A cidade inteligente, reinventar o génio e o espírito dos lugares

Este é o paradoxo que preside à vida ao quotidiano, entre a banalidade e alienação e a liberdade e invenção do quotidiano

Volto ao tema da cidade inteligente. Em plena era tecnológica, o formalismo digital da Smart City irá colidir, muitas vezes, com a informalidade quotidiana da vida na cidade, ou seja, doravante, será absolutamente necessário reinventarmos as vivências do quotidiano, o desenho do espaço público e o espírito dos lugares.

Vejamos algumas características do ciclo de vida da cidade inteligente:

– Já sabemos que a cidade inteligente é um lugar de encontro privilegiado entre a tecnologia, a ecologia e a humanidade, o nosso drama é encontrar esse ponto de equilíbrio raro e tanto mais quanto nem sempre temos, para tal, engenho e arte quanto baste; os termos desta equação têm ciclos de duração muito variável e este facto está na origem dos nossos principais problemas; a tecnologia tem ciclos muito curtos de inovação e acelera com frequência deixando muita gente para trás, a ecologia tem ciclos muito mais longos, mas episódios severos cada vez mais frequentes e intensos, a humanidade que até há pouco respirava ao ritmo dos ciclos intergeracionais, sente-se, agora, por demais confusa ao sabor do descompasso da tecnologia e da ecologia.

– Já sabemos que a cidade inteligente do futuro é um produto híbrido da inteligência racional, emocional e artificial, mas, também, da inteligência individual e da inteligência coletiva; é essa hibridação que permitirá a produção de conteúdos muito variados e, também, de várias expressões simbólicas, artísticas e culturais que são outros tantos sinais distintivos da cidade inteligente.

– Já sabemos que a cidade inteligente terá uma modulação urbana muito diferente da atual, com impactos crescentes sobre as infraestruturas e a arquitetura da cidade; para lá das funções convencionais dos equipamentos materiais, veremos a modelação urbana adquirir uma polivalência e multifuncionalidade mais imateriais e alargar o perímetro da cidade para lá dos seus limites mais tangíveis em direção a uma cidade mais inteligente, policêntrica e circular.

– Já sabemos que a cidade inteligente será muito mais do que um mero produto do esverdeamento capitalista e a ecologia humana muito mais do que um mero subproduto da modernização ecológica, não obstante os múltiplos equívocos e mal-entendidos que emergirão a propósito da justiça ambiental e social em redor do perímetro urbano e nos anéis periurbanos da cidade modernista.

– Já sabemos que a cidade inteligente apresentará uma estética própria inerente à cultura digital que se refletirá na organização do seu espaço público, no sentido de uma cenografia e coreografia mais imaginativas e no apelo aos talentos criativos para criarem uma linguagem distintiva da cidade; uma das novas facetas da cidade será a criação de muitas plataformas colaborativas de iniciativa cidadã ou civil que revolucionarão a administração dos territórios locais e regionais.

 

A cidade inteligente, o génio e o espírito dos lugares

Há muito trabalho a fazer para que a cidade inteligente do futuro seja uma genuína cidade inteligente e criativa e não uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia tecnocrática e ultramoderna de cidade. Tudo leva a crer que devido à irreverência e criatividade da comunidade humana que a habita, a cidade inteligente terá não-lugares, hiper-lugares e terceiro-lugares, mas, também, lugares singulares onde se cruzam o génio do lugar e a reinvenção do mundo.

Senão, vejamos:

– Em primeiro lugar, não existe determinismo tecnológico, nem há um admirável mundo novo colado à cidade digital, quer dizer, há muitas maneiras de conceber a cidade inteligente e criativa para lá da cidade meramente digital.

– Em segundo lugar, o espaço público e o espírito dos lugares terão uma relação muito direta com os limites da cidade ou a geografia da governação política, por exemplo, a dosagem entre democracia representativa, democracia participativa e colaborativa, aquilo que pode ser designado como a nova arquitetura digital do poder; a transformação digital começa por alterar a relação entre o back office e o front office da administração municipal e progressivamente formam-se duas cidades inteligentes e complementares, a cidade centralizada sob a forma de loja do cidadão e a cidade coproduzida sob a forma de uma rede descentralizada de plataformas colaborativas.

