Breve olhar sobre «O Algarve económico», publicado há 103 anos, ou viagem ao passado, presente e futuro?

A obra, não obstante ter sido publicada há mais de 100 anos, mantém sobre os mais diversos aspetos uma atualidade tão assombrosa, quanto surpreendente

Há pouco mais de 100 anos, em 1918, as livrarias viam chegar aos seus escaparates o livro «O Algarve Económico», de Tomás Cabreira.

A terrível pandemia que então se abateu sobre o mundo, a que Portugal, e o Algarve em particular, não escaparam, e a própria morte do autor em plena crise Pneumónica, a 4 de Dezembro de 1918, em Tavira, terão retirado muito do brilho e da discussão que a obra merecia.

Figura maior da região, natural de Tavira, onde nasceu a 23 de Janeiro de 1865, militar, republicano, vereador da Câmara Municipal de Lisboa em 1908, licenciado em engenharia civil, professor universitário, deputado constituinte por Faro em 1911, senador e ministro das Finanças em 1914, Tomás Cabreira atingiu o grau de doutor em 1916, e o posto de coronel em 1918.

Autor de multifacetadas obras, constituiu a alma maior do I Congresso Regional Algarvio (1915), que já aqui evocámos.

Regionalista convicto, defendeu sempre o Algarve, como aliás ficou patente nas últimas frases da conclusão do livro que aqui nos propomos lembrar: «o futuro e engrandecimento do Algarve estão nas mãos dos filhos dessa abençoada terra e para que ella seja rica e próspera é que foi escripto este livro, por um dos algarvios mais humildes mas também dos mais fanáticos pela sua terra natal».

Mas fará sentido lembrar hoje uma obra já centenária? Um Algarve que há muito desapareceu, sob o peso dos anos e das diversas gerações que se revezam sucessivamente?

Na verdade, quase nos atrevemos a dizer que o livro «O Algarve Económico», dado à estampa há 103 anos, está, nos nossos dias, tão atual como então e só podemos lamentar que seja tão difícil encontrá-lo, por estar há muito esgotado e votado injustamente ao esquecimento, apesar de presente na maioria das bibliotecas da região.

Profundamente documentada, a obra tinha como propósito demonstrar que o Algarve detinha todas as condições para usufruir de uma completa autonomia administrativa, como então acontecia com os distritos da Madeira e dos Açores.

Pois é caro leitor, autonomia para a região, onde é que já ouvimos isto?

Tomás Cabreira não se limita a delinear a economia regional, ele assinala os constrangimentos e enumera as potencialidades que a mesma encerrava. Em suma, é feito o diagnóstico, apontadas soluções e traçados caminhos a longo prazo.

Hoje, quando uma nova pandemia atirou o Algarve para uma crise sanitária, económica e social, o seu livro, «um dos trabalhos mais notáveis que se têm consagrado» à região, nas palavras de Mário Lyster Franco (1902-1984), tem o condão de nos lembrar e compelir a pensar que o turismo, que então era apontado como uma oportunidade a agarrar, se transformou numa realidade somente há pouco mais de 50 anos e a economia da região já era pujante em 1918.

É certo que as alterações climáticas metamorfoseiam hoje os nossos dias com consequências imprevisíveis, mas ainda assim muitas das potencialidades e conselhos então elencados estão atuais.

Dividido em 17 capítulos, repartidos entre a topografia e o clima até às finanças, a região é estudada em todos os seus aspetos e modalidades económicas, ao longo de quase 300 páginas, acompanhadas por tabelas e quadros estatísticos com comparações entre os concelhos algarvios, distritos do país e não raramente com diferentes países da Europa ou mesmo os Estados Unidos da América.

São apontados mercados exportadores, mas também o movimento em todas as estações postais do Algarve, entre 1905 e 14 (correspondência recebida/expedida, telegramas, encomendas), nas estações ferroviárias (passageiros e mercadorias, embarcadas e desembarcadas), os transportes (estradas, cavalgaduras, veículos e automóveis existentes em cada concelho; por exemplo, existiam somente 4 automóveis em 1912), o número de barcos entrados nos portos e respetiva tonelagem, bem como os existentes.

Enfim, um manancial de informação que nos permite conhecer com rigor a realidade de então. Façamos, pois, uma brevíssima viagem ao longo das suas páginas.

No capítulo I, são apontadas as semelhanças do clima com a Côte d’ Azur, a Riviera e a zona de Málaga. No II e III, é estudada a população, a sua evolução nas freguesias e especificidades (natalidade, mortalidade, taxas de nupcialidade, características demográficas e sociais).

