Algures entre a política velha e a política nova

A revolução digital, face à complexidade dos problemas de hoje, obriga-nos a procurar uma organização intermédia que seja capaz de corresponder a essa interação fundamental

Como sabemos, o plano ou ângulo de observação muda a natureza da coisa observada. De um ponto de vista estrutural, o nosso país parece um animal invertebrado a quem falta uma coluna vertebral. De um lado, o excesso de centralismo, do outro, o excesso de localismo. Um país bipolar, portanto.

Na linguagem da nomenclatura das unidades territoriais estatísticas, o país está assente nos níveis NUTS I (central) e NUTS IV (local).

Ora, em vez disso, o país devia estar assente nos pilares intermédios, os níveis NUTS II (regiões coincidentes com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) e NUTS III (agrupamentos e/ou comunidades intermunicípios), de modo a criar mais densidade demográfica, massa muscular, sistema nervoso e coluna vertebral.

 

A política velha

Qual é, então, o problema? O problema é que estes níveis intermédios não são placas giratórias, não distribuem poder específico próprio. O sistema de poder das estruturas partidárias está organizado em redor de três subsistemas de distribuição de poder: duas circunscrições eleitorais (municipal e distrital), três níveis de administração pública (AC, AR e AL) e três níveis de organização político-partidária (concelhio, distrital e nacional).

Os partidos políticos, os operadores privilegiados do sistema, tentam otimizar a sua implantação, o seu sistema de poder, a sua distribuição de lugares, neste sistema a três dimensões.

Nestas condições, não admira, portanto, que o poder local se confunda com o poder autárquico, enquanto a sociedade política local parece ter sido capturada pela omnipresença asfixiante da câmara municipal. Quer dizer, em muitos municípios estamos perante um verdadeiro Estado-Local.

Não admira, portanto, que os espaços políticos das estruturas político-partidárias pareçam velhos armazéns carregados de mobílias velhas que ninguém se atreve a reciclar ou a fazer desaparecer e, no entanto, existe uma grande oportunidade para a refundação da política local tal como a conhecemos.

Libertar os espaços políticos convencionais dos antigos constrangimentos é uma grande oportunidade, mesmo sabendo que, na terra dos narcisos, tal não se afigura uma tarefa simples.

 

A transição para a política nova

A boa nova é que a transição digital, conjuntamente com a transição ecológica e energética, na sua policromia e transversalidade, é uma excelente oportunidade para refrescar a atividade política tal como a conhecemos.

Uma das facetas mais vincadas da transição digital é a emergência das redes e plataformas e a imersão da política nessas redes de colaboração e cooperação. Aqui chegados, a grande incógnita dos próximos anos é saber se assistiremos ao enquistamento do poder autárquico ou, antes, à sua libertação por via de uma maior diversidade social e pela criação de novos formatos socio-organizacionais nos quais o poder autárquico é um par inter pares em estreita articulação com os outros poderes, empresarial, universitário, cultural, mediático, associativo, etc.

Está em causa a construção de uma rede de comunidades e de comunidades em rede, de uma economia local colaborativa e de novas plataformas tecnológicas que sustentem essas comunidades socialmente construídas.

Estou confiante em que do lado da sociedade política local a perspetiva do futuro abrangerá as seguintes promessas:

1) Cultivar os valores da Sociedade Colaborativa: o conhecimento, a comunidade, a colaboração, a comunicação, a comunhão, a confiança, a convivialidade, a congratulação;

2) Reequilibrar os territórios de geometria fixa com mais territórios-rede de geometria variável;

3) Dar prioridade à produção de capital social, isto é, a territórios cognitivos e comunidades vivas capazes de aprender, apreender e empreender;

4) Dar prioridade a um associativismo de 2ª geração e organizado em redor de plataformas interativas;

5) Dar prioridade à construção de novas comunidades de trabalho para lá do emprego que existe ou deixou de existir;

6) Promover a aproximação e a fusão progressivas dos sectores público, social e comunitário, criando o quarto sector, o sector dos bens comuns colaborativos;

7) Dar prioridade à formação de comunidades online, à crowd economy e sua interação com comunidades offline em lógicas fecundas de open source;

8) Ensaiar a criação de moedas sociais complementares no quarto sector em articulação com a moeda oficial;

9) Estar atento para impedir uma eventual descontinuação das práticas e das redes colaborativas;

10) Formar o movimento social da Sociedade CO, praticar a ética do cuidado e proteger os cuidadores da sociedade sénior.

