarve, só se encontram em um ou outro encepamento, misturado nos campos de ensaio que ainda existem. E queremos tentar trazer essas castas que são daqui», diz Joana.
Filipe Caldas de Vasconcellos repisa: «só queremos castas que têm histórico no Algarve, ou seja, nós não vamos trazer Chardonay. São sempre castas que há no Algarve há mais de 100 anos e nós vamos trazê-las para complementar as que temos».
Ambos salientam que o Morgado do Quintão aposta nas duas castas mais antigas de Portugal: crato branco (que é conhecida noutras regiões como síria, roupeiro, códega, etc), a mais antiga de todas, e negra mole, a segunda mais antiga e, ainda por cima, autóctone do Algarve. «Toda a gente fala do do Douro, que é referência, antiguidade, história. Mas, muito antes do Douro, já fazíamos vinho aqui no Algarve».
Joana Maçanita, que é enóloga de outras quintas algarvias, mas tem também projetos no Douro, admite que, hoje em dia, «é difícil pensar no Algarve como uma região de vinho. Acho que as pessoas não têm esse chip na cabeça». Isto apesar de a região ter tradições milenares de produção vinícola.
Para contrariar essa ideia feita – que até no próprio Algarve está enraizada, nomeadamente entre os consumidores e na restauração -, Filipe resolveu apostar na tradição, mas dando-lhe um forte toque de inovação. «Fizemos aqui duas coisas muito importantes: manteve-se aquilo que estava cá, não o destruindo. E depois, nos dois vinhos que lançámos, que foi o Palhete e o Clarete, no fundo, relançámos aquilo que era a experiência de vinificação da quinta».
Joana Maçanita reconhece que as novas técnicas aplicadas à produção de vinho «ajudam em várias questões», mas defende que «o mais importante é que a mente deixou de ser pequena. Acho que cada vez mais nós somos 360º, cada vez mais nós acreditamos que o peixe pode ser grelhado só com sal, mas também pode ser com uma redução de outra coisa qualquer. E não é o grelhado que é bom e o outro não presta. Há todo um leque de possibilidades para preparar as matérias primas», seja na gastronomia, seja nos vinhos.
Antes, recorda a enóloga, «as pessoas só queriam vinho tinto concentrado com álcool. E a casta negra mole não sabia fazer isso. Portanto, não era a casta certa. Agora, se me perguntar qual é o melhor espumante que eu já fiz: é de negra mole, branco de tintas, negra mole! Há tanto que esta casta pode fazer e que não passa só por fazer um tinto concentrado do Douro, de Bordéus, de Rioja, como supostamente se considerava de qualidade. Essas eram as referências».
No Algarve, no século XX, a partir dos anos 40 e 50, a vinha manteve-se como atividade agrícola importante, graças ao nascimento das adegas cooperativas, das quais havia quatro – Lagoa (a mais importante), Portimão, Lagos e Tavira. Havia ainda produtores privados – a adega Bemparece e a Cramujeira, em Lagoa, eram dos mais conhecidos. Mas as adegas cooperativas começaram a ter problemas financeiros, não pagavam aos viticultores, as vinhas sofriam a concorrência da construção e do turismo, a qualidade dos vinhos, que nunca fora muito grande, caiu a pique. Na viragem do século, restava apenas uma adega, a de Lagoa, que congregou todas as outras e passou a chamar-se Única.
Em resposta à decadência da cooperativa e dando corpo a um renascimento do interesse pela vitivinicultura, começaram a surgir as quintas privadas. Em 2010, havia já 12 produtores privados, agora há cerca de meia centena. «Há um movimento de acreditar, acreditar no Algarve e perceber o potencial» do vinho na região, salienta a enóloga Joana Maçanita.
Continuando a passear pela vinha, com os bardos aramados e ordenados apesar dos seus 40 anos, a enóloga segura num cacho de uvas negra mole, para o mostrar aos jornalistas: «ter cachos, tintos, brancos e rosés no mesmo cacho. É a casta mais diversificada que eu já conheci», garante, entusiasmada.
«Eu consigo fazer vinho tinto com isto, consigo fazer vinho branco, consigo fazer vinho espumante, é um interminável número de coisas que conseguimos fazer com a negra mole», enumera.
Por isso, acrescenta, «o que o Morgado do Quintão está a transmitir é que Algarve é negra mole. Algarve é tradição. Tal como quando nós pensamos em Provence, pensamos em rosé. O nosso objetivo é que, daqui a 20 anos, quando falarmos em Algarve, estejamos a falar em negra mole. E não é só os críticos ou os entendidos, é toda a gente. Nós sabemos que, quando vamos a Bucelas, vamos beber arinto. É uma coisa que já está em nós. No Alentejo, já sabemos que vamos beber alicante bouschet, trincadeira. No Douro, as tourigas. No Algarve, a negra mole. Quero que, em 20 anos, não haja dúvidas que esta é a região do negra mole!».