Posteriormente, debruça-se sobre a propriedade rústica, lembrando «que o algarvio é essencialmente trabalhador e económico», comparando o número de prédios rústicos, contribuintes e rendimento coletável por concelho, a proporção de diferentes culturas na superfície cultivada, sem esquecer que a água é a «questão vital para o Algarve».

Recorda o predomínio de árvores frutíferas e de culturas hortícolas (os produtos antecipam-se 15 dias aos das outras regiões) e arvenses, a que se seguiam a vinha, os sobreiros e as matas.

Aconselhava a associação dos agricultores, por a maioria constituir pequenos proprietários e de poucos recursos, bem como a instalação de postos agrários, para a atualização constante das técnicas.

 

Em «as culturas regadas», no capítulo V, salienta a «doçura e sabor finíssimo» das frutas do Algarve, a laranja e tangerina, os damascos e pêssegos, com o seu aroma e magnífico paladar, as romãs, ou as nêsperas do Japão, de grandes dimensões.

Notando que, a leste, os produtos são mais temporãos, pelo que era oportuna a cultura de primores hortícolas e pomícolas destinados a exportação para o mercado inglês e norte da Europa.

Indicava a cultura da uva de mesa (com dois tipos, as temporãs e as serôdias, bem como a passa de uva) e a floricultura (cravos, rosas, anémona, jacinto, narciso e açucenas, e também as destinadas à extração de essências, como alfazema, etc.) então inexistente na região.

Em género de síntese, referia que, «quando se estuda a tentativa ou a ampliação de qualquer cultura no Algarve: para um dado capital, empregado em terra, água e mão de obra, a cultura que se vae tentar ou ampliar, dará um rendimento maior que o de qualquer outra cultura? No caso afirmativo, a cultura deve fazer-se; no caso negativo, deve-se procurar a mais remuneradora».

Defendia, por isso, o abandono da cultura do algodão, que se tentava com algum sucesso por aqueles anos e a aposta no ananás.

O capítulo VI foi consagrado aos «amendoeiraes, os figueiraes, os alfarrobeiraes, os olivaes e os soutos». De todas, destacavam-se a amendoeira, a figueira e a alfarrobeira, como as mais importantes economicamente, ou não constituísse o pomar tradicional de sequeiro algarvio, o motor económico da região, desde antanho, principalmente o figo. Propondo por isso a sua cultura, cuidados e variedades mais produtivas.

Considerava que, apesar da «falta absoluta de instrução technica e do desprezo systematico que os poderes públicos teem pela mais linda região de Portugal, o lavrador algarvio, com capitaes carissimos, faz verdadeiros milagres, que tornam o litoral do Algarve, um verdadeiro jardim». Um desprezo que o peso dos anos ainda não tolheu e que se perpetua.

Também para a oliveira anotou potencialidades: «o Algarve tem todas as condições agrológicas para dar um dos melhores typos de azeite nacional».

Por fim, apontava a importância dos castanheiros em Monchique, seja pelo fruto, ou pela madeira, então em declínio causado por uma praga e a indispensabilidade de «defender energicamente os soutos que escaparam á doença, impedindo, por todos os meios, que elles sejam destruídos por outras causas».

Os montados, as matas, as vinhas, os cereais e os legumes ocuparam todo o capítulo VII. A pouca arborização da região, à exceção do litoral, levaram Tomás Cabreira a propor com urgência a florestação de toda a serra algarvia, como forma de regular o caudal nas ribeiras (torrencial no inverno e secas no verão).

Propondo para o efeito dois grupos essenciais, mais remuneradores (em termos de boas madeiras para construção civil e naval), um constituído pelas árvores indígenas, pinheiro, azinheira, sobreiro, castanheiro e alfarrobeira, e outro com espécies exóticas, como o eucalipto.

Recordamos o leitor que estamos em 1918 e que a arborização da serra com espécies endémicas continua na ordem do dia, já a plantação desregrada de eucalipto transformou toda a serra num barril de pólvora…

Quanto às vinhas, relatava que o distrito de Faro era daqueles que tinha maior produção de vinho por hectare, apresentando a sua composição nos diferentes concelhos e anotando a viabilidade da produção de vinhos generosos.

Nos cereais, foram estudados o trigo (de que o Algarve sempre foi deficitário), milho, cevada, aveia, centeio e arroz, enquanto nos legumes não foi esquecido o amendoim.