No mesmo sentido, todas as organizações intermédias que representam interesses corporativos e socioprofissionais têm aqui uma oportunidade única de dar o seu contributo para a sociedade em rede colaborativa, pois todas elas possuem uma dimensão territorializada dos seus conhecimentos, razão pela qual devemos aproveitar na boa direção o conhecimento tácito e pragmático que os territórios já possuem e estimular o potencial de aprendizagem e inovação destas organizações da sociedade em rede, bem como a sua interação com a sociedade política mais tradicional.

Um último aspeto do acesso à política nova diz respeito à natureza do ator-rede. O ator-rede é uma estrutura de missão que se robustece pela forma descentralizada e cooperativa como se organiza no terreno, se quisermos, uma organização na base de uma comunidade de autogoverno e autoregulação.

O ator-rede é o agente desta nova intermediação para a economia digital e o administrador das plataformas colaborativas que aí vêm, em modo de coprodução e cogestão.

É, portanto, uma organização que assumirá múltiplos formatos em função das áreas de atividade, mas é, sobretudo, uma organização com muita inteligência e capacidade criativas para gerir um espaço altamente simbólico.

A teoria do ator-rede é, assim, uma construção reflexiva gerada no seio da grande transformação digital e observada na experiência de interação entre o dispositivo plataforma e a comunidade política de referência. Um dispositivo plataforma umas vezes mais capitalista, outras mais genuinamente colaborativo ou cooperativo.

 

Notas Finais

Assim, podemos afirmar, a política convencional, hierárquica e vertical, envelheceu, deixou de ser o herói da sociedade, já não tem o poder de obrigar, está sobrecarregada, deve descentralizar uma parte das suas atividades nos territórios-rede e nos atores-rede da sociedade em rede; em seu próprio benefício, a autolimitação da política velha servirá para a proteger da sua própria mediania e trivialidade.

No entanto, a transição digital, para ser bem-sucedida, necessita de uma interação positiva e orientada entre comunidades virtuais, geradas por plataformas digitais nascidas na internet e nos smartphones, e comunidades reais, geradas por relações sociais nascidas no dia a dia dos contactos e intercâmbios entre produtores e consumidores, serviços, utentes e cidadãos.

Ou seja, a revolução digital, face à complexidade dos problemas de hoje, obriga-nos a procurar uma organização intermédia que seja capaz de corresponder, de modo efetivo, a essa interação fundamental.

Comunidades, plataformas e atores-rede são, portanto, as faces da revolução digital e da política nova, lado a lado com a política velha, mais hierárquica, vertical e corporativa. As primeiras como dispositivo de conexão das comunidades online, as segundas, ainda como organização material das comunidades offline correspondentes.

Uma última nota para realçar o nosso individualismo metodológico e radical que nos impede, muitas vezes, de levar a cabo uma política nova mais colaborativa e cooperativa. Lembro que para amortecer os choques assimétricos da globalização desregulada vamos precisar de projetos coletivos mobilizadores para os territórios mais atingidos pela pandemia e compromissos robustos entre forças centrípetas, globais, que desejam um mundo plano, e forças centrífugas, locais, que puxam pela desmultiplicação e fragmentação dos territórios.

Na ausência destes projetos e compromissos não há revolução digital e política nova que resistam a esta polarização e a este duplo movimento divergente pleno de consequências negativas. A política velha e a política nova estarão face a face com esta dura eventualidade de uma polarização social e essa será verdadeiramente a sua prova de vida.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



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