Tendo em conta a localização geográfica do Algarve, é aqui que as vindimas começam mais cedo, a nível nacional. Joana Maçanita recorda que «o Algarve sofre duas influências: o Atlântico, e vocês vão sentir isso na salinidade dos vinhos, mas também a influência dos ventos do Norte de África, que aquecem a região. Nós somos, sem dúvida, das regiões que começa a vindimar mais cedo e isso quer dizer que somos uma região precoce, mas sem ser quente na verdade. Somos solarengos, mas sem sermos quentes como o Alentejo».
Daí que, em terras algarvias, a vindima do crato branco comece por volta de 5 de Setembro, mas até pode ser necessário começar mais cedo, em Agosto.
Curiosamente, a vinificação não é feita na quinta. Ou seja, no Morgado do Quintão não há, para já uma adega, sendo o vinho feito nas instalações de outros produtores, na Quinta da Vinha, em Silves, e na Adega João Clara, em Alcantarilha.
Mas Filipe Caldas de Vasconcellos, provando mais uma vez que não é capaz de pensar pequeno, anuncia: «estamos agora a fazer um projeto com o arquiteto Aires Mateus e vamos fazer uma pequena adega para vinificar só alguns vinhos. Será a adega da família».
Neste momento, o Morgado do Quintão produz 20 mil garrafas por ano, tendo começado com 3 mil, em 2016. «Ele é muito medroso. Eu digo sempre que vamos triplicar e ele tem medo», brinca a enóloga Joana Maçanita.
O seu mercado é sobretudo fora do Algarve, que apenas representa 15% das vendas (pode encontrar-se em garrafeiras e nos supermercados Apolónia). O restante é vendido para fora de Portugal (50%) e para o resto do país (35%), sobretudo em garrafeiras especializadas e na restauração premium.
Mas Filipe confessa que quer crescer no Algarve. «Nós, na verdade, achamos que é importante o mercado algarvio. Não faz sentido um produtor no Algarve, que fala no Algarve e quer recuperar o Algarve, depois estar apenas em Londres. Mas queremos ser, também, o produtor que mostra o potencial da região e que não tem medo de levar estes vinhos para Paris, Nova Iorque, para Lisboa… Mas há um dado que eu acho importante vocês saberem, é que só 3% do vinho que é vendido no Algarve, que é uma região que consome para ai 25% do vinho de Portugal, só 3% é que é algarvio. Nas cartas dos restaurantes algarvios, há muito pouco vinho algarvio. Esta é a minha batalha. Podem não pôr o meu, mas ponham vinho algarvio nas cartas dos restaurantes da região!».
O Morgado do Quintão, como parte da sua aposta na sustentabilidade e num regresso às origens, está em processo de certificação biológica, não utilizando herbicidas nem pesticidas nas suas vinhas há já três anos. Além disso, vinifica com uma lógica de baixa intervenção na adega. «Os nossos vinhos não são interventivos», garante Joana Maçanita, acrescentando que a filosofia passa por «mais terra e menos homem».
Por ser muito versátil, a casta negra mole é utilizada para fazer alguns dos vinhos mais icónicos da quinta, tais como o Palhete (co-fermentação de Negra Mole e Crato Branco) e o Clarete. Também a mais recente novidade – o Branco de Tintas – tirou partido da potencialidade desta casta, apresentando-se num vinho altamente complexo e elegante.
Numa quinta onde cada videira é cuidada e aproveitada, até existe aquilo a que os seus responsáveis chamam «a vinha maluca». É uma vinha «com os seus 60, 70 anos», que foi deixada por cuidar por muito tempo e que, sendo a videira uma planta trepadeira, trepou pelas vizinhas oliveiras centenárias acima. Mas as suas uvas (crato branco, na sua maioria, com um pouco de negra mole e de boal) são vindimadas e até dão origem a dois dos mais interessantes vinhos do Morgado do Quintão: o Branco Curtimenta, lançado em Março do ano passado (990 garrafas) e o Branco Especial, lançado em 2018 (1020 garrafas).
No fundo, é a concretização daquilo a que tanto Filipe como Joana se foram referindo, ao longo do dia: a sua necessidade de «fazer coisas fora da caixa, de experimentar».