Por sua vez, os sapais e a pecuária surgem no capítulo VIII. Cabreira defendia a utilização dos sapais para produção de forragens, por exemplo, e quanto à pecuária, tinham primazia os bovinos, suínos, ovinos e caprinos. Já o gado cavalar era escasso, somente em Castro Marim existia um pequeno núcleo de criação hípica. O muar apresentava uma importância superior, embora o destaque fosse para o asinino. Outros tempos em que a tecnologia ainda não se fazia sentir.

No capítulo IX, analisaram-se «a pesca e as salinas». Duas atividades também históricas na economia regional. A sardinha constituía então a maior riqueza dos recursos piscícolas, com 57,4%, seguindo-se o atum, com 20,5%. A pesca deste praticava-se já na Antiguidade, existindo em 1914, entre Sagres e Tavira, 13 armações que empregavam cerca de 1500 homens.

Propunha a introdução da piscicultura e do cultivo de ostras, pelo seu «paladar finíssimo, muito superior a todos os que se vendem em Paris», para exportação para França.

As indústrias são elencadas no capítulo X, evidenciando-se a extractiva, as águas minerais, construção naval, a conserveira (lembrando que a conserva de sardinhas foi iniciada na região em 1880 por franceses).

Em 1907, existiam 33 fábricas de conserva no Algarve, com 3100 operários, constituindo em 1918 a mais importante indústria do distrito, com mais de 100 fábricas.

Similarmente, a indústria corticeira também se evidenciava, ainda que em crise, com 20 fábricas, em 1911.

Sobre a construção civil, advertia para a elevada sismicidade e a conveniência do uso da gaiola pombalina, em todos os edifícios.

Nas pequenas indústrias, elencou a carroçaria, os artigos de palma, esparto, a construção naval, os doces, etc., etc.

Os transportes foram estudados no capítulo XI, e o comércio no imediato. Neste último, são indicados os artigos importados e destinados a exportação, suas quantidades e países de destino, principais cuidados no acondicionamento, enfim uma autêntica ação de marketing, apresentando a região uma balança comercial favorável.

O comércio ocupa ainda os dois capítulos seguintes, o XIII- «o commercio com a Inglaterra» e o XIV – «o commercio com outros paizes». Aí são elencados as quantidades e produtos exportados, bem como os valores envolvidos, comparação com outros países e indicados novos nichos de negócio para os produtos endógenos.

O antepenúltimo capítulo foi dedicado ao estabelecimento de novas indústrias «susceptíveis de se estabelecerem no Algarve». Trata-se de um verdadeiro tratado de atividades passíveis de sucesso, em torno das indústrias agrícolas, derivadas da agricultura, marítimas e fabris. Uma síntese das hipóteses levantadas ao longo do livro, desde a floricultura, da cultura da alcaparra, da figueira de pita, de túberas, da avicultura e cunicultura, apicultura, piscicultura, ostricultura, perfumes, conservas de azeitonas e tomates, entre outras.

No penúltimo capítulo, surge «o turismo e os sanatórios». A indústria do turismo, que se concretizou depois da década de 1960, e como tal não a vamos abordar, apesar de as anotações e advertências do autor se manterem tão presentes.

As finanças encerram a obra. Através da análise do derradeiro capítulo, Tomás Cabreira não teve hesitações em afirmar que o Algarve pagava ao Estado muito mais do que recebia, logo a conclusão não podia ser outra, que a região podia e devia gozar de autonomia: «contar com os seus próprios recursos para ter uma vida mais larga e intensa».

A sua morte, ainda em 1918, o agravamento da instabilidade política, social e económica, advinda do término da I Guerra Mundial e da pandemia, levaram ao advento do regime ditatorial, centralista, impedindo e protelando a autonomia da região, até aos nossos dias, ainda que logo nos primeiros anos de 1920 se ventilasse, na imprensa regional, a independência do Algarve.

A obra, pelo que se enunciou, não obstante ter sido publicada há mais de 100 anos, mantém sobre os mais diversos aspetos uma atualidade tão assombrosa, quanto surpreendente.

Afinal, a data de publicação de um livro nem sempre faz dele uma obra desatualizada e Tomás Cabreira merece essa homenagem, pela aprendizagem profícua que nos propõe, através da leitura completa deste seu magistral trabalho.

Atravessamos novamente um período conturbadíssimo, mas também as suas derradeiras palavras encerram uma perenidade intemporal: «o futuro e engrandecimento do Algarve estão nas mãos dos filhos dessa abençoada terra», estejamos, pois, à altura dos desafios que se nos impõem.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados. Nas transcrições, manteve-se a ortografia da época.

 



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