– Em terceiro lugar, os dados serão a nova matéria-prima da cidade inteligente, por isso, a cidade é, em primeira instância, boa conectividade (uma boa conexão 5G), boa capacidade de cálculo (big data e cloud computing) e boa definição analítica (algoritmos e perfis preditivos); ou seja, a cidade do futuro será, simultaneamente, uma cidade da circulação, do consumo e da comunicação, mas, também, a cidade da literatura e cultura, da poesia e liberdade.

– Em quarto lugar, o génio e o espírito dos lugares irá colidir, tarde ou cedo, com a hipervelocidade, a hipervigilância, o hiperconsumo e o hiperindividualismo, ou seja, a cidade inteligente terá de ser, também, a cidade dos espaços públicos e dos pontos de encontro onde a alegria dos vizinhos e dos visitantes se manifesta, em claro contraponto com a dissolução dos lugares nos espaços mediático e virtual.

– Em quarto lugar, a cidade inteligente terá de promover permanentemente a reinvenção do quotidiano, dar à imaginação um lugar central, mobilizar os vários patrimónios como proteção e projeção das nossas memórias, desenhar os percursos da cidade através dos seus sinais mais distintivos, promover os eventos que a cidade merece, ou seja, reinventar o génio e o espírito dos seus lugares simbólicos.

– Em quinto lugar, a cidade inteligente, se quiser funcionar plenamente, terá de promover a literacia digital em todas as suas áreas, mas na justa medida, de modo a evitar a adição e alienação digitais; como ícone dominante da cidade inteligente, o smartphone, o símbolo maior do não-lugar e do hiper-lugar, o símbolo da nossa ubiquidade e virtualidade real, sinaliza-nos, a todo o momento, que “a nossa ausência” é, por vezes, muito preocupante, pois nunca estamos onde estamos fisicamente.

 

A cidade inteligente e os novos lugares do quotidiano

A modernidade e a globalização fizeram dissipar o espírito dos lugares através de uma crescente funcionalidade, homogeneidade e uniformidade dos modelos de cidade. Assim, desapareceu a singularidade de muitos lugares e perdeu-se o seu encantamento.

Não desejamos, porém, que a cidade inteligente seja um não-lugar e o cidadão um simples individuo digitalizado. A reinvenção dos lugares do quotidiano é, pois, um verdadeiro imperativo categórico.

Senão vejamos:

– Os não-lugares (Augé, 1992) são espaços de muita gente e de ninguém, espaços de muita circulação e de muito anonimato também; estamos a falar de aeroportos, estações, grandes avenidas, praças públicas, centros comerciais, parques de estacionamento, mas, também, de grandes cadeias de hotéis ou, mesmo, como hoje é visível, de grandes campos de refugiados; no fundo, estamos a falar de espaços de circulação e trânsito onde domina o avião, o automóvel, o comboio, o navio ou o autocarro. O não-lugar é o oposto de uma habitação, residência ou ponto de encontro da vizinhança.
Marc Augé fala-nos de uma antropologia da sobremodernidade a caminho de uma antropologia da solidão. No final, os não-lugares são lugares de circulação, consumo e comunicação, mas uniformes, generalistas e monótonos. No não-lugar somos todos iguais, cópias uns dos outros, indivíduos solitários.

– Os hiper-lugares (Lussault, 2017), onde Augé via, em 1992, um não-lugar de solidão, Lussault vê agora um lugar intenso, hiperconectado, multiescalar e emocionalmente muito rico; além do mais, os hiper-lugares também podem ser outros-lugares e lugares alternativos, isto é, lugares de manifestação e protesto, lugares aleatórios como praças, parques e vias públicas; nessa imensa pluralidade de lugares cabem movimentos como o slow food e o decrescimento económicos; finalmente, Lussault destaca a importância das comunidades online para iniciar e enraizar novos movimentos e comunidades offline.