Estes dois vinhos foram provados pelos jornalistas, na sala grande do edifício principal da quinta, reservado à família (o Morgado do Quintão tem também duas outras casas de alojamento local, ocupadas ao longo do ano sobretudo por turistas estrangeiros).
Mas a prova começou com o Branco de Tintas ’20, lançado em Abril e com uma pequena produção de apenas 830 garrafas, que, segundo a enóloga Joana Maçanita, prova à exaustão que «não é preciso arrancar negra mole [que, em teoria, é uma casta tinta] para fazer brancos».
Seguiu-se o Palhete ’19 (com as castas negra mole e crato branco), o Clarete ’19, um tinto de negra mole, o Branco de Ânfora ’20, mistura de castas crato e negra mole, o Tinto de Ânfora ’20 (castelão e negra mole), ambos lançados em Abril passado, o Branco Vinhas Velhas’10 (crato branco, da tal vinha com 80 anos), e, quase a finalizar, os dois brancos já referidos feitos a partir da «vinha maluca».
Quanto ao Branco Vinhas Velhas’10, a enóloga salientou que «este vinho e o vinho destas uvas não é replicável, tem uma identidade muito própria. É da casta, do local e da idade da vinha».
A rematar a prova, uma surpresa: o primeiro espumante do Morgado do Quintão, feito com 100% de negra mole. É um vinho que ainda está em cave, a ser preparado para começar a ser engarrafado e que só deve ser lançado no mercado «no fim do Verão ou antes do Natal». Um espumante que cheira a negra mole, seco e com alguma salinidade. Ou seja, um excelente remate, a mostrar o acerto da aposta do Morgado do Quintão no casamento, nem sempre fácil, entre tradição e inovação.
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Uma quinta de mulheres
Desde a morte de sua mãe, a artista plástica Teresa Caldas de Vasconcellos, é Filipe, com uma sólida carreira internacional no mundo da gestão, que se ocupa dos destinos do Morgado do Quintão.
Mas esta sempre foi, como o próprio recorda, uma quinta muito ligada às mulheres. Basta ver que a enóloga é Joana Maçanita. «É engraçado que esta quinta sempre foi, maioritariamente, gerida por mulheres. Antes de ser da minha mãe, era de uma tia dela que não tinha filhos. Aquela história tipicamente portuguesa, de três senhoras que vivem juntas e não têm filhos, uma delas chamava-se Teresa, era assim a mais business woman, vinha de chaufeur de Lisboa, chegava à quinta e calçava umas botas… Depois foi essa tia Teresa que deixou a quinta à minha mãe, que também se chamava Teresa». E a sua mãe geriu o Morgado durante década e meia.
«Tenho ali correspondência desta minha tia avó Teresa para as pessoas que geriam a quinta na altura, escrita à máquina, em que ela pergunta coisas do género “como é que estão a correr as vindimas?” e alguém lhe responde… As conversas que ela tinha são as mesmas que eu hoje tenho por whatsapp. As preocupações são as mesmas…Eu sou apenas mais um nesta cadeia».
Filipe Caldas de Vasconcellos apoiou a criação de uma estética minimalista e moderna para a marca. Alguns dos rótulos de cores e formas arrojadas que distinguem os vinhos do Morgado do Quintão foram desenhados por artistas plásticos, entre os quais Teresa Caldas de Vasconcellos, sua mãe.
O Morgado promove residências artísticas, sendo que muitos dos rótulos têm sido criados por alguns dos artistas que passam pela quinta. «Todos os anos vamos ao arquivo e tiramos uma peça do arquivo da mãe para ilustrar um vinho. A mãe faz um dos rótulos e o artista plástico faz outro, e, no fundo, é uma conversa entre uma artista que está ligada ao lugar, apesar de já não estar viva, e um artista que se vem ligar ao lugar».
Até nisso, o Morgado do Quintão é inovador.
Em 2019, antes da pandemia, começaram também a promover provas de vinho, que têm sido um sucesso. Nesse primeiro ano, tiveram 3000 pessoas nessas provas. Para participar, basta estar atento às redes sociais e ao site do Morgado do Quintão.
As provas de vinhos dão mais corpo à aposta paralela que a quinta faz no turismo rural, e que ajuda a garantir a sua sustentabilidade económica.
Ali, entre o mar e a serra, com o resmalhar do vento nas folhas das videiras e o cheiro das figueiras, à sombra das oliveiras centenárias, com um copo de Branco de Tintas ’20 na mão, o Morgado do Quintão mostra a sua alma de quinta histórica onde hoje também se respira a contemporaneidade.
Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação (exceto quando indicado)
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