Um dos efeitos da pandemia do Covid-19 foi grande parte da população ter entrado em teletrabalho, pelo menos durante alguns meses, tendo já sido sugerido que talvez isso seja uma das coisas que irá ficar, mesmo depois do fim da pandemia.
Poder-se-á perguntar se tal fará sentido – afinal, numa análise económica mais simplista, dir-se-ia que, se o teletrabalho fosse mesmo em muitas situações mais eficiente que o trabalho presencial, empresas e trabalhadores já o estariam praticando; mas, no mundo real, há provavelmente muitas coisas que complicam o processo.
A saber: em primeiro lugar, e talvez sobretudo em ambientes empresariais/institucionais, há um certo receio de parecer “estranho” – antes, um empregado que fosse sugerir ao seu chefe (numa organização sem tradições de teletrabalho) passar a trabalhar a partir de casa corria o risco de levantar suspeitas do tipo “porque é que este está a pedir isto? Deve ter alguma na manga – talvez ache que assim não vai fazer nenhum, ou talvez seja um antissocial que não consegue trabalhar em equipa”;
Ou, mesmo que ninguém pense isso, o próprio empregado poderia imaginar que o iriam pensar e iria hesitar em fazer o tal pedido.
Há também o fator “nunca ninguém foi despedido por comprar um IBM” – se um gestor intermédio tomar uma decisão perfeitamente normal e correr mal, é natural que se pense “são coisas que acontecem”; se tomar uma decisão invulgar e correr mal, arrisca-se a que, no mínimo, lhe perguntem “mas onde é que estava com a cabeça?”.
Mas, como muitos trabalhadores já estiveram meses em teletrabalho, isso altera os padrões sociais: o teletrabalho passou a ser visto como mais “normal”, enfraquecendo assim resistências pré-existentes.
Um fator adicional é que, antes, as chefias e administrações estariam na dúvida se os trabalhadores seriam tão produtivos em teletrabalho como presencialmente; agora a experiência já foi feita e com certeza em muitos sítios já deu para observar que “Fulano produz tanto em casa como produzia aqui; já Beltrano baixou a performance” e aí é de esperar quemos trabalhadores que tenham funcionado bem em teletrabalho possam continuar a fazê-lo.
Muitas das vantagens do teletrabalho são relativamente intuitivas – desde evitar deslocações (poupando tanto tempo, como combustível), até abrir caminho a horários de trabalho mais flexíveis (embora essa “flexibilidade” seja um pau de dois bicos…).
Mas, dito isto, será que o teletrabalho irá ser tão comum ou quase como o trabalho presencial? Talvez não.
Para começar, é difícil aplicar o teletrabalho a profissões em que se trabalhe muito com pessoas ou coisas – é quase impossível atender público em teletrabalho e provavelmente ainda mais trabalhar com objetos físicos (conseguem imaginar um canalizador em teletrabalho?); o teletrabalho parece vocacionado para trabalhos de tipo administrativo-burocrático ou de conceção intelectual.
Em segundo lugar, muito provavelmente o teletrabalho funciona melhor para tarefas em que já se sabe o que se tem que fazer e como o fazer; novas situações que impliquem trocas de opinião informais entre colegas sobre como as resolver apresentam mais dificuldades.
Podem reunir-se via videoconferência, mas isso tem algumas desvantagens face à comunicação presencial; uma videoconferência é algo que ocorre num período definido de tempo, em que as pessoas, enquanto estão reunidas, não estão trabalhando; em contraste, num processo de troca informal de ideias, o que frequentemente acontece é, quando algum trabalhador tem alguma dúvida durante o seu trabalho, perguntar aos outros como eles fariam, e retomando o trabalho de forma imediata (há também o reverso da medalha, claro – no caso em que trabalhadores do mesmo serviço não estejam no mesmo espaço físico, se calhar até comunicam mais facilmente quando toda a comunicação é por videoconferência).
Também é provável que inovações feitas por iniciativa de trabalhadores (em que um deles descobre uma maneira mais eficaz de fazer o trabalho e depois o novo processo vai gradualmente sendo adotado pelos colegas) se popularizem mais depressa num ambiente presencial do que em teletrabalho.
E, finalmente, para os supervisores, é provavelmente mais fácil controlar a produtividade de um trabalhador em teletrabalho se ele estiver a executar uma tarefa regular que já se sabe quando deve estar pronta, do que uma nova tarefa.
Por fim, talvez um dos maiores problemas: a apologia do teletrabalho parece muitas vezes ter como referência pessoas que vivem sozinhas.
Mas, no mundo real, grande parte das pessoas tem família. A menos que esteja sozinho em casa à hora de trabalho, o típico teletrabalhador acaba por ter que gerir outras solicitações além do trabalho. Por exemplo, e se outra pessoa quiser usar o computador? Poderá levar o computador do emprego, mas, se as pessoas passarem a ter em casa os seus equipamentos pessoais e mais os de serviço, podem começar a surgir problemas de espaço, consumo de energia, etc.
Autor: Miguel Madeira é licenciado em Economia pelo ISEG desde 1995.
Está ligado à área da Saúde desde 1999, exercendo funções no Centro Hospitalar Universitário do Algarve e nas instituições que o precederam (Hospital Distrital de Lagos, Hospital do Barlavento Algarvio, Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio e Centro Hospitalar do Algarve).
É membro da Assembleia de Freguesia de Portimão desde 2013.
Nota: artigo publicado ao abrigo do protocolo entre o Sul Informação e a Delegação do Algarve da Ordem dos Economistas
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