– Os terceiro-lugares (Oldenburg, 1989), o livro de Ray Oldenburg, The great good places, é acerca de uma sociologia urbana do quotidiano, de uma química própria dos lugares da nossa rotina quotidiana, do barbeiro à livraria, do café à loja de bairro, do bar ao restaurante da vizinhança; entre os lugares do trabalho e da residência, os terceiro-lugares são os lugares da descontração, da hospitalidade e da cultura de uma sociabilidade saudável, os lugares perfeitos para o exercício das micro liberdades do nosso quotidiano.

– Os espaços de coworking (De Koven, 1999), com os espaços de coworking a cidade transporta-nos dos lugares familiares para os espaços colaborativos da sociedade tecnológica e digital do século XXI; falamos de uma grande variedade de espaços colaborativos com diversas designações – estúdios, ateliers, hubs, fábricas, parques, academias, escritórios partilhados – utilizados por microempresas, empreendedores individuais, profissionais liberais, trabalhadores independentes e nómadas digitais; a utilização de espaços comuns faz baixar os custos fixos do imobiliário, aumenta a conexão entre todos e faz germinar um espírito criativo e oportunidades empresariais.

– A arte do lugar (Schultz, 1997), nas palavras do arquiteto Christian Schultz, o espírito do lugar passará a ser “a arte do lugar”, uma arte que o marketing cultural e turístico aproveitará para segmentar, diferenciar e explorar comercialmente.
De facto, as metrópoles e as grandes cidades procuram afanosamente na arquitetura, nas grandes obras de arte e na ecologia urbana uma fonte para o mistério e o espírito dos lugares, contra o tédio e a melancolia das grandes urbes verticais.

 

Notas Finais

Para o sociólogo Manuel Castells, o capitalismo financeiro e o capitalismo digital impulsionaram-nos em direção à sociedade da informação. As pessoas ainda vivem em espaços de lugares, mas como o poder e as suas funções estão organizados em fluxos de informação, a dinâmica dos lugares fica profundamente alterada. O espaço de fluxos torna-se predominante e essa “virtualidade real” vai consubstanciar a cidade informacional.

Em consequência desta virtualização, os espaços urbanos são cada vez mais diferenciados em termos sociais e o desenvolvimento correlativo desta tendência é a formação de megacidades metropolitanas.

Não obstante, o espaço de lugares não desaparece e devido à crescente mobilidade e flexibilidade das modalidades de trabalho os lugares tornam-se mais singulares e, também, mais próximos. Estamos, assim, em pleno nomadismo digital e em regime de topoligamia.

O filósofo Zygmunt Bauman dirá, por sua vez, que este nomadismo crescente nos conduz até à cidade líquida onde tudo é passageiro, transitório e efémero. É o tempo que domina, estamos em plena cidade da velocidade. O espírito dos lugares já não se obtém da sua substância, mas da sua itinerância; em vez da essência de um lugar o individuo/consumidor é convocado para participar em uma série de eventos realizados num não-lugar ou num hiper-lugar.

Aqui chegados, a cidade inteligente já estará, porventura, cheia de não-lugares, hiper-lugares e terceiros-lugares construídos a partir de uma dialética intensa entre espaços de fluxos e espaços de lugares. O mais provável é que tenhamos, mesmo, uma situação caótica e uma verdadeira cacofonia ao quotidiano e em vez do mistério e do espírito do lugar teremos, muito provavelmente, a rotina e a melancolia do quotidiano.

Este é o paradoxo que preside à vida ao quotidiano, entre a banalidade e alienação e a liberdade e invenção do quotidiano. E para lá do tédio e da monotonia do quotidiano, há, também, os gestos de nobreza e as micro liberdades do dia a dia que nos surpreendem amiúde, já para não falar dos eventos frequentes que nos aliviam a dor da melancolia e solidão.

E, já agora, que a cidade inteligente aprenda as lições do covid19, a cidade prudente, e use a sua inteligência e prudência em direção a outras formas de sociabilidade e convivialidade.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

 

